O Estatuto da Pessoa com Deficiência e seus reflexos na exclusão da antijuricidade de um delito

02/05/2018

O estudo acerca da proteção jurídica destinada às pessoas com deficiência tomou posição de destaque nos últimos anos, em razão do advento da Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – EPD), sobretudo em decorrência de uma alteração substancial na teoria das incapacidades anteriormente adotada pelo Código Civil brasileiro.

Considerando o intuito protetivo e inclusivo pensado pelas novas normas, podemos dividir este estudo nos seguintes aspectos: (i) algumas referências históricas acerca da forma pela qual a pessoa com deficiência é vista pela sociedade, (ii) a atual proteção legal na legislação brasileira, (iii) o reconhecimento da capacidade como regra geral, (iv) o consentimento como causa supralegal de exclusão de antijuridicidade de um delito e, por fim, (v) a capacidade das pessoas com deficiência para consentir à luz do Estatuto mencionado e das normas penais.

O primeiro grande marco político acerca das pessoas com deficiência, conforme nos assinala Bruna Rocha Silveira (2012), ocorre no ano de 1970 nos EUA e na Inglaterra, quando são reivindicados a inclusão social e econômica, a acessibilidade, dentre outros direitos que, ao longo da história, fizeram com que tais pessoas fossem vistas e colocadas em uma posição de exclusão. Ainda segundo a autora, nesse mesmo contexto, surgem os Disability Studies nos países mencionados que, em apertada síntese, pode ser definido como sendo os estudos acerca da cultura, práticas, valores explorados e vivenciados em uma comunidade. Seu objetivo é fazer com que haja o entendimento de que, para fazer parte de uma sociedade, é indispensável a imersão social nestes aspectos, incluindo-se, assim, o que pode ser tipificado como “diferente”.

Em uma visão histórica, podemos apontar os seguintes principais momentos acerca do reconhecimento social sobre as pessoas com deficiência: (a) na Grécia e Roma antiga, quando a convivência com tais pessoas era comum, porém a situação era tida como sendo castigo dos deuses; (b) na Idade Média foram criados locais de reclusão para essas pessoas, sendo que parte da sociedade as viam com olhar de compaixão e outras como figuras “endemoniadas”; (c) no período do Renascimento eram tidas como pessoas possuídas por algum demônio ou espírito maligno, sendo que, em razão de um discurso religioso, práticas médicas foram adotadas para uma tentativa de cura; (d) apenas após a segunda metade do século XX são vistas como sujeitos de direito, havendo, em 1975, a proclamação da Declaração sobre os direitos das Pessoas com Deficiência pela ONU (SILVEIRA, 2012).

Não obstante o avanço histórico em matéria de proteção às pessoas com deficiência, deve-se ter em mente que a forma pelo qual a sociedade ainda na atualidade visualiza essas pessoas não muito se difere da antiguidade. Isso porque, se de um lado algumas pessoas as veem como vítimas, outras as notam como pessoas anormais que não devem ser tratadas com aspecto inclusivo.

Como primeiro grande avanço, podemos citar a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, editada em 2007 pela ONU e acolhida pelo Brasil através do Decreto nº 186/2008, com status de emenda constitucional (pela observância do art. 5º, § 3º da Constituição Federal). Seu propósito, de cunho eminentemente inclusivo, é no sentido de “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (art. 1º), o que foi, inclusive, também assinalado pelo art. 1º da Lei nº 13.146/2015. Com amparo neste último diploma legal, podemos dizer que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, razão pela qual podem exercer os direitos de família, assim como direitos sexuais e reprodutivos (art. 6º do EPD), tanto que, na atualidade, o instituto da curatela foi reformado para abarcar, tão somente, aspectos de cunho patrimonial e negocial (art. 85 do EPD), não havendo mais que se falar na conhecida frase de que “Fulano é interditado para a prática de todos os atos da vida civil”. Feitas tais observações, podemos avançar para análise do consentimento como causa supralegal de exclusão de antijuridicidade de um crime.

O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 23, dispõe sobre as excludentes de antijuridicidade ou justificantes, sendo elas: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de um dever legal e exercício regular de um direito. Essas são as causas legais de justificação ou excludentes de ilicitude. Entretanto, devido ao fato de que o legislador jamais poderia imaginar todas as hipóteses justificantes e que o Direito muita das vezes não é capaz de acompanhar as realidades sociais, foi criada uma causa supralegal de exclusão da ilicitude, denominada consentimento do ofendido.

Para explicar o conceito de consentimento do ofendido, tomamos de empréstimo as manifestações do Código Penal Italiano, que em seu artigo 50 aduz: “não é punível quem lesa ou põe em perigo um direito, com o consentimento da pessoa que desse direito pode dispor”. A adoção do consentimento do ofendido, ainda que, sem expressa previsão legal, encontra fundamento nos consectários do Direito Penal Mínimo, da ultima ratio, da função teleológica e do garantismo penal. Ora, se o Direito Penal deve encarregar-se de proteger bens jurídicos importantes e indisponíveis, não faz sentido sua entrada em campo quando tais bens jurídicos são disponíveis e não relevantes a ponto de merecer a atenção do Direito Penal.

