Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 94/19[1] que tem como objetivo a instituição de um período de inelegibilidade de 05 anos para ex-juízes e ex-membros das carreiras do Ministério Público, a contar da data da aposentadoria ou da exoneração, impedindo-os de se lançarem candidatos a qualquer cargo eletivo do país. Nas últimas semanas, a questão foi novamente discutida, já se dizendo de um prazo de inelegibilidade de 08 anos. Ex-juízes e ex-membros das carreiras do Ministério Público somente exerceriam a capacidade eleitoral passiva com plenitude após o decurso do prazo de 08 anos.
A justificativa para tais iniciativas reside no fato de que o exercício das funções inerentes às carreiras da magistratura e do Ministério Público não pode ser maculado por eventuais intenções eleitoreiras do futuro candidato. Também é fundamento utilizado pelos defensores da ideia impedir que magistrados e membros do Ministério Público que pretendam, após a aposentadoria ou exoneração, lançarem-se candidatos, usem do prestígio e da projeção dos seus cargos para criar desequilíbrio na cena política.
Não se ignoram aqui as relevantes preocupações com a imparcialidade judicial e que os cargos da magistratura e do MP não sejam utilizados para proveito pessoal eleitoral. A imparcialidade é um atributo essencial de um órgão julgador, significando que o Judiciário, na prestação da tutela jurisdicional, a ninguém deve privilegiar, estando afastado dos interesses particulares das partes, tratando-as com isonomia e paridade de armas. A garantia do juiz imparcial está prevista na Constituição de1988 em seu artigo 5º, incisos XXXVII e LIII, com as garantias da vedação aos tribunais de exceção (“ex post factum”) e do juiz natural. A imparcialidade também está prevista no Código de Processo Civil de 2015 em seu artigo 7º (paridade de tratamento). Pode-se dizer que, juntamente com a fundamentação das decisões judiciais (art. 93, inciso IX, da CF/88), a imparcialidade é o que legitima a atuação de um órgão julgador no exercício do poder jurisdicional.
No entanto, com todo o respeito aos defensores da ideia de se instituir um longo prazo de inelegibilidade para juízes e membros do MP, se for feita uma comparação com a situação de outras carreiras de estado ou militares, tais quais defensores públicos, integrantes das carreiras da advocacia pública, delegados de polícia, auditores fiscais, oficiais das forças armadas e das polícias militares, criar-se-ia uma distinção que não seria, ao menos a princípio, razoável. Tais carreiras, por vezes, também conferem prestígio, visibilidade e possibilidade de influência eleitoral ilícita aos seus integrantes e não foram incluídas na discussão. Assim, haveria a criação, para ex-juízes e ex-membros do MP, de uma situação de inelegibilidade desproporcional se comparada com integrantes de outros importantes cargos citados no artigo 1º, incisos II a VI, da lei Complementar nº 64/90[2], esta que prevê prazos de desincompatibilização que variam de três a seis meses.
A LC nº 64/90, em seu artigo 1º, inciso I, prevê períodos de inelegibilidade de 08 anos apenas para situações nas quais há infringência de dispositivos da Constituição Federal ou de lei infraconstitucional por parte do pretenso candidato, a exemplo das situações previstas na alínea “e” que foram incluídas pela Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). No caso específico de magistrados e membros do MP, conforme alínea “q” do artigo citado, eles se tornam inelegíveis por 08 anos quando forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, tenham perdido o cargo por sentença judicial ou pedido exoneração ou aposentaria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar.
Ou seja, em todas as hipóteses em que LC nº 64/90 prevê prazos longos de inelegibilidade, mormente o de 08 anos, elas se referem a uma espécie de reprimenda da legislação eleitoral para pretensos candidatos que não possuem uma vida pregressa que recomende o exercício da função pública eletiva. Seria uma forma de proteger a probidade no exercício do mandato. Nesse sentido, parece não ser razoável se equiparar o simples fato do exercício do cargo público de magistrado ou de membro do MP à situações em que a lei eleitoral busca sancionar infratores da Constituição e da lei. Mesmo o prazo de 05 anos previsto no Projeto de Lei Complementar nº 94/19 reveste-se da mesma problemática: parece sancionador pelo simples exercício do cargo de magistrado ou de membro do MP.
