O feminino no Tribunal do Júri

01/04/2018

As questões de gênero marcam todas as relações sociais, em maior ou menor grau, quer percebamos, quer não. E os ambientes jurídicos não são distintos pela isonomia; pelo contrário, são em regra espaço de um conservadorismo que só é compatível com a misoginia e o machismo. Isto, desde o julgamento diferenciado entre acusados e acusadas, passando pela credibilidade das testemunhas e pela confiabilidade dos auxiliares da justiça, chegando até o tratamento conferido aos atores jurídicos. 

Nesse contexto, talvez o Tribunal do Júri seja a ocasião em que mais se aflorem as manifestações de desrespeito e discriminação, ainda que muitas vezes veladas. Aliás, é possível que estas sejam as piores, pois, ao se tentar combatê-las, é-se taxada de louca, delirante ou exagerada. De todo modo, sejam as violências de gênero expressas, sejam implícitas no comportamento dos integrantes desse teatro que se chama julgamento, é inegável que se trata do espaço mais “masculinizado” do âmbito jurídico. 

A tradição – arcaica e ultrapassada, incompatível com a ideia de um processo penal constitucional – de uma acusação feita aos berros e pautada em um discurso do medo, para que a defesa, também aos gritos, precise desconstruir a encenação punitivista não condiz com a ideia de feminino. Um homem que exerça esse papel é tido como combativo, pautado pela irresignação e pelo senso de justiça. Uma mulher que se coloque nessa mesma posição é vista como histérica, descontrolada e incapaz de atuar em um ambiente com tamanha animosidade. 

Em um local em que os símbolos e rituais[1] têm relevância muitas vezes maior do que o próprio conteúdo dos debates – veja-se a resistência que tem o Ministério Público em separar seu assento daquele do Magistrado, ciente de que o fato de passarem a sessão trocando confidências e quase de mãos dadas tem sobre os jurados efeito que não seria atingido de outro modo, qual seja, o de aproximar a acusação do ideal de justiça –, a figura de uma mulher costuma ser vislumbrada apenas na estatueta de olhos vendados, carregando nas mãos uma espada e uma balança. 

Dentre os grandes tribunos, muitos dos quais publicaram obras acerca dos julgamentos de que participaram, não se destaca o nome de uma mulher. Não porque a elas falte competência ou habilidade, mas por ser um espaço que apenas muito recentemente começou a ser ocupado pelo gênero feminino. 

Apenas a título de exemplo, alguns nomes de destaque nos clássicos livros a respeito do Tribunal do Júri: Carlos de Araujo Lima[2], Eliezer Rosa[3], Evandro Lins e Silva[4], Alfredo Tranjan[5],  Evaristo de Moraes[6], Roberto Lyra[7]... Nenhuma mulher. 

Não é exagero dizer que, para muitos, a mulher nesse espaço ainda deve se restringir àquela que serve o cafezinho (sem qualquer demérito ao exercício desta atividade) ou, no máximo, à que atua na assessoria dos “verdadeiros protagonistas”. 

E, quando a mulher ocupa papel de destaque nesse enredo, seu script é muito mais exigente do que o de qualquer homem[8]. Vestimenta impecável, evitando demonstrar austeridade e, por outro lado, descomprometimento. A maquiagem não pode infantilizar nem sexualizar. Sapatos e acessórios também devem ser cuidadosamente pensados, devendo-se manter em uma linha muito tênue para administrar a imagem que os outros farão de si. O ideal é uma mulher neutra, que não lembre a ninguém que há uma mulher invadindo um ambiente tão predominantemente masculino. 

Não é incomum que as próprias mulheres – juradas, por exemplo – confiram maior credibilidade àquilo que é dito/exposto por um homem. Isso não significa dizer que as próprias mulheres são machistas, não acredito nisso. Mas, sim, que a imposição desses personagens está a tal ponto enraizada em nossa sociedade que as mulheres não conseguem sentir suas próprias amarras, reproduzindo os comportamentos machistas. Falta empoderamento do femininino e, também, sororidade. 

Embora ainda estejamos longe de ser maioria em um espaço que nos foi sonegado durante tantos anos, muitos avanços se verificam. Com o sacrifício daquelas que enfrentaram e ainda enfrentam violências para exercer seu papel, vem-se conquistando o reconhecimento da competência e da habilidade das profissionais que atuam em plenário. Não acredito que seja tudo uma questão de tempo, mas sim uma questão de luta. E a luta, certamente, continua.

 

[1] Sobre o tema, interessa referenciar: STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos e rituais. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 1993.

[2] Os grandes processos do júri. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988.

[3] A voz da toga. Rio de Janeiro: Barrister´s, 1983.

[4] A defesa tem a palavra. Rio de Janeiro: Booklink, 2011.

[5] A beca surrada. São Paulo: Civilização brasileira, 1994.

[6] Reminiscências de um rábula criminalista. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1989.

[7] Como julgar, como defender, como acusar. São Paulo: Cientifica, 1975.

[8] Sobre as tecnologias de gênero e as imposições de performances, interessa destacar: ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos. Cultura e processos de subjetivação. Curitiba/PR: Appris, 2018, p. 56.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Tribunal do Júri de Brasília // Foto de: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios ACS/Diego Morosino/TJDFT // Sem alterações

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