O fator Minority Report no Direito

30/06/2017

Por Guilherme Alcântara - 30/06/2017

A hermenêutica filosófica reabilitou no meio do século passado o sentido da palavra preconceito, tão menosprezada por nós, filhos do Iluminismo. Os pré-conceitos, ou seja, as antecipações de sentido que temos antes das nossas experiências com o mundo, não são apenas algo negativo, prejudicial e dignos de profilaxia, como quer o método cartesiano. São necessários. O homem, ser-aí, jogado no mundo, só ek-siste dentro de algum contexto que lhe é familiar a ponto de não ter que desconfiar a todo tempo da sua veracidade – como faz o próprio Descartes – e mais, sempre se projeta. As pré-concepções são existenciais, daí seu sentido positivo.

O problema está na naturalização do preconceito. Isso se faz, inclusive, acreditando cegamente em um método capaz de “limpar” o conhecimento das pré-concepções não comprovadamente verdadeiras. O próprio método, aqui, funciona como préconceito – indubtavelmente verdadeiro.

Tanto o conto Minority Report, escrito por Phillip Dick em 1956, quanto a obra cinematográfica inspirada nele – lançada em 2002 – retratam uma sociedade que passa por esse fenômeno de naturalização do preconceito através do método. Na distopia, o ano é 2054 e o Estado de Columbia (Estados Unidos) não presencia um assassinato graças às ações do departamento “Pré-Crime”, capaz de prender os homicidas antes que eles cometam o ato criminoso. O sistema funciona baseado nas visões dos ‘Pré-Cogs’ Agatha, Arthur e Dashiell: trigêmeos com dons especiais que sonham com assassinatos futuros.

Graças ao sistema “infalível” dos Pré-Cogs, almeja-se estender para todo o Estados Unidos a iniciativa do departamento Pré-Crime. Acredita-se que as projeções dos pré-cogs são certas e unívocas. Não existe a suspeita da existência de divergências entre as visões dos pré-cogs e, logo, da possibilidade de não ocorrência do delito. A estória ganha contornos dramáticos quando é o próprio chefe do departamento Pré-Crime (Jonh Anderton) quem aparece nas visões dos Pré-Cogs, o que gera sua perseguição. A única esperança de Anderton é encontrar um relatório minoritário, isto é, uma divergência de visões entre os Pré-Cogs que mostrasse um futuro alternativo.

No fim do filme, John Anderton consegue demonstrar a fraude ocorrida na gestão das visões dos pré-cogs, método que todos julgavam infalível. O fim do conto, contudo, é mais interessante: descobre-se, na verdade, que cada tomada de consciência de Anderton sobre seu futuro gerava um novo relatório dos Pré-Cogs, com uma história diferente. Todos os três, relatórios minoritários[1].

Tomar consciência de um futuro destroi, por si, a sua plena concretização, é a lição de Minority Report. É impossível tomar consciência plena do futuro. Isso acarretaria outro futuro distinto do previsto. Não existe fórmula ou método que proporcione esta exatidão.

Não é difícil transpor essa discussão para o Direito. O que Minority Report retrata pode ser o futuro das sociedades modernas que escolherem passar do sistema acusatório próprio das democracias constitucionais – fundado na presunção de inocência, culpabilidade e nas possibilidades efetivas de comprovação e refutação das narrativas – a um novo modelo inquisitorial de julgamento da personalidade do réu, cuja substância é o homem criminoso pré-concebido no senso comum teórico[2].

Atualmente, parece ser evidente que o Direito Penal vem sofrendo um giro paradigmático em direção à superpenalização e ao abandono dos objetivos clássicos de reabilitação do condenado em prol de uma política criminal da gestão do risco, de matiz securitária, fazendo surgir este ramo do Direito (outrora subsidiário e fragmentário) na última expressão da moral comum da sociedade, uma moral vingativa e nostálgica (sempre se diz que os tempos atuais são muito perigosos; sonha-se com um tal “retorno” da moralidade política...) que só colhe a violência que acha combater[3].

No mesmo sentido, a criminologia já se deu conta de que as medidas de repressão penal tradicionais (respeitadoras – em tese – das garantias penais conquistadas desde o liberalismo no séc. XIX) estão perdendo espaço para a lógica de segurança pré-crime[4], antitética do devido processo legal e originada da política criminal contra-terrorista que vem ganhando adeptos há alguns anos.

O Brasil absorve esta política criminal – cujo propósito é provocar sérios danos ao criminalizar àqueles suspeitos de crimes imaginários, e ao mesmo tempo velar fatores e problemas sociais e contextuais relevantes[5] – direcionando-a ao problema da corrupção sistêmica, focando antes nos potenciais futuros corruptos que nas causas da corrupção.

Aqui se encontra ponto de contato com a realidade, especificamente a brasileira: a política criminal defendida pela “nova geração de juristas” pós-ditadura, cujo desprezo aos direitos de defesa do réu é assumido (e divulgado ostensivamente) como um sinal de modernização do processo penal.

O objetivo desta “nova” política criminal antigarantista é, nas palavras de seus arautos: “restituir” a confiança das pessoas nas instituições democráticas. Neste sentido, busca-se a esvaziar “ameaças latentes”[6]. O combate à impunidade é seu mote.

Certamente, os termos Pré-Crime e Pré-Cog(nição) capturam bem a problemática do teste de integridade proposto nas 10 Medidas Contra a Corrupção. Segundo o pacote, os órgãos policiais deverão submeter os agentes públicos a testes de integridade aleatórios ou dirigidos, cujos resultados poderão ser usados para fins disciplinares, bem como para a instrução de ações cíveis, de improbidade administrativa, e criminais (art. 2º do projeto).

