Coluna Espaço do Estudante
“Só a cabeça de um morto diz que sim a todos os movimentos que lhe imprimem”
Teixeira de Pascoaes
A presente coluna serve para instigar uma reflexão que tive ao ter contato com a obra do psicólogo Stanley Milgram e seu último, porém inacabado, trabalho: os Cyranoids. O nome Cyranoid deriva do romance/peça[1] de Rostand em que o personagem principal Cyrano é um brilhante poeta e bravo espadachim que vive na França do século XVII. Dono de um enorme nariz, e achando-se feio e desprezível, teme declarar o seu amor a Roxana, sua bela prima. Esta, por sua vez, é apaixonada por um colega de Cyrano, o cadete Cristiano, que não tem qualquer talento para expressar seus sentimentos pela jovem. Sem esperança de conquistar a prima, Cyrano ajuda o cadete, redigindo suas declarações de amor.
Dessa forma, a ideia é trabalhar com a questão da obediência “inconsciente” do indivíduo frente aos contextos sociais[2]. O Cyranoid é um indivíduo que não expressa seus pensamentos, apenas reproduz os pensamentos de outra pessoa ou de uma inteligência artificial. O experimento de Milgram constatou duas dimensões, a primeira de que as pessoas em geral tem conversas de 20 minutos com Cyranoids sem perceber que não estão a falar com a pessoa, a conclusão dessa ideia é que nos prendemos muito mais a características externas (corpo, voz etc) do que com o pensamento em si, ao ponto de não percebermos se estamos realmente falando com a pessoa[3]. Em segundo lugar, Milgram volta a constatar, algo que já havia feito na “Experiência de Milgram[4]” que os indivíduos tendem a seguir ordens de autoridade a despeito de qualquer ordem normativa, emotiva ou moral, (para uma visão inicial: https://www.youtube.com/watch?v=xOYLCy5PVgM), abaixo temos uma ilustração do experimento:
Dessa forma, duas constatações sobre a natureza humana em sociedade são verificadas pelos trabalhos iniciados por Milgram: o indivíduo na sociedade moderna tende à obediência às autoridades a despeito de sua individualidade e uma pessoa em interação com uma pessoa que só segue ordens não percebe a diferença entre o indivíduo e a autoridade “guia”:
Obedience is as basic an element in the structure of social life as one can point to. Some system of authority is a requirement of all communal living, and it is only the man dwelling in isolation who is not forced to respond, through defiance or submission, to the commands of others. Obedience, as a determinant of behavior, is of particular relevance to our time. It has been reliably established that from 1933-45 millions of innocent persons were systematically slaughtered on command. Gas chambers were built, death camps were guarded, daily quotas of corpses were produced with the same efficiency as the manufacture of appliances. These inhumane policies may have originated in the mind of a single person, but they could only be carried out on a massive scale if a very large number of persons obeyed orders. (MILGRAM, 1963, p. 371)
Para além de ser um fato social, a obediência surge como uma dimensão psicológica. Dessa forma, na teoria de Milgram, a obediência é socialmente (intrinsicamente) verificável e psicologicamente explicável:
Obedience is the psychological mechanism that links individual action to political purpose. It is the dispositional cement that binds men to systems of authority. Facts of recent history and observation in daily life suggest that for many persons obedience may be a deeply ingrained behavior tendency [...]. (MILGRAM, 1963, p. 372)
Partindo desse referencial teórico e suas conclusões, passamos a tratar brevemente sobre suas consequências para a gênese e desenvolvimento do Estado.
É claro que podemos caminhar pela ideia emprestada sobre a existência de um Estado de Natureza em oposição à organização social, na qual os indivíduos abririam mão de sua individualidade (capacidade de não se submeter à autoridades ilegítimas, como dito por Noam Chomsky[5]) para submissão a uma autoridade mais “legítima” do Estado, ao qual todos seriam submetidos e ficaria assim atendida a perspectiva “natural[6]” do indivíduo a ser submetido a uma autoridade, o que geraria a desresponsabilização[7]. Sobre a perspectiva da responsabilidade é muito interessante a leitura das páginas 27 a 34 do estudo publicado em 1974 por Milgram (disponível aqui: http://www.shimer.edu/live/files/338-obediencemilgrampdf) no qual existem fragmentos das reações dos participantes do experimento em confronto com a autoridade posta.
Apesar do solo fértil, que com certeza fomentará mais análises, quero analisar nessa coluna que uma das consequências do modelo de autoridade para a individualidade. Os avanços dos modelos de dominação ultrapassam os limites alguma vez pensados. Os pensamentos de Milgram servem como base para a constatação de que a obediência a uma autoridade pode se tornar tão profunda que nos tornamos apenas um corpo alugado por outro cérebro (orgânico ou não) e que, mesmo nesse caso extremo para um observador ainda seríamos enxergados como indivíduos. Para além dessa hipótese extrema, os modelos de dominação avançam profundamente na perda de nossa individualidade, que não se dá por um estatuto jurídico, mas sim por dimensões psicológicas de escolha. Como exemplos clássicos e amplamente estudados temos a dominação midiática, a colonização e o neocolonialismo, o patriarcado, o mercado, e tantas outras[8], que encontram no Estado moderno solo fértil para se proliferarem.
