Por Tiago Didier – 06/06/2016
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A Igreja Católica administrava as ordálias oferecendo legitimidade religiosa e controlando indiretamente os rumos das disputas judiciais. Tinha também um importante papel em minimizar e humanizar as consequências dos danos físicos causados pela experiência, além de domar a imprevisibilidade passional da justiça popular, como os frequentes linchamentos. Isso não impediu a forte postura crítica de papas, teólogos e documentos religiosos que buscavam banir esse meio de prova. Segundo José Domingues (2012, p.6):
A partir do século XII, sobretudo, o processo de racionalização da justiça vai insurgir-se contra estes rudes procedimentos ordálicos. Marques dos Santos destaca o contributo decisivo da ciência romano-canónica e da própria Igreja na lide contra estas formas irracionais de obtenção da prova, desde a voz crítica de Agobardo - bispo de Lyon (816-840) e autor do Liber contra iudicum Dei , à insurgência dos papas do século XII, Alexandre III e Celestino III, contra o duelo ou combate judiciário e finalmente o importantíssimo cânon 18 saído do IV Concílio de Latrão, proibiu os clérigos de benzer e consagrar objetos utilizados nesses ritos e de neles participar.
Em 1215, mesmo ano do IV Concílio de Latrão, é registrado na Magna Carta da Inglaterra a instituição do Tribunal do Júri e a prova testemunhal coletiva. O sistema britânico se tornou mais racional e as ordálias entraram rapidamente para os livros de história. Após a retirada da legitimidade da Igreja, a Europa continental desenvolveu um processo penal inquisitorial, centrado nas investigações conduzidas pelos inquisidores que privilegiavam os testemunhos individuais. Segundo Jeffrey Richards (1993), nesse novo sistema um acusado só podia ser condenado com base no depoimento de duas testemunhas oculares ou por confissão. As provas parciais ou circunstanciais não poderiam ser usadas de maneira prejudicial contra o réu.
Sobre a retomada do formalismo processual e a reabilitação do direito latino, Antonio Wolker (2002, p.415) afirma:
A grande recuperação do direito romano no período medieval dá-se, portanto, num sistema político particular. Avultaram, nos séculos XI e XII, as disputas entre Igreja e Império, ou entre o corpus fidelium e os poderes laicos. Os juristas tomaram-se intelectuais a serviço de uma nova ordem, fosse ela a das nascentes cidades burguesas, fosse das cortes (eclesiásticas ou seculares). Essa disputa terminou por forçar o abandono das formas tradicionais de julgamento, a favor de formas mais burocratizadas e formais. O modo tradicional, então em uso, era o do julgamento leigo, por juízos de Deus, ordálios, muitas vezes na esfera da aldeia. O grande salto qualitativo dado na direção do formalismo e da burocracia estava no direito canônico: não apenas o julgamento se formalizou e o processo passou a adquirir fases precisas, como também a justificativa para as diversas reformas passou a carecer de razões e explicações que seriam dadas pelos juristas.
A atitude da Igreja de condenar as ordálias foi movida mais por motivos pragmáticos do que humanitários. A adoção de um novo sistema de procedimentos probatórios era mais eficiente para combater o exponente crescimento dos crimes de heresia, que ameaçavam o poder religioso oficial.
A ordália, na Europa, acabou sendo progressivamente substituída pela tortura a partir da segunda metade do século XIII até o final do século XVIII. A tortura, ao obter testemunhos e confissões, garantia o funcionamento efetivo da justiça criminal e o andamento dos processos. Alguns poucos casos de ordálias, até o século XVII, são registrados nas colônias americanas e no leste europeu, relacionados ao crime de bruxaria.
O historiador George Duby (1966) observou as transformações psicológicas do homem medieval causada pelo desuso da ordália e a racionalização não só do processo judicial, mas de toda a sociedade. Na descoberta da própria individualidade e consciência dos valores morais interiores, algo inédito na época, o homem agora sabe que não se redime por atos mágicos ou provas rituais, mas através de suas atitudes e intenções íntimas, pelo amor, razão e sentimentos.
O teólogo Marie-Dominique Chenu (2006) sustentava que a ordália operava uma alienação da consciência, transferindo ao metafísico, sobrenatural, aquilo que se referia verdadeiramente ao homem, o discernimento da inocência ou culpa de um acusado. A descontinuidade desse tipo de procedimento contribuiu para a crescente liberação da mentalidade mágica do homem medieval.
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Notas e Referências:
CHENU, Marie-Dominique. O Despertar da consciência na civilização medieval. São Paulo: Loyola, 2006.
DOMINGUES, José. O Direito Primitivo Ibérico e as Provas Ordálicas Medievais. In: Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta, 6., 2012, Porto. Anais. Porto: Faculdade de Direito da Universidade Lusíada, 2012, p.61-70.
DUBY, Georges. No Tempo das Catedrais. Lisboa: Estampa, 1978.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: As Minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos da História do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
. . Tiago Didier é Advogado em Recife/PE e grande entusiasta da história do Direito, arqueologia e antropologia. Email: tiago_didier@hotmail.com . .
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