Mas o argumento principal que vai de encontro a tais iniciativas reside no fato de que os direitos políticos previstos no artigo 14 da Constituição Federal, dentre eles o de ser votado, tratam-se se direitos fundamentais e, como tais, cláusulas pétreas nos termos artigo 60, § 4º, II e IV, da mesma Constituição. E mais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos[3], em seu artigo XXI.1 prevê os direitos políticos, incluindo aqui a capacidade eleitoral passiva, como direitos humanos ao estabelecer que “todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos”. Na mesma toada e citando expressamente a capacidade eleitoral passiva, ou seja, o direito de ser votado, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[4] diz em seu artigo 25, “b”, que “todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: (…) b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; (…)”. O referido pacto internacional estabelece que os direitos políticos não podem sofrer nenhuma restrição infundada. E poderia ser entendido como restrição infundada longo prazo de inelegibilidade para ex-integrantes de específicas carreiras de Estado que, a toda evidência, são cidadãos que possuem pleno gozo dos seus direitos políticos.
Já a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)[5], incorporada ao ordenamento jurídico nacional com status de supralegalidade por ser um tratado internacional de direitos humanos (art. 5º, § 2º, CF/88), estabelece em seu artigo 23, item 1, alínea “b”, que todos os cidadãos de um país têm o direito de “votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores”. Já o item 2 do mesmo artigo diz, de maneira contundente, que “a lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”.
Vê-se que, pelos tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil e incorporados ao direito interno com status supralegal, as únicas hipóteses exclusivas que justificam inelegibilidades tão longas dizem respeito a motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental e condenação por juiz competente. O Projeto de Lei Complementar nº 94/19 e as ideias a ele correlatas que preveem longos prazos de inelegibilidade não decorrentes de sanção parecem não se enquadrar em nenhuma dessas hipóteses taxativas.
Também não parece se sustentar o argumento de que o candidato a cargo eletivo que já tenha ocupado os cargos juiz ou de membro do Ministério Público teria vantagem no pleito com relação aos demais candidatos. Ora, se assim for compreendido, deveria ser abolida toda e qualquer possibilidade de reeleição no país para ocupantes de cargos eletivos do Legislativo e do Executivo que concorrem à reeleição no exercício de seus respectivos mandatos.
Com relação a salutar preocupação de que o juiz ou o membro do Ministério Público que pretendam se lançar candidatos não utilizem seus cargos com o fim de desbalancear o jogo eleitoral, entende-se, respeitando-se posicionamentos em sentido contrário, que a solução para a questão deveria ser tomada de maneira tópica e não de forma geral. Além da atuação do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público e das corregedorias locais no âmbito administrativo, uma solução interessante para a problemática seria a previsão, na Lei de Inelegibilidade, da possibilidade de ajuizamento de uma representação na Justiça Eleitoral para que, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, haja a declaração de inelegibilidade, aí sim, por 08 anos, do ex-membro do Judiciário ou do Ministério Público caso comprovado o abuso no exercício da jurisdição ou nas funções do MP para fins eleitorais.
Bastaria a inserção de mais uma alínea no artigo 1º, inciso I, da LC nº 64/90 com redação bastante parecida com a da alínea “d” do mesmo dispositivo legal que é voltada para o abuso do poder econômico ou político. A solução tópica aqui sugerida seria, a princípio, suficiente para resguardar a imparcialidade judicial e a probidade no exercício das funções pelo membro do MP sem estabelecer uma regra de inelegibilidade com longo prazo, tal qual a do Projeto de Lei Complementar nº 94/19 que, salvo melhor juízo, vai de encontro aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte e ao texto da Constituição Federal de 1988.
Deve-se garantir a todo o cidadão que não cometeu irregularidades e atende aos requisitos constitucionais e legais o livre exercício dos seus direitos políticos, incluindo aqui ex-juízes e ex-membros do MP, pois a capacidade eleitoral passiva, o direito de ser votado, trata-se de direito humano fundamental.
Notas e Referências
[1] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar n° 94/2019. Disponível em <https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=relevancia&abaEspecifica=true&filtros=%5B%7B%22numero%22%3A%2294%22%7D,%7B%22ano%22%3A%222019%22%7D%5D&tipos=PLP >. Acesso em: 05 ago. 2020.
[2] BRASIL. Lei Complementar nº 64 de 18 de maio de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htm >. Acesso em: 05 ago. 2020.
[3] Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso: em 05 ago. 2020.
[4] BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 05 ago. 2020.
[5] Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 05 ago. 2020.
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