Mais de cem anos após a descoberta dos irmãos Lumieré não se contesta mais que o cinema seja uma arte. Paulo Emílio Sales Gomes, em um de seus vários ensaios, comenta a obra Fantasia, realizada por Walt Disney, afirmando: “levo o cinema a sério porque o considero uma arte. O cinema é uma arte porque possui um meio próprio de expressão.” (2015, p. 176).
Para o ensaísta “cinema refaz, estiliza e exprime a realidade por meio de imagens em movimento em sucessão[1]” (2015, p. 176). É essa sucessão de imagens que caracteriza o cinema.
Quando inventado, o cinema serviu primeiro para registrar a vida e era então uma extensão da fotografia. Com o tempo, passou a ser regido por regras próprias e a não se preocupar simplesmente com a reprodução da vida, mas em intensificá-la.
Marcel Martin explica em seu estudo “A Linguagem Cinematográfica”, que o cinema se converteu, assim, em linguagem, graças a uma escrita própria que se encarna em cada realizador sob a forma de um estilo, tornando-se, assim, o cinema um meio de comunicação, informação e propaganda, o que não contradiz, absolutamente, sua qualidade de arte (2011, p. 16).
André Bazin, que encabeça um grupo seleto dos melhores e mais influentes críticos de cinema de todos os tempos, ao responder a pergunta “O que é o cinema?” afirma que o cinema é uma linguagem (2014, p. 34).
O mundo acadêmico da área jurídica tem se esforçado em ultrapassar o isolamento do Direito, de modo a buscar formas de compreendê-lo e fazê-lo ser compreendido para além da doutrina e das leis, ou seja, no campo das artes.
Carlos Cancellier de Olivo e Renato de Oliveira Martinez observam que entre as várias intersecções abertas ao Direito com outras artes, uma que tem se afirmado mais do que as outras é a do “Direito e Literatura”, cuja produção já traz referências às origens do campo de estudo e aos seus principais marcos teóricos, revelando uma empreitada que ganhou visibilidade nos últimos anos, principalmente devido ao arejamento que conferiu ao estudo do Direito (2015).
Novas perspectivas acadêmicas se revelam quando se procura conjugar o Direito e o cinema. O cinema, como uma das contribuições artísticas e culturais mais relevantes na contemporaneidade, tem sido fundamental na revelação de questões sociais importantes, sem abdicar de seu valor artístico.
A linguagem cinematográfica é mais direta, mais imediata, tem movimento e exige menos contribuição daqueles que com ela interagem, se comparada com a literatura, o que em nada desmerece esta forma de arte, mas tão somente revela que o cinema é regido por leis diferentes, talvez mais estritas que a literatura. É importante se afirmar, assim, que o cinema não conduz à preguiça intelectual, porque como toda arte, nos convida a ver a vida de forma mais intensa, depositando o nosso olhar sobre temas com significação social importante.
Aqui a busca é no sentido de se fazer uma interlocução entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Cinema, a partir do referencial teórico e normativo da Proteção Integral, acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, que coloca crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. A partir dessa interação, tentar compreender quais são as mediações possíveis entre os direitos e interesses da criança e do adolescente e o cinema, em especial no tocante à compreensão da realidade social da infância e adolescência e a sua (des)proteção.
No tocante às crianças e aos adolescentes, é difícil encontrar filmes, curtas-metragens ou documentários que relatem situações ou histórias felizes. A maior parte deles funciona como uma espécie de denúncia de situações diversas que afligem crianças e adolescentes por todo o mundo, desde os tempos mais remotos.
Envolvimento com drogas, marginalização, exclusão social, discriminação racial, extrema pobreza, dentre outros fatores, levam inúmeras crianças e adolescentes a se envolverem com o crime.
A violência sexual sob a qual são submetidas muitas crianças e adolescentes, vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, da prostituição para manutenção do vício em drogas ou vítimas de pedofilia, muitas vezes praticadas por pessoas próximas ou por instituições consagradas pela sociedade e pelo Estado, também são temas bastante recorrentes.