O teste consistiria na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública (art. 3º). Os testes seriam totalmente sigilosos (art. 8º), e a gravação deles sujeita à conveniência da Administração Pública (art. 5º), isto é: à uma cláusula aberta disposta à discricionariedade da autoridade administrativa.

Mutatis mutandis, funcionam como os Pré-Cogs: a função de ambos é antecipar um delito futuro por meio de um critério objetivo e indubitável – científico – criando um paradoxo: enquanto sugere que nenhum crime foi cometido, invoca simultaneamente a ocorrência deste crime que não ocorreu. É aqui que a Crítica Hermenêutica do filme ganha significado: não se pode confiar cegamente nos Pré-Cogs – que vem de pré-conhecer, preconceito. Existe sempre a possibilidade de um relatório minoritário. Da possibilidade de um futuro alternativo.

O erro da divisão Pré-Crime foi desconsiderar duvidar das estruturas fáticas da qual dependem todas as nossas percepções - afinal, todo compreender pressupõe um pré-compreender, como diz Gadamer -, as assumindo como óbvias, certas, objetivas, não tratando a origem dos fenômenos criminais, crítica que Heidegger faz à metafísica, e que urge pela suspensão dos Pré-Cogs (isto é, das estruturas hermenêuticas prévias) como solução para o problema da assunção irreflexiva de pontos de vista[7].

Neste sentido, não há cientificidade e objetividade do teste de integridade que o desvincule de uma séria e permanente suspeita de atentado à democracia constitucional1.

É preciso que se compreenda o chamado de Agatha (“Você pode ver?”) e considerar criticamente o horizonte mundano originário no qual os fatos se mostram, bem como os pressupostos que orientam a colocação dos problemas[8].


Notas e Referências:

[1] "Havia três relatórios da minoria — disse a Witwer, delei-tando-secom a confusão do rapaz. Um dia, Witwer aprenderia a não investir emsituações que não compreendia completamente. A satisfação foi a emoçãofinal de Anderton. Velho e cansado como estava, havia sido o único aperceber a verdadeira natureza do problema. — Os três relatórios foramconsecutivos — explicou ele. — O primeiro foi "Donna". Nesse curso detempo, Kaplan contou-me a conspiração e eu matei-o imediatamente."Jerry" foi um pouco mais à frente que "Donna" e usou o relatório delacomo dado. Ele fatorou o meu conhecimento do relatório. Nesse, o se-gundo curso do tempo, tudo o que eu queria era manter meu emprego. Eunão queria matar Kaplan. Eu só estava interessado em meu cargo e minhavida. [...] — E "Mike" foi o terceiro relatório? Veio depois do relatório daminoria? —Witwer corrigiu-se. — Quer dizer, veio por último? — Sim, "Mike" foi o último dos três. Diante do conhecimento doprimeiro relatório, eu tinha decidido não matar Kaplan. Isso produziu orelatório dois. Mas diante desse relatório, mudei de opinião de novo. Orelatório dois, a situação dois, era a situação que Kaplan queria criar.Favoreceria a polícia recriar a posição um. E, nesse tempo, eu pensava napolícia. Eu percebia o que Kaplan estava fazendo. O terceiro relatórioinvalidava o segundo da mesma maneira que o segundo invalidava oprimeiro. Isso nos levava aonde tínhamos começado. — Cada relatório era diferente — concluiu Anderton. — Cada umera exclusivo. Mas dois deles concordavam em um ponto. Se eu ficasselivre, eu mataria Kaplan. Isso criou a ilusão de um relatório da maioria. Naverdade, foi isso: uma ilusão. "Donna" e "Mike" previram o mesmo evento,mas em dois cursos de tempo totalmente diferentes, ocorrendo emsituações completamente diferentes. "Donna" e "Jerry", o chamadorelatório da minoria e metade do relatório da maioria, estavam incorretos.Dos três, "Mike" estava correto, já que nenhum relatório apareceu depoisdo dele para invalidá-lo. Isso resume tudo. Ansiosamente, Witwer corriado lado do caminhão, sua face lisa e loura vincada de preocupação. — Vai acontecer de novo? Devemos revisar a configuração? — Pode acontecer em uma única circunstância — disse Anderton. — O meu caso foi exclusivo, na medida em que eu tive acesso aos dados.Poderia acontecer de novo, mas somente com o próximo comissário depolícia. Por isso, cuidado por onde pisa"

[2] CARVALHO, Salo de. Penas e garantias. 3 ed. Rio de Janeiro/RJ: Lumen Juris ed. 2008, p. 60.

[3] OST, François. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. Bauru/SP: Ed. EDUSC, 2005, p. 355-357.

[4] ZEDNER, Lucia. Pre-Crime and Post-Criminology?’, Theoretical Criminology, 2007, 11: 261–81261–2.

[5] PICKERING, Sharon; MCCULLOCH, Jude. Pre-crime and counter-terrorism: imagining future crime in the ‘war on terror’. Brit. J. Criminology. Advance Access publication, 11 May 2009, pp. 628-645, Downloaded from http://bjc.oxfordjournals.org, p. 628.

[6] PICKERING, Sharon; MCCULLOCH, Jude. Pre-crime and counter-terrorism: imagining future crime in the ‘war on terror’. Brit. J. Criminology. Advance Access publication, 11 May 2009, pp. 628-645, Downloaded from http://bjc.oxfordjournals.org.

[7] CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 5 ed. Petrópolis/RJ: Ed Vozes, 2015, p. 47-48.

[8] CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 5 ed. Petrópolis/RJ: Ed Vozes, 2015, p. 52-53.


Guilherme Alcântara. . Guilherme Alcântara é advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Toledo Prudente Centro Universitário. Estagiário docente na mesma instituição. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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