Não fosse a aceitação do consentimento do ofendido, situações cotidianas, absurdamente, seriam submetidas a intervenção do Direito Penal. Imagine-se um caso prático que acontece todos os dias: a realização de uma tatuagem. Caso não existisse o consentimento do ofendido, o tatuador estaria incorrendo na figura típica do artigo 129 do Código Penal, in casu, lesões corporais. Neste caso, o consenso do agente em ter sua integridade física levemente avariada servirá como carta de autorização, fazendo com que embora a conduta do tatuador seja típica, restará descoberta de ilicitude.

Para que se proceda ao reconhecimento do consentimento do ofendido, é indispensável que determinados requisitos essenciais estejam presentes no momento da violação criminosa, sob pena da sua não incidência. Tais requisitos são: disponibilidade do bem violado ou ameaçado de violação, manifestação inequívoca proferida antes ou durante a conduta lesiva e capacidade do ofendido para consentir. Impende ressaltar que, tais requisitos são cumulativos, sendo que, havendo a ausência de apenas um, descaracterizado restará o consentimento.

O primeiro requisito é a disponibilidade do bem, ou seja, passível de disposição pelo seu titular. O consentimento só será válido se recair sobre um bem jurídico exclusivamente de interesse privado. Em consequência, imperioso destacar que o consentimento é inválido quando proferido em face de bens jurídicos coletivos. Nas palavras de Rogério Sanches (2017), não se admite o consentimento quando ele versa sobre bem jurídico indisponível.

No tocante à manifestação inequívoca proferida antes ou durante a realização da conduta delituosa, faz-se necessário que o consentimento seja manifestado de maneira indubitável, para que o agente violador tenha total conhecimento subjetivo de que age em face da aceitação do consentimento da vítima. Nas lições de Rogério Greco (2010), necessário ainda que o consentimento seja prévio ou concomitante à lesão ao bem jurídico, pois, o fato da vítima anuir com a prática da conduta após a sua consumação não poderá afastar a ilicitude ou a tipicidade do fato.

Surge agora um ponto crítico de nossa avaliação: a análise da capacidade para consentir. Pois bem, de acordo com Rogério Greco (2013), somente aquele que for penalmente imputável, ou seja, possuir 18 anos completos e estiver em perfeito estado de higidez mental (critério biopsicológico), é que poderá consentir.

A questão da capacidade de uma pessoa com deficiência para o exercício do consentimento apontado neste trabalho encontra-se sem definitiva solução. A uma porque o EPD não fez qualquer modificação no Código Penal. A duas porque a própria legislação penal, que teve sua importante modificação em 1984, também não fez qualquer menção, como já dissemos, ao consentimento e, sequer, da análise deste no que tange às pessoas com deficiência. Diante desse contexto de incerteza e ausência de segurança jurídica, podemos propor algumas soluções até que eventualmente seja pacificado o tema, seja por lei ou pela jurisprudência.

O EPD, de um lado, objetiva assegurar o exercício dos direitos e liberdades fundamentais da pessoa com deficiência visando sua inclusão (art. 1º), mas, de outro lado, também objetiva a proteger contra formas de negligência, violência, tortura, crueldade, dentre outros aspectos (art. 5º).

Com isso, temos que, os direitos garantidos através do art. 6º (família, sexualidade e direitos reprodutivos)  somado ao fato de as pessoas com deficiência terem, como regra, a capacidade legal plena (art. 84), devem ser objeto de conjugação com os objetivos apontados no parágrafo anterior. Assim, à luz do caso concreto, vislumbrados os requisitos para a validade do consentimento, deverá ser procedida uma análise da avaliação de eventual deficiência nos moldes no art. 2º, § 1º do EPD, ou seja, através de um aspecto biopsicossocial, devendo ser observado, ainda, se a deficiência implica na inviabilidade de superação de barreiras, conforme descrição contida no art. 3º, IV.

Assim, podemos concluir que se torna inviável definir uma regra geral acerca da possibilidade do exercício do consentimento aqui estudado, tendo em vista os diferentes aspectos subjetivos da deficiência e a necessidade de se buscar uma análise acerca do caráter inequívoco do consentimento. Por isso, tal verificação terá que ser dada somente nos casos colocados em apreciação, observando-se todo o contexto protetivo aqui demonstrado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm/>. Acesso em 26 de março de 2018.

______. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm/>. Acesso em 25 de março de 2018.

______. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm/>. Acesso em 25 de março de 2018.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal - Parte Geral. 5 ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral. vol 1.12 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.

SILVEIRA, Bruna Rocha. Entre a vitimização e a divinização: a pessoa com deficiência em Viver a vida. 2012. 149 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Disponível em <http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/4490/>. Acesso em 27 de abril de 2018.

SOUZA, Calixto Junior de; DENARI, Fátima Elisabeth; COSTA, Maria da Piedade Resende da. O discurso das pessoas com deficiência física sobre a própria sexualidade. Rev. Ibero-Ameicana de Estudos em Educação. v. 12, n. 4, out./dez. 2017. Disponível em <https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9123/>. Acesso em 23 de abril de 2018.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: I Festival esportivo e cultural para pessoa idosa e pessoa com deficiência // Foto de: Prefeitura de Olinda // Sem alterações

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