O Estado Democrático de Direito ameaçado pelo poder “Reconstituinte” - Por Fernanda Frizzo Bragato e Henrique Abel

19/12/2016

Por Fernanda Frizzo Bragato e Henrique Abel - 19/12/2016

Para os juristas, até alguns poucos anos atrás, parecia não haver dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 havia estabelecido um novo e permanente paradigma político-jurídico no Brasil. Não porque tivesse ‘inovado’ no cenário mundial, mas sim porque representava uma adesão ao que o Direito democrático havia produzido de melhor ao longo do século XX.

Este paradigma do chamado Constitucionalismo Contemporâneo, característico da democracia europeia pós-Segunda Guerra Mundial, não responde por um só nome[1]. Uma das tentativas de explicá-lo foi a chamada corrente neoconstitucionalista, uma postura que acabou pecando por uma certa falta de criteriologia adequada – abrindo as portas para uma excessiva discricionariedade judicial e para “ativismos” dos mais diversos.

Controvérsias à parte, o certo é que este novo momento na história do constitucionalismo nos legou um novo modelo político-jurídico: o chamado Estado Democrático de Direito. Direito e democracia recebem, aqui, um protagonismo privilegiado. O Estado é “de Direito” no sentido de que a vinculação das autoridades públicas - ao mandamento das leis democraticamente elaboradas - converte-se em instrumento de combate aos desmandos do poder e ao arbítrio, que vem a ser justamente a ausência de parâmetros e de padrões para a elaboração e aplicação das normas jurídicas. O Direito, compreendido como sistema de regras e princípios jurídicos, é elevado à condição de parâmetro uniforme e universal, ao qual todos devem se submeter[2]. Trata-se de fazer com que o Direito deixe de estar “à reboque da política”[3].

“Democrático”, por sua vez, significa entre outras coisas que existem limites não apenas para os procedimentos de elaboração legislativa mas, sobretudo, para os conteúdos sobre os quais as novas normas podem versar. O Estado Democrático de Direito é assim, também, um paradigma civilizatório que não admite “qualquer coisa”, nem mesmo em nome de eventuais “vontades da maioria”. Isso porque o conceito contemporâneo de democracia é muito mais substancial e elaborado do que as noções sobre “democracia” que nos foram legadas pela Antiguidade clássica. A chamada “democracia dos antigos” – censitária, limitada, formalista e presa ao conceito simples de maioria aritmética – era, por exemplo, perfeitamente compatível até mesmo com o perverso e desumano instituto da escravidão. Por óbvio, nenhum conceito contemporâneo de democracia admitiria tal coisa.

É precisamente por isso que a Constituição Federal de 1988, seguindo a principiologia do Constitucionalismo Contemporâneo, tratou de “imunizar” certos conteúdos contra eventuais iniciativas reformadoras do Legislativo[4]. Trata-se do papel contramajoritário do constitucionalismo democrático dos nossos dias.

Como se vê, o Estado Democrático de Direito, modelo político-jurídico instituído em nosso país pela Carta Magna de 1988, é muito mais do que meramente um “Estado de Direito” combinado com um regime democrático. Enquanto que o conceito de democracia  acompanha o mundo ocidental desde a Antiguidade clássica - e enquanto o conceito de Estado de Direito (Rechtsstaat) é familiar ao pensamento continental europeu pelo menos desde a segunda metade do século XVIII -, o Estado Democrático de Direito vem a ser uma “novidade” político-jurídica que não nasce antes do final da Segunda Guerra Mundial. Ele é, na forma e no conteúdo, um produto do século XX.

Além de adotar um conceito de democracia muito mais substancial e conceder para o Direito um papel de destacada autonomia (na missão de interditar a atuação dos poderes políticos e econômicos), o Estado Democrático de Direito pode ser compreendido como uma terceira encarnação no processo evolutivo do Estado Liberal Clássico. Ele se constitui como um “plus normativo” em relação àquele primeiro modelo, dotado de uma agenda essencialmente absenteísta e não interventiva, bem como em relação ao segundo modelo, o chamado Estado Social (que se estabelece nas primeiras décadas do século XX) e que, pela primeira vez, assumia para si uma agenda positiva de compromissos para com a sociedade (educação e saúde públicas, direitos trabalhistas mínimos, previdência social, etc).

