O estelionato majorado pela maioridade senil

15/02/2016

Por Bruno Gilaberte - 16/02/2016

Embora recente, a inovação legislativa promovida pela Lei n. 13.228 de 2016 – que criou para o estelionato uma causa de aumento da pena (vítima maior de sessenta anos) – já foi amplamente comentada por vários articulistas. Um dos mais interessantes artigos é assinado por Maurício Stegemann Dieter.[1] O autor lamenta a pobreza dos debates legislativos sobre o tema, afirmando que “à parte eminentes falhas técnicas na redação do novo parágrafo recém-incluído, o problema continua a ser de fundo: a justificativa do deputado Márcio Marinho (PRB/BA) ao PLC 23/2015, apresentado em 2010, tem a profundidade de um pires”. De fato, a produção de normas jurídico-penais no Brasil há muito é precedida por discussões rasas, o que afeta não apenas a qualidade da legislação, mas também impede a verificação de sua pertinência.

Situando o tema, a açodada e hipertrofiada edição de leis penais no Brasil, não raro, tem como pano de fundo aquilo que Slavoj Žižek[2] denomina biopolítica pós-política: por pós-política entendamos a superação das causas ideológicas em prol de um discurso de gestão e administração eficazes; já a biopolítica cuida da regulação de bem-estar e segurança da população. Consoante Žižek, essas duas dimensões, hoje, se sobrepõem: uma vez deixado de lado o discurso ideológico (pós-política), a biopolítica surge como forma de se atrair o interesse dos cidadãos. Para tanto, tem-se a pregação do medo e a difusão do sentimento de insegurança como elementos catalisadores da mobilização popular. Promove-se a defesa contra o assédio, pois os cidadãos são vítimas em potencial. Evidentemente, o fenômeno busca dividendos político-eleitoreiros, apoiado em um sistema que nega ou tenta negar direitos a certas pessoas (os possíveis assediadores), ou recrudesce o tratamento penal a elas conferido. Nesse sentido, temos diversos exemplos em nossa legislação, como a Lei dos Crimes Hediondos, a criação do regime disciplinar diferenciado, a Lei das Organizações Criminosas etc.[3] A reconhecida seletividade penal, saliente-se, ganha espaço com a consolidação do discurso do medo, pois dele se aproveitam as classes políticas para a manutenção da estratificação social (atrela-se a pecha de assediador a quem quer que pretenda subverter a ordem instalada).

Contudo, não nos parece que seja esta a conotação que deva ser emprestada à majorante do estelionato. O discurso, aqui, é diferente, calcado na promoção política através da defesa de pessoas especialmente necessitadas. Há claro simbolismo penal não ancorado na urgente satisfação de um clamor popular, mas sim na busca por espaços políticos entre nichos de eleitores (no caso em apreço, os idosos). Nenhuma novidade nisso, diga-se de passagem, já que grupos sociais corriqueiramente recebem tratamento político privilegiado daqueles que os tem como base eleitoral, ora através de ações justas (a maioria das ações afirmativas aqui se insere), ora através de medidas descabidas. Em outras palavras, embora o parlamentar que apresentou a projeto de lei (o qual redundou na majorante em apreço) tenha se referido – na justificativa – à necessidade de punição adequada a estelionatários como forma de se oferecer maior proteção a pessoas idosas,[4] não adotou essa postura em meio a um sentimento de pânico difuso, com reclamos pela caça aos fraudadores (ao contrário dos protestos pela redução da maioridade penal). Visou tão-somente a convencer os idosos de que há uma preocupação para com seu bem-estar e que o manejo do direito penal promoverá proteção mais intensa ao seu patrimônio, com consequente prevenção de ilícitos. Um “faz-me rir” travestido de boas intenções.

Apregoamos que nem todo simbolismo é prejudicial, pois é certo que o legislador não pode se desincumbir daqueles grupos sociais com os quais compartilha sua agenda política. Em outra oportunidade, remamos contra a maré e defendemos que a criação da modalidade qualificada de homicídio denominada feminicídio não representava um simbolismo nefasto.[5] Inclusive expusemos razões pelas quais consideramos a elaboração legislativa salutar. Como bem ensina Hassemer: “No es apropiado sólo para denunciar las leyes y su aplicación; sería entonces un comentario anacrónico señalar el carácter simbólico del Derecho penal moderno. Ya que también las normas dictadas para ser efectivas persiguen fines simbólicos, el concepto no puede amparar un reproche. A partir de qué momento la mezcla de componentes instrumentales y simbólicos deviene crítica es una cuestión que no puede precisarse sólo con los rasgos del Derecho penal simbólico”.[6] Portanto, é insuficiente demonstrar a carga simbólica da nova causa de aumento da pena do estelionato; mister se indague: trata-se de um simbolismo que distorce o sistema penal brasileiro, ou podemos aceitá-lo de bom grado?