Nossa liberdade não deve ser restringida a um estatuto jurídico de cidadãos, deve ser ampliada. No entanto, essa ampliação torna inviáveis as formas atuais de dominação pelo sistema capitalista, pois a lógica de atuação do mercado depende de massas homogêneas, onde a massificação gera o lucro.
O tipo de constatação que quero trazer à tona é pensar até onde o modelo de Estado posto e o modelo econômico capitalista estão a nos levar, e como o futuro se mostra mais uma vez aterrador para o ser humano e sua individualidade, sua essência de ser, seu pensamento, seu ser. É o escolher ser o que quiser, ou não ser se assim lhe apetecer. Vivemos em um processo dissimulado, praticado e compactuado pelo Estado, para nos transformar em “Cristianos”, como no romance, enquanto o Estado e a Economia são nossos “Cyranos”, que, para além de nos guiar em nossos pensamentos, avança, cria uma Roxana que nós nem mesmo temos certeza que amamos.
Notas e Referências:
[1] ROSTAND, Edmond. O Cyrano de Bergerac. Trad. Ferreira Gullar. José Olympio editores. 2011
[2] É claro que a “obediência” não pode ser tratada de forma monolítica. Há de se diferenciar a obediência a uma autoridade das outras formas de influência observadas na sociedade. Segundo o entendimento adotado (que merece estudos mais completos) a presença da autoridade se distingue da influência de um ser humano para com o outro, por meio da afinidade, da expertise, da manipulação emocional etc. Talvez a autoridade posta (institucional) seja reflexo dessa tendência natural, mas com ela não se confunde pois a consequência psicológica naquela nasce de instituições que não são naturais da sociedade, como Estado, Polícia etc. Existe sociedade sem Estado, e nesses casos ainda existem relações intersociais marcadas pela dominação, mas que não se confundem com o termo institucional que a palavra “autoridade” emana, e que foi objeto principal dos estudos de Milgram.
[3] Vide o experimento em andamento na Inglaterra: http://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/08/150724_finde_vert_fut_cyranoides_ecoborgs_yv
[4] O estudo pretendeu demonstrar que a maioria dos indivíduos tendem a obedecer às autoridades, em detrimento de todos os pensamentos individuais referentes às suas próprias perspectivas morais e éticas. Para uma visão superficial vide: http://www.simplypsychology.org/milgram.html e para uma perspectiva mais completa vide: MILGRAM, S. Obedience to authority: An experimental view. Harpercollins. New York. 1974 e; MILGRAM, S. Behavioral study of obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, Washington. 67, 371-378. 1963
[5] “(...)authority, unless justified, is inherently illegitimate and that the burden of proof is on those in authority. If this burden can't be met, the authority in question should be dismantled”. (CHOMSKY, 1996, p. 186)
[6] Não concordamos com essa natural e inata necessidade da submissão. Pode parecer uma alternativa tentadora à perspectiva do Contrato Social tal qual formulado por Locke, Hobbes, Rousseau e tantos outros, mas reduz a individualidade do ser humano a duas características, o do ser que “quer” ser dominado para ser desresponsabilizado e do ser que aceita a responsabilidade em busca do poder sobre os outros. Apesar de essas perspectivas serem historicamente e sociologicamente verificáveis não são naturalmente constatadas, tendo em vista que a submissão à autoridade não é uma verdade posta, é uma invenção, assim como o Estado.
[7] A tese principal de Milgram é justamente essa, de que os indivíduos continuavam a aplicar os choques pois entendiam que a responsabilidade por quaisquer danos seria da autoridade presente no local.
[8] Que por acaso coincidem com as barreiras verificadas por Boaventura de Sousa Santos para uma perspectiva emancipatória do Direito. (SANTOS, 2003)
CHOMSKY, N. Powers and Prospects: Reflections on Human Nature and the Social Order. London: Pluto Press, 1996.
MILGRAM, S. Behavioral study of obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, Washington, v. 67, p. 371-378, 1963. Disponivel em: <http://www.columbia.edu/cu/psychology/terrace/w1001/readings/milgram.pdf>.
MILGRAM, S. Obedience to authority: An experimental view. Nova York: Harpercollins, 1974.
SANTOS, B. D. S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 3-76, 2003.
Andrey Lucas Macedo Corrêa é Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU com período de mobilidade internacional na Universidade de Coimbra-Portugal. Bolsista de iniciação científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e bolsista de mobilidade internacional pela UFU. Pesquisador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU.
O autor é integrante do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados, conheça o grupo na página https://www.facebook.com/laboratoriolaecc/.
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