Além das inovações já destacadas acima, a novidade do Estado Democrático de Direito surge no fato de que, pela primeira vez, a ordem político-jurídica é instituída já com a consciência da própria injustiça social ao seu redor – e por isso mesmo já nasce com um compromisso estabelecido de transformação social. O Direito, assim, deixa de atuar como mero discurso de legitimação da ordem social vigente e como instrumento de mera manutenção da realidade atual[5]. Ele assume um compromisso com o passado (determinabilidade, ordem, estabilidade) e com o futuro (transformação da realidade social vigente).[6]

Feitas estas considerações, causa perplexidade a sucessão de reformas constitucionais levadas a cabo pelo Congresso brasileiro, no último ano, que representam simplesmente um atropelo do projeto constitucional democraticamente instituído na Carta de 1988. Lembremos, por exemplo, da PEC 215 (que pretende flexibilizar os critérios de reconhecimento de terras de populações indígenas, inclusive passando - do Executivo para o Congresso - a competência para as demarcações), a PEC 287 (reforma da previdência, que nos termos atuais praticamente condena o cidadão brasileiro a morrer de velho antes de conseguir se aposentar) e a famigerada PEC 55, já aprovada pelo Senado em duas votações, que irá congelar os investimentos em educação e saúde no país por duas décadas – independente dos diferentes cenários econômicos que o país venha a atravessar ao longo deste período.

Do ponto de vista normativo, o conjunto destas emendas constitucionais – manifestamente agressivas ao objetivos fundamentais da República (Art. 3º da C.F/88) – ameaça produzir um fenômeno alarmante: a desconstituição do Estado Democrático de Direito enquanto modelo político-jurídico vigente, e a sua consequente transformação em uma mistura desfigurada e incoerente dos velhos modelos do Estado Liberal clássico e do Estado Social da primeira metade do século XX.

Com manifesta influência do neoliberalismo (aliás, uma narrativa político-econômica que se encontra hoje em franco declínio em todo o ocidente democrático, amplamente rejeitado por ambos os extremos do espectro político), esta desconstituição do Estado Democrático de Direito opera, simultaneamente, como um indevido, injustificável e antijurídico processo reconstituinte – que “desintegra” o modelo anterior e o reformata nos moldes de um projeto constitucional reverso: individualista, retrógrado e que repristina um liberalismo econômico ultrapassado, cujas limitações já foram vastamente conhecidas (às custas de incalculável sofrimento humano) há mais de um século. O Estado Democrático de Direito brasileiro, desconstituído e reconstituído na forma de um retrocesso geral involutivo, é assim rearranjando nos moldes de um verdadeiro Estado Neoliberal de Arbítrio.

“De arbítrio” porque – eliminadas as principiologias que norteiam a interpretação Constitucional e os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito de outrora - a normatividade vigente não terá condições de operar como o parâmetro necessário para a ação das autoridades públicas. Dentro desta nova realidade, as normas já não irão atuar de forma vinculante. O arbítrio, a decisão tomada de acordo com conveniências políticas de momento e os interesses de bastidores serão os sucedâneos dos limites normativos. As garantias, a previsibilidade e a segurança jurídica passam a ser as garantias do capital especulativo, a previsibilidade em prol do setor financeiro e a segurança jurídica dos investidores internos e externos.

É igualmente preocupante a constatação de que não há sinais visíveis no sentido de que o Supremo Tribunal Federal, em tese o “guardião” da Constituição, irá intervir para evitar este estado de coisas. Pelo contrário: é sintomático que, concomitantemente a estes processos de desfiguração do texto constitucional levados a cabo pelo Congresso, o próprio STF tenha dado as suas próprias contribuições para o enfraquecimento do modelo democrático consagrado na Carta de 1988.

Como exemplo, lembramos o julgamento do HC 126.292, em fevereiro deste ano, no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a possibilidade de início da execução da pena condenatória, após a confirmação da sentença em segundo grau, “não ofende” o princípio constitucional da presunção da inocência (ao arrepio do texto do Art. 5º, LVII da C.F/88).