Um olhar sistemático revela que a majorante está em consonância, ao menos em parte, com outras normais penais inseridas na mesma codificação em que ela se encontra. Por exemplo, o art. 62, II, h, do CP determina o agravamento da pena quando o delito é praticado contra pessoa maior de sessenta anos; a mesma faixa etária determina, no homicídio, aumento da pena em um terço (art. 121, § 4º, in fine, CP); o crime de abandono material (art. 244, CP) exige como elementar, em uma de suas formas, vítima com idade superior a sessenta anos. Mas isso não basta para que a produção legislativa seja pertinente: a norma penal é razoável quando encontra inserção na base principiológica reinante; quando é eficaz na produção dos efeitos pretendidos; e quando suas consequências não são indesejáveis. Qualquer processo legislativo sério deve levar esses três pontos em consideração.

Podemos, tranquilamente, afirmar que a majorante do estelionato respeita os princípios que informam a matéria? De plano, já percebemos problemas de proporcionalidade: a pena máxima do estelionato, nessa modalidade, passa a ser de dez anos, tal qual a pena máxima do roubo, crime patrimonial praticado mediante constrangimento (o que o torna sensivelmente mais grave do que a fraude); pena máxima equivalente, também, ao crime de estupro, que, além de igualmente praticado mediante constrangimento, tem como objeto de tutela um dos aspectos da dignidade humana, a saber, a dignidade sexual. Parece-nos indevida, senão bizarra, tal equiparação sancionatória. Mas esse alargamento exagerado das margens penais nos leva a outras duas considerações: (a) a norma concretiza aquilo a que ela se propõe? (b) Quais são as consequências dessa elevada sanção penal? Ora, pretender a redução da criminalidade pelo incremento da punição é fechar os olhos a décadas de evolução da teoria da pena, uma vez que a outrora incensada função preventiva, comprovadamente, só mostra eficácia no que concerne a pequenas parcelas da população. A teoria agnóstica da pena, ao defender que o tratamento jurídico da sanção penal serve apenas como instrumento de contenção do poder político, deixa evidente a falência do discurso preventivo. Contamos um segredo aos leitores (mas não espalhem, pois isso pode causar comoção social!): nenhum estelionatário deixará de agir fraudulentamente contra idosos porque a pena foi elevada! Espero não ter estragado o dia de ninguém com essa revelação. E as consequências do maior encarceramento, que teoricamente será determinado pela inovação? É amplamente sabido que a pena de prisão não é recomendável na hipótese de crimes patrimoniais não-violentos, pois seus reflexos no proceder do apenado são sobremaneira perniciosos. Claro que a pena do estelionato contra idosos não será necessariamente privativa de liberdade. Admitir-se-á, em muitos casos, a substituição por penas restritivas de direitos. Mas se amplia a possibilidade de prisão. Afinal, quem precisa das Regras de Tóquio?

Em conclusão, sustentamos o caráter simbólico da inovação legislativa; ressaltamos o descompromisso técnico do legislador para com as produções em matéria penal; e defendemos o caráter nocivo da norma. Sabemos que o texto pouco influenciará a atividade legislativa futura. Todavia, é papel da doutrina apontar – sempre e incansavelmente – os anacronismos. Ainda que por vezes falemos para um público restrito.


Notas e Referências:

[1] DIETER, Maurício Stegemann. O Excesso Punitivo e Mais um Erro Legislativo, in emporiododireito.com.br, acesso em 13/02/2016.

[2] ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 45.

[3] Žižek afirma que a defesa contra o assédio é contrabalançada pelo discurso da tolerância (religiosa, racial), que cria o imperativo de proteção aos vulneráveis (aqui entendidos como as vítimas de assédios potenciais, e não na acepção dada por nosso Código Penal). Seriam, estes, aspectos de uma mesma política (idem, ibidem, p. 46).

[4] DIETER, Maurício Stegemann. Op. cit.

[5] GILABERTE, Bruno; MONTEZ, Marcus. O feminicídio sob novo enfoque: superando o simbolismo para uma dissecção hermenêutica. In emporiododireito.com.br. Acesso em 13/02/2016.

[6] HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos. In Pena y Estado. Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995. p. 23-36


Bruno-Gilaberte2. Bruno Gilaberte Freitas é delegado de polícia civil no RJ, MBA em gestão da segurança pública, professor universitário e em pós-graduação, autor de livros jurídicos e presidente da Banca de Direito Penal do concurso para delegado de polícia do RJ. .


Imagem Ilustrativa do Post: embezzlement to corruption // Foto de: Charlie Cowins // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/charliecowins/22445586264

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura