O estranho poder de matar e as misérias do processo penal que há tempos Francesco Carnelutti anunciava – Por Bruna Roberta de Borba e Thiago M. Minagé

05/10/2017

Como anunciado por muitos, durante muito tempo, enfim, aconteceu uma tragédia. No dia 2 de outubro de 2017, as mídias anunciaram que “Investigado pela PF, reitor da UFSC comete suicídio em shopping de Florianópolis[1]” e um silêncio reflexivo se espalhou pela comunidade jurídica, e verdadeiro espanto, porém, agora, um silenciar covarde dos órgãos estatais da [mal] dita “justiça criminal” [sentido amplo]. Os primeiros atônitos por uma desgraça a tempos anunciada e “denunciada” por outros, enfim, não sabemos o que passou por suas mentes. De tudo, uma certeza: o processo penal mata!

Tudo começou no dia 14 de setembro deste ano, quando mais de 100 policiais federais cumpriram mandados judiciais, expedidos pela 1ª Vara de Justiça Federal em Santa Catarina, em virtude de uma ação que buscava “investigar” uma organização criminosa que desviava recursos que seriam usados em cursos de Educação a Distância (EaD) da universidade.

Na ação, Luiz Carlos Cancellier de Olivo e outras seis pessoas – que não tiveram os nomes divulgados – foram presas. Por fim, citando fonte da Polícia Civil, o jornal Diário Catarinense diz que Olivo deixou um bilhete: “Minha morte foi decretada no dia da minha prisão[2]”.

Poucos dias antes da sua morte, em defesa, Luiz Carlos Cancellier de Olivo escreveu um artigo em que denúncia a humilhação sofrida e as barbaridades cometidas dentro da investigação policial:

“A humilhação e o vexame a que fomos submetidos — eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) — há uma semana não tem precedentes na história da instituição. (…) Nos últimos dias tivemos nossas vidas devassadas e nossa honra associada a uma “quadrilha”, acusada de desviar R$ 80 milhões. E impedidos, mesmo após libertados, de entrar na universidade.

(…) Para além das incontáveis manifestações de apoio, de amigos e de desconhecidos, e da união indissolúvel de uma equipe absolutamente solidária, conforta-me saber que a fragilidade das acusações que sobre mim pesam não subsiste à mínima capacidade de enxergar o que está por trás do equivocado processo que nos levou ao cárcere.Uma investigação interna que não nos ouviu; um processo baseado em depoimentos que não permitiram o contraditório e a ampla defesa; informações seletivas repassadas à PF; sonegação de informações fundamentais ao pleno entendimento do que se passava; e a atribuição, a uma gestão que recém completou um ano, de denúncias relativas a período anterior[3].

Trata-se de só mais um processo que busca a condenação a qualquer custo, como bem colocado dias atrás pelo Min. Do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Reis e publicado por Matheus Teixeira repórter do Conjur com o seguinte conteúdo[4]: 

A omissão das instituições, apontou, levou o Brasil a uma situação absurda, onde as pessoas precisam ter coragem para defender o que acham justo. A presunção de inocência, segundo ele, acabou. E um dos motivos disso é uso indevido da mídia por instituições. “Quem é exposto na imprensa, independente se de maneira justa ou injusta, do dia para noite está condenado”, lamentou.

Lamentável, pois existe uma cruzada na busca por um culpado [qualquer um que seja] e começa a busca incessante por provas para condená-lo, nada fora deste cenário, deixando de lado, até mesmo, o próprio culpado [querem um e pouco importando se não for o culpado – termo impropriamente empregado]. Diante disto, as pessoas sofrem e morrem, basta recair indícios de ter cometido um crime que o indivíduo tem sua vida devasta, conforme explica Carnelluti:

Ao homem, quando sobre ele recai a suspeita de ter cometido um delito, é dado ad bestias, como se dizia em um tempo dos condenados oferecidos como comida para as feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da Constituição, em que se tem a ilusão de garantir a incolumidade do imputado, é praticamente inconcebível com aquele outro artigo que sanciona a liberdade de imprensa[5].

O movimento é reflexo, basta uma notícia, para que o inquérito [investigação] se dissemine sobre a população gerando outra notícia, que dá fruto a uma denúncia que, gera ainda mais notícias, alimentando toda a mídia. Sem muitos elementos, a notícia sobre o suspeito é lançada e aos poucos torna-se quase que uma espécie de “convicção” e o resultado todos já sabem qual é.

Ainda, sobre o tema os advogados do escritório Galli, Brasil, Prazeres, em nota, desabafaram: “Que sua dolorosa partida sirva de reflexão para todos, especialmente àqueles ávidos por holofotes que, entorpecidos por ego e vaidade, extrapolam suas funções institucionais, e aos demais que divulgam e replicam notícias de sua maneira açodada e equivocada, destruindo carreiras, reputações e vidas[6].”

Em nota, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), divulgou:

“O sentimento de pesar compartilhado por todos (as) os (as) reitores (as) das Universidades Públicas Federais, neste momento, é acompanhado de absoluta indignação e inconformismo com o modo como o reitor Cancellier foi tratado por autoridades públicas ante a um processo de apuração de atos administrativos, ainda em andamento e sem juízo formado.

É inaceitável que pessoas investidas de responsabilidades públicas de enorme repercussão social tenham a sua honra destroçada em razão da atuação desmedida do aparato estatal.

É inadmissível que o país continue tolerando práticas de um Estado policial, em que os direitos mais fundamentais dos cidadãos são postos de lado em nome de um moralismo espetacular[7].”

Diante deste cenário, de um processo penal que faz sofrer (gera dor), há aproximadamente sessenta anos o advogado e jurista italiano Francesco Carnelutti publicou o seu livro “As misérias do processo penal”. Carnelutti já ressaltava:

Infelizmente, a justiça humana está feita de tal maneira que não somente se faz sofrer os homens porque são culpados, senão também para saber se são culpados ou inocentes. (…) Santo Agostinho escreveu a este respeito uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais cruéis, foi abolida, ao menos no papel; mas o próprio processo é uma tortura[8]. (grifo nosso)

Para Carnelutti o processo é uma tortura e concordamos profundamente com o jurista italiano. Um processo penal que faz sofrer desde a investigação e até mesmo após a sentença[9]. Um processo que mata pessoas e destrói famílias. Os escritos de 60 anos atrás talvez nunca fizeram tanto sentido como com a realidade que estamos presenciando.

A política criminal encontra-se em crise pois faz sofrer culpados e inocentes, pessoas morrem e algumas agradecem por não ter sido elas a vítima desse sistema. Por fim, são tempos que pedem reflexão, mas também atitudes, precisamos compreender o que é presunção de inocência e que o reflexo de uma investigação em andamento, sem qualquer juízo formado, está levando pessoas a tirarem a própria vida.

Por fim:

Basta apenas ter surgido a suspeita, o imputado, sua família, sua casa, seu trabalho, são inquiridos, requeridos, examinados, despidos, na presença, de todo mundo. O indivíduo, desta maneira, é transformado em pedaços. E o indivíduo, recordemo-nos, é o único valor que deveria ser salvo pela civilidade[10].

Que sirva de alerta para todos, pois o exercício do poder, em qualquer escala, tem como ponto de partida uma relação de conhecimento e força, estabelecida em um dado momento histórico, na guerra e pela guerra, ou seja, o poder político, como forma de expressão da guerra, tem como finalidade a pseudo-busca da paz na sociedade civil, perseguida pelos detentores do conhecimento e executores do poder [normalmente pela satisfação de seus intentos].

O poder político tem como função perpetuar a relação de força, por meio de uma guerra silenciosa, ardilosa, cruel, e por que não, assassina, tendo como centro das atenções o foco de onde emanam as demandas do poder [os interesses defendidos], as realidades sociais [da parcela social que influencia no exercício do poder].

De qualquer forma, tudo que for dito, será negado, rejeitado e tratado como ofensivo pelos detentores do monopólio do exercício do poder, até mesmo, no intuito de preservar a ampla e irrestrita possibilidade do exercício do poderio desenfreado. Cabe-nos resistir, confrontar e demonstrar que o relato de um filme de ficção[11] intitulado “O estranho poder de matar” que relata a história de um louco que viveu certa época com os aborígenes australianos, que ensinaram a ele o segredo de um grito mortal, que tem o poder de matar qualquer um que esteja ao alcance de sua voz, se faz real, em uma época, atualíssima onde uma sociedade em profunda crise de identidade legitima a barbárie deferindo poderes ilimitados a órgãos estatais que substituem o grito [do filme] por papéis ou telas de computador [processos]. O resultado: a perpetuação desse estranho poder de matar pessoas.


Notas e Referências:

[1] Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2017-10-02/reitor-ufsc-morto-shopping.html, acessado em 03/10/17.

[2] Fonte: http://dc.clicrbs.com.br/sc/colunistas/moacir-pereira/noticia/2017/10/minha-morte-foi-decretada-no-dia-de-minha-prisao-diz-reitor-da-ufsc-em-bilhete-9921612.html, acessado em 03/10/17.

[3] Fonte: http://noticias.ufsc.br/2017/09/jornal-o-globo-publica-artigo-do-reitor-luiz-carlos-cancellier/, acessado em 03/10/17.

[4] http://www.conjur.com.br/2017-set-15/mp-usa-midia-forcar-condenacoes-leis-imorais-ministro

[5] Idem, p.66-67.

[6] Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1923554-reitor-afastado-da-ufsc-e-encontrado-morto-em-shopping-de-florianopolis.shtml, acessado em 03/10/17.

[7] Fonte: https://www.ufjf.br/noticias/2017/10/02/nota-de-pesar-pela-morte-do-reitor-da-ufsc-luiz-carlos-cancellier/, acessado em 03/10/17.

[8] CARNELUTTI, Francesco, As Misérias do Processo Penal, São Paulo: editora Pillares, 2006, p. 66.

[9] “O preso, ao sair da prisão, crê já não ser um preso; mas nós não. Para nós ele é sempre um preso, um encarcerado; pelo mais, diz-se ex-encarcerado; nesta expressão está crueldade e está o engano. A crueldade está em pensar que, tal como foi, deve continuar sendo. A sociedade crava em um o seu passado. (CARNELUTTI, Francesco, As Misérias do Processo Penal, São Paulo: editora Pillares, 2006, p.113)”.

[10] Idem, p.67.

[11] https://www.livrariacultura.com.br/p/filmes/filmes/suspense/o-estranho-poder-de-matar-3200700


Imagem Ilustrativa do Post: mourning // Foto de: Zachary Perlinski // Sem alterações

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