Impossível deixar de lembrar, também, da bizarra decisão do Plenário no julgamento de liminar na ADPF 402, na qual o STF decidiu que o senador Renan Calheiros poderia permanecer na presidência do Senado mesmo sendo réu em ação que tramita no Supremo, ao mesmo tempo em que se encontra impedido de eventualmente substituir o Presidente da República. Esta "solução salomônica" vai na contramão de decisão similar anterior, que alguns meses antes determinou o afastamento do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados. Desnecessário destacar que essa sucessão de estremecimentos institucionais e atropelos jurídicos veio a ser agravada, ainda, pela decisão da Mesa do Senado no sentido de não cumprir a liminar anteriormente deferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello (determinando o afastamento do senador Calheiros da presidência da casa).

O que se percebe, de forma inequívoca, é que a Constituição está sob fogo cerrado. Aliado a um Executivo de legitimidade altamente questionável, liderado por um presidente imensamente impopular que chegou ao poder por meio de um processo de impeachment cujo mérito e substância parecem mais questionáveis e duvidosos a cada dia que passa, o Congresso parece empenhado em exercer o seu poder constituinte derivado de forma antidemocrática e abusiva, buscando usurpar um poder constituinte originário que não lhe cabe[7]. E as instituições brasileiras, até o momento, não têm demonstrado força suficiente para frear estes ataques, que representam uma ameaça real de completa desconstituição/reconstituição do Estado Democrático de Direito consagrado em nossa Carta Magna.

Ao final destas considerações, uma das conclusões parciais e precárias que se impõem é a seguinte: a Constituição Brasileira de 1988, apesar de ser uma das mais admiráveis e avançadas do mundo[8], não é autossuficiente. No Estado Democrático de Direito, a Constituição é condição de possibilidade para a democracia – mas, ao mesmo tempo, a Constituição não cria o ambiente democrático. Trata-se de uma relação simbiótica, na qual é preciso a Constituição para assegurar a sobrevivência e a vitalidade da democracia e é preciso, simultaneamente, a democracia para assegurar a sobrevivência e a vitalidade da Constituição. A norma constitucional não se defende sozinha, nem se sustenta sozinha. Minadas e corrompidas as instituições, a cidadania e os mecanismos de representação democrática, vemos a Constituição soçobrar – e os meios jurídicos e políticos para estancar este processo, supondo que possíveis, até o momento não parecem claros.


Notas e Referências:

[1] “A assunção dos direitos humanos como condição de sentido do constitucionalismo dos séculos XX e XXI, justamente nesse contexto do pós-guerra, representou um esforço pela reconstrução da dimensão ética do Direito após as atrocidades cometidas contra a humanidade durante os regimes nazista e fascista e a II Guerra Mundial. Nessa nova fase, os direitos humanos foram proclamados universais diante da existência de valores constitutivos de um núcleo comum ao qual se reportam: a dignidade humana. Quando se fala em reconstrução, busca-se com isso significar o resgate da dimensão de valores que o triunfo do positivismo afastou do campo jurídico, ao incorporar ao direito, no século XIX, o ideal da neutralidade axiológica e do cientificismo matemático, a fim de transformar a atividade judicial em mero processo dedutivo e o Direito em mero conjunto formal de normas, independente do conteúdo”. CULLETON, Alfredo; BRAGATO, Fernanda Frizzo; FAJARDO, Sinara Porto. Curso de Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 153.

[2] “O paradigma do Estado Democrático de Direito – consagrando um modelo de democracia representativa avesso a personalismos e protagonismos exacerbados – pressupõe que estas limitações sejam aplicadas também no âmbito do Poder Judiciário, independentemente do fato de seus membros não serem eleitos pelo voto popular. A ausência de protagonismos individuais sustentados em juízos solipsistas e de decisões de conveniência baseadas na mera vontade do detentor do poder, sendo uma marca da democracia contemporânea, é um princípio que deve se impor sobre todos os poderes que constituem o Estado. Em outras palavras, todo poder, no Estado Democrático de Direito, é um poder que necessariamente deve ter limites bem definidos”. ABEL, Henrique. Positivismo Jurídico e Discricionariedade Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 131.