Mais recorrente ainda, é o tema da educação e do tratamento digno que deve ser dispensado à pessoa que está em desenvolvimento. Direito fundamental que não é respeitado, e costuma ser retratado como um remédio, que talvez sozinho não acabe com todos os problemas, mas que pode, progressivamente, diminuí-los. Em comum, todas as crianças sonham, criam um mundo imaginário paralelo à realidade sufocante na qual vivem e têm anseios de um dia mudarem suas vidas.
Poucas são aquelas que de fato se tornam totalmente adultas precocemente. No olhar de cada uma, ainda há muito do infantil que se mistura à exploração pelo trabalho ou sexual, à gravidez indesejada, ao uso de drogas, à discriminação, a falta de saúde e educação adequadas e à violência brutal à qual são submetidas.
Apesar do vasto número de obras que abordam o tema “criança e adolescente”, apresentam-se títulos que revelam um convite do cinema à reflexão sobre problemas sociais e sua perspectiva jurídica, constituindo, assim, importante ferramenta acadêmica e de análise jurídica e sociológica.
- SIX CUP OF CHAI
Produção/Direção: Laila Khan
País: Índia
Ano: 2014
O curta retrata a história de um garoto, morador da favela mais pobre de Mumbai. Ele trabalha todos os dias vendendo e fazendo entregas de chás. O seu maior sonho é ter uma vida como a das outras crianças, frequentando a escola. Isso fica evidenciado em uma das poucas cenas em que aprece feliz, por ter achado um estojo de lápis na rua.
Assim, o filme aborda a questão do trabalho infantil e as suas consequências, bem como as dificuldades que muitas crianças e adolescentes enfrentam para terem acesso à educação.
- QUANDO A CASA É A RUA
Produção/Direção: Thereza Jessouroun
País: Brasil
Ano: 2012
Trata-se de um documentário filmado na Cidade do México e no Rio de Janeiro. Foram entrevistados vários jovens e adolescentes em situação de rua que relatam os motivos pelos quais foram parar nas ruas. Nascidos em famílias pobres e frágeis, fogem de suas casas, ainda crianças, para viverem sozinho nas ruas, onde se sentem a salvo da violência sofrida. Acabam se envolvendo com o tráfico e o uso de drogas e participando de roubos e furtos e, até mesmo, se prostituindo para poder sobreviver.
O documentário mostra, também, a atuação dos grupos de acolhimento criados no Rio de Janeiro, em atendimento ao quanto disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
- JUNO
Produção/Direção: Jason Reitman
País: Canadá
Ano: 2007
O filme conta a história de uma adolescente que engravida após ter sua primeira relação sexual com o melhor amigo. Após desistir de fazer um aborto, mas ainda não desejando ser mãe, decide entregar a criança à adoção e busca contato com um casal que queira adotar seu filho, tentando evitar, assim, causar sofrimento à criança.
O filme aborda a questão do aborto, tema ainda polêmico em vários países do mundo, que divide opiniões entre aqueles que defendem o direito de escolha da mulher e o direito à vida da criança em gestação. A questão dialoga com o direito à educação, uma vez que a educação sexual ainda é um tabu em nossa sociedade, mesmo ante os frequentes os casos de gravidez na adolescência.
- JAGTEN/A CAÇA
Produção/Direção: Thomas Vinterberg
País: Dinamarca
Ano: 2013
Relata a história de um professor do ensino infantil que é acusado, pela diretora da escola em que trabalha, de ter abusado sexualmente de uma das crianças. A criança em questão é filha do seu melhor amigo, que inventa a história por ter ficado com raiva do professor, após ele ter recusado um presente. A partir daí, sua vida se transforma por completo, pois, mesmo sem provas concretas, ele acaba sendo condenado previamente por todos da cidade e passa a ser tratado com hostilidade e violência.
O filme aborda a questão do abuso sexual infantil/pedofilia. Ainda que seja aparente no filme que nada tenha acontecido, são muito frequentes os casos de abusos de crianças praticados por pessoas próximas. Há, aproximadamente, 20 anos, um caso parecido ocorreu em São Paulo e teve grande repercussão, ficando conhecido como o “Caso da Escola de Educação Infantil Base”. Os donos da Escola foram acusados, sem provas, de terem molestado as crianças. Entretanto, já era tarde demais e os graves danos sofridos pelo casal fossem não foram evitados ante a comprovação de que as acusações eram injustas.
