A percepção de que o interesse público é indisponível e de que esta máxima impede a transação ou a negociação de questões jurídicas pela Fazenda Pública tem sido alvo de merecidas e necessárias mitigações.
Há muito se defendeu que o Estado em juízo passa ao largo da celebração de acordos, ou que, ao menos, sua promoção dependeria de prévia e específica autorização legal. E mais, sendo permitida em lei, indagava-se sobre ser uma prerrogativa ou um dever do procurador promovê-la.
No entanto, é chegado o tempo de superar alguns dogmas antes considerados intocáveis, por meio de uma ponderação racional dos valores que os envolvem quando aplicados ao caso concreto, mantendo-se incólumes e respeitados os princípios basilares do direito.
Com o advento do “Novo” Código de Processo Civil, instituiu-se o dever do magistrado de estimular e promover, “sempre que possível”[1], a solução consensual dos conflitos, sob o lema de que o processo “será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil”[2], e com o amparo de toda a máquina judiciária[3], seja no início como em qualquer fase processual.
O NCPC previu, ainda, que “ a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo, tais como- dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública; promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta”[4], o que demonstra a preocupação do legislador processual em também estimular variadas formas de resolução de conflitos, como a conciliação e a mediação, inclusive, extrajudiciais.
São valores postulados expressamente na Constituição Federal, organizados como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a garantia do desenvolvimento nacional e a promoção do bem de todos. Na Carta Magna, consta que a duração razoável do processo é direito fundamental, reforçado também no NCPC, qualificado com o dever do Poder Judiciário de enfrentamento do mérito de maneira adequada e efetiva.
Nesse sentir, a promoção da pacificação social, por meio da celebração de acordos que envolvem a Fazenda Pública, com extinção dos processos com julgamento do mérito, vai ao encontro dos objetivos da República (estabelecidos no art. 3º da CF/88), não se podendo mais esbarrar no míope dogma (superficial) da indisponibilidade do interesse público ou da necessidade de lei específica e prévia para agir em prol da realização dos direitos fundamentais do cidadão.
Doutrina e jurisprudência se debruçaram sobre a dicotomia entre interesse público primário e secundário para aferição objetiva dos limites à composição de conflitos envolventes do Estado, mas ainda há um campo nebuloso a ser iluminado, mesmo onde é evidente a repercussão patrimonial do bem jurídico em conflito[5].
O tema, portanto, não comporta soluções simplistas e generalizantes, sendo latente o seu enfrentamento (diário), a fim de que o Poder Público possa/ deva, em certas condições, submeter-se à pretensão alheia, como caminho à pacificação social, em verdadeira promoção de legítimos interesses sociais.
Assim, na tabulação de um acordo, o Estado não estará, necessariamente, a renunciar um direito coletivo, mas conferindo solução mais rápida ao litígio, o que permite o desenvolvimento intersubjetivo de seus cidadãos.
O princípio da legalidade, entretanto, é emblemático, na medida em que o Estado somente pode atuar nos exatos limites da lei, não sendo nem a Constituição Federal, nem o NCPC suficientes ao cumprimento específico deste mister, mormente quando estão em jogo direitos puramente indisponíveis (e não meramente patrimoniais).
A onda de constitucionalização do Direito Administrativo permitiu o advento de Leis especiais autorizativas de transação envolvendo direitos transindividuais ou interesse público primário, como, por exemplo, o art. 5º, § 6º, da Lei nº. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), que prevê a possibilidade de órgãos públicos firmarem compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
A Lei nº. 9.469/97, que admitiu a concessão e a renúncia de direitos da Fazenda Pública Federal para processos em trâmite é um outro exemplo que merece destaque.
De igual forma, o art. 79-A, da Lei nº. 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e permite que os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA, celebrem, com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores.
Precedentes clássicos das Cortes Superiores passaram a expressar que, embora os bens e interesses públicos sejam indisponíveis, em diferentes nuances, é de se reconhecer que a indisponibilidade deve ser atenuada, “mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse”[6], ainda que ausente previsão legal específica.
E os benefícios processuais da celebração de acordos vão além do fator “tempo de processo” e diminuição do número de demandas abarrotando o Judiciário, pois garantem notória economia na sucumbência e naturais acréscimos de encargos legais sobre a mora, sem mencionar que coroam o poder/dever de autotutela do Estado.
Isso porque, imaginar que a judicialização do conflito esvazia o dever de sindicabilidade interna pelo Estado é extrair dele a sua obrigação de se sujeitar à legalidade de agir nos trilhos da lei.
De toda a forma, a necessidade legislativa (ou a falta de lei em sentido estrito) ainda é um constante e forte argumento obstativo à celebração de acordos pelo Estado em litígio.
São severas as críticas a este entendimento.
Alguns afirma que não é o Poder Legislativo o mais apto a escolher alternativas otimizadas ao caso concreto, mas sim a Administração Pública, que está dotada de capacidade de avaliação das suas particularidades.
Outros defendem que o "interesse público" somente é alcançado quando o princípio da legalidade é ponderado com os da eficiência e da economicidade, igualmente constitucionais.
Assim, o gestor público que deixar de transigir, por falta de lei específica, pratica conduta omissiva prejudicial aos cofres públicos, a direitos específicos ou coletivos, sob retórico argumento da inexistência de lei autorizadora de adoção de métodos contemporâneos para evitar tal prejuízo.
Em favor dos procuradores, advogados públicos e gestores públicos fica a ferramenta da ponderação de princípios e valores insculpidos na Constituição Federal e no Novo Código de Processo Civil, aplicados em meticulosa e justificada análise do caso enfrentado, na medida em que é dever da Administração Pública buscar soluções que atendam ao melhor interesse público, extraído de um complexo de tantos outros envolvidos.
Conclui-se, assim, que a utilização de acordos preventivos a litígios ou em processos já instaurados é forte ferramenta de proteção do interesse público, sob a ótica da proporcionalidade e de uma adequada e motivada atuação administrativa, ainda que ausente lei específica e nos limites constitucionais.
Notas e Referências
[1] Artigo 3º, §2º do NCPC
[2] Artigo 1º do NCPC
[3] Artigo 3º, §3º do NCPC. A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
[4] Art. 174 do NCPC
[5] Sobre o tema, recomenda-se a leitura da obra de Phillip Gil França: “Ato Administrativo e Interesse Público. 3º Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2016”. Lá, dentre outas pesquisas e levantamento bibliográfico, o autor defende que o interesse público é válido quando concretizado ou quando é passível de concretização, afastando a característica de ´conceito jurídico indeterminado´.
[6] STF. RE 253.885-0/MG STF. Relator: ELLEN GRACIE DJ 21-06-2002.
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