[3] "Por fim, insisto: a democracia pressupõe que o direito possua um elevado grau de autonomia. [...] E é exatamente este o plus do Estado Democrático de Direito: a diminuição do espaço de discricionariedade da política pela Constituição fortalece materialmente os limites entre direito, política e moral. [...] Enfim, o direito deixava de estar a reboque do político". FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam Trindade (org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 86.

[4] “Ao assumir expressamente o princípio da dignidade humana como fundamento da República, a Constituição de 1988 consagrou um corpo de direitos voltados à proteção da pessoa humana que ocupa, portanto, posição central no ordenamento jurídico brasileiro. A Carta Política não se resumiu a afirmar os direitos humanos como princípios e objetivos, mas tratou de enunciá-los, principalmente, nos Títulos I e II, que abrangem os arts. 1º a 17, entre aqueles, denominados direitos fundamentais de aplicação imediata, ou seja, sem necessidade de lei posterior que os regulamente (art. 5º, § 1º). Em relação à sua força normativa, esses direitos têm como principal característica a impossibilidade de supressão ou alteração. Tendo em vista o temor ou a desconfiança com o legislador constituinte dotado de poder de modificar a Constituição, estabeleceu-se, no § 4º do artigo 60, que a proposta de emenda tendente a abolir as cláusulas constitucionais concernantes aos direitos e garantias individuais não será objeto sequer de deliberação. Isso significa que o legislador constituinte originário proibiu qualquer tentativa superveniente de supressão ou modificação daquelas normas instituidoras de direitos e garantias fundamentais, imunizando-as através do que se convencionou chamar de ‘cláusulas pétreas’ ”.  BARRETTO, Vicente de Paulo; BRAGATO, Fernanda Frizzo. Leituras de Filosofia do Direito. Curitiba: Juruá, 2013. p. 251.

[5] “Assim, o Estado Democrático de Direito teria a característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao Welfare state neocapitalista – impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. Dito de outro modo, o Estado Democrático é plus normativo em relação às formulações anteriores. [...] Quando assume o feitio democrático, o Estado de Direito tem como objetivo a igualdade e, assim, não lhe basta limitação ou promoção da atuação estatal, mas referenda a pretensão à transformação do status quo”. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado. 7. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 99-100.

[6] O compromisso com a transformação não se confunde com o mero brado por “progresso”, próprio do velho positivismo comteano. A transformação implica em um compromisso mais amplo e profundo, na medida em que a efetiva concretização normativa das promessas emancipatórias da modernidade não se confunde com o mero desenvolvimento econômico e técnico-científico-industrial, próprio das ambições da “religião civil” de Comte.

[7] “O poder constituinte tanto poderá exprimir do ponto de vista sociológico um confisco ou uma usurpação de soberania como um quadro de valores ou de legitimidade. O berço de sua teorização foi porém a liberdade, a tese dos direitos humanos. Nasceu no século XVIII abraçado a um processo revolucionário de emancipação, a uma legitimidade que forcejava por institucionalizar na sociedade do ocidente a vontade soberana dos governados. O Direito Constitucional da liberdade lhe pertence. Esse poder constituinte das teses liberais e democráticas da nação e do povo soberano é o único legítimo para instituir um Estado de Direito. Outros poderes constituintes poderão existir, têm existido, nosso País mesmo já os conheceu em manifestações que não enaltecem o passado das instituições. Nunca porém lograrão eles fazer Constituições capazes de exprimir a vontade legítima do povo ou conter a verdadeira dimensão da soberania nacional. É portanto o poder constituinte da noção soberana, seu exercício único e exclusivo pelo povo, ou por suas Constituintes, aquele que cabe na legítima tradição constitucional do País”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 8ª edição. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1998. p. 146.

[8] A afirmação é do jurista italiano Luigi Ferrajoli e está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/constituicao-brasileira-avancadas-mundo-luigi-ferrajoli (último acesso em 14/12/2016)


Fernanda Fizzo BragatoFernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br .


henrique-abel. . Henrique Abel é Advogado. Mestre e Doutorando em Direito – UNISINOS. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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