- TOMBOY
Produção/Direção: Céline Sciamma
País: França
Ano: 2012
O filme conta a história de uma menina de 10 anos de idade que tem dificuldades de manter relações sociais, por ter uma identidade sexual diferente do padrão. Por este motivo, não são raras as passagens nas quais Laurie sofre violência e discriminação.
- O COMEÇO DA VIDA
Produção/Direção: Estela Renner
País: Brasil
Ano: 2016
Passando por diversos países, o documentário faz uma análise aprofundada e um retrato dos primeiros mil dias de um recém-nascido, tempo considerado crucial pós-nascimento para o desenvolvimento saudável da criança, tanto na infância quanto na vida adulta.
Importante lembrar que no mesmo ano de lançamento do filme foi aprovada a Lei n. 13.257/2016, conhecida como Marco da Primeira Infância, que trouxe importantes avanços no que tange à proteção das crianças que contam com até 06 anos de idade, tendo em vistas as peculiaridades dessa fase inicial de crescimento.
- BEASTS OF NO NATION
Produção/Direção: Cary Fukunaga
País: Estados Unidos
Ano: 2015
O filme conta a história de um garoto africano que, após perder a família num ataque realizado à sua comunidade em meio à guerra, é “acolhido” (caso contrário seria morto) por um grupo de mercenários. Contudo, para se integrar ao grupo, o garoto passa a ser usado, assim como outras crianças, como soldado de guerra.
Não muito longe, é possível fazer um paralelo com o quanto vivenciamos no Rio de Janeiro e em outros locais pelo Brasil, onde crianças são usadas nas atividades que envolvem o tráfico de drogas.
- MENINO 23
Produção/Direção: Belisário Franca
País: Brasil
Ano: 2016
Trata-se de um documentário produzido a partir das pesquisas realizadas pelo historiador Sidney Aguillar, que descobriu uma passagem obscura de nossa história: a exploração de meninos negros órfãos, na década de 1930. Essas crianças eram levadas a uma fazenda localizada no interior do Estado de São Paulo, e lá eram obrigadas à trabalhar no campo. O título referencia uma dessas crianças, uma vez que, chegando à fazenda, elas perdiam suas identidades e passavam a ser tratadas por um número.
O documentário, apesar de tratar de fatos ocorridos no passado, é essencial para se pensar acerca da exploração do trabalho escravo infantil, ainda tão comum em nossa sociedade.
Servindo esses títulos como uma introdução ao assunto, fica o convite a todos para que assistam as obras cinematográficas indicadas e a reflitam sobre os temas neles tratados, que revelam a triste realidade na qual, muitas vezes, estão inseridas nossas crianças e adolescentes, o que só reafirma a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Doutrina da Proteção Integral, nele consagrada.
Notas e Referências
DE OLIVO, Luis Carlos Cancellier, MARTINEZ, Renato de Oliveira. Direito & Cinema no Brasil: um campo em formação. Portal empóriododireito.com.br. 2015.
Acesso em 15 de Fevereiro de 2016.
BAZIN, André. O que é Cinema? São Paulo: Ed. Cosac Naify. 2014.
BELOFF, Mary. Los derechos del niño en el sistema interamericano. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2008.
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Natureza e implantação do novo direito da criança e do adolescente. In: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
GOMES, Paulo Emílio Sales. O Cinema no Século. São Paulo: Ed. Companhia das Letras 1ª Ed. 2015
LIBERATI, Wilson Donizeti. Direito da criança e do adolescente. 3. ed. São Paulo: Rideel, 2009.
MARTIN, Marcel. A linguagem Cinematográfica. São Paulo: Ed. Brasiliense Ltda. 2. ed. 2011.
NUNES, Adeildo. Da execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
PEREIRA, Tania da Silva. Direito da criança e do adolescente: Uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo: Ed. Ltr, 1997.
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