Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário
No âmbito da ciência política, o ato de definir o autoritarismo não constitui uma das tarefas mais fáceis, já que diversos são os sentidos que esse conceito pode adquirir. O rigor no seu uso, portanto, deve ser objeto de preocupação daquele que o maneja, até mesmo como forma de fugir de uma conotação desprovida de qualquer significado. Somente com uma postura inicial prudencial é que se pode afastar uma acepção que se aproximaria de um “guarda-chuva”.
Diante dessa empreitada, é oportuno recorrer ao ensinamento de Christiano Falk Fragoso, que relaciona quatro significados possíveis para o termo autoritarismo, a saber: abuso de poder, regime político, ideologia política e mentalidade[i]. É claro que estes sentidos não são definições estanques, podendo ocorrer diálogo entre eles.
Neste texto, o autoritarismo é empregado como o uso abusivo do poder, o que pode perfeitamente dialogar com a existência de uma mentalidade autoritária. Na verdade, essa articulação se mostra possível a partir da constatação de que os limites impostos ao exercício do poder se mostram perfeitamente superáveis diante da existência de uma mentalidade que não aprecia a tolerância como valor a ser observado.
Ultrapassado esse primeiro recorte conceitual, é preciso avançar diante desse fenômeno em solo brasileiro. Para essa faina, mostra-se relevante o pensamento de Lilia Moritz Schwarcz[ii], pois, ainda que não tenha realizado uma problematização sobre os sentidos do termo autoritarismo, são destacadas as suas diversas raízes. O olhar da historiadora em questão indica oito tópicos, que acabam por justificar a existência de uma cidadania incompleta no cenário sociopolítico brasileiro, que é reverso da nossa moeda autoritária. Dentre as várias razões explicativas para o autoritarismo nacional, é ressaltada a intolerância, ou seja, a incapacidade de conviver com o pensamento diverso.
Para que se possa desenvolver a ideia defendida neste texto, depara-se com a necessidade de enfrentar um elemento próprio da vida de determinado segmento de profissionais e que, por Celso Castro[iii], veio a ser denominado como “espírito militar”. O seminal estudo sobre a vida na caserna se deu a partir de pesquisa de campo realizada na Academia Militar das Agulhas Negras no final da década de 1980. Dentre os aspectos trazidos pelo antropólogo, há de se destacar a constituição de uma visão binária e maniqueísta de mundo, sendo certo que o contraponto da realidade militar residia naquela vivenciada pelos civis, os chamados “paisanos”. Dessa forma, as qualidades que são esperadas de um integrante da sociedade são atribuídas aos militares justamente em contraposição às que os civis apresentam. A partir de entrevistas realizadas com os cadetes do Exército Brasileiro, o antropólogo apresenta um cenário marcado por antagonismos. De acordo com o “espírito militar, o jovem formado na caserna é, dentre outros aspectos, marcado pela disciplina, ordem, maturidade e seriedade, enquanto um civil apresenta as seguintes características: displicência, desordem, infantilidade e falta de seriedade[iv].
Essa contraposição, que indica uma construção de superioridade do militar, até mesmo em razão da forma como se desenvolve a sua carreira e sociabilidade, não é enfraquecida com o decorrer do tempo. Válido destacar que os elogios de um anterior comandante do Exército Brasileiro podem explicar as razões para um fardado ter recentemente chefiado – e de maneira desastrosa – o Ministério da Saúde em meio à gravíssima crise provocada pela pandemia:
“Viabilizou-se [determinada operação humanitária na Amazônia] graças à determinação do general Guilherme Theophilo e à criatividade do general Pazuello. Este amazonense, logo depois, foi designado para comandar a Operação Acolhida, levando as experiências reunidas no Amazonlog. Pazuello garantiu o êxito da recepção, triagem, abrigo, saúde, alimentação e interiorização de milhares de venezuelanos. Sem falsa modéstia, fez com que nos tornássemos referência mundial.”[v]
Ainda que cause certo espanto inicial, a verdade é que as Forças Armadas brasileiras, apesar de inseridas em um Estado Democrático, não conseguiram assimilar a democracia como valor cívico. Dito de outra forma: são instituições públicas que ainda não compreenderam a ordem democrática instituída em 5 de outubro de 1988. Não por outra razão demonstram tanta resistência à incidência de institutos próprios da justiça de transição e o receio de que a efetivação do direito à memória represente uma postura revanchista. Essa oposição deve ser ainda compreendida pelo fato de os atuais Oficiais-Generais terem sido formados no curso da ditadura militar instaurada no dia 1º de abril de 1964.
Mas, de que modo pensar no espírito militar como atual e importante chocadeira do autoritarismo brasileiro? De um lado, não se pode ignorar, tal como apontado, a existência de uma cultura que não prima pela tolerância. De outra banda, não se pode perder de vista a militarização da sociedade: quer seja com a expansão das chamadas escolas cívico-militares, quer seja com o expressivo número de fardados afastados das unidades militares para ocuparem cargos na Administração Pública.
De acordo com as informações fornecidas pelo próprio Executivo Federal, em razão do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, há intenção de funcionamento, até o ano de 2023, de 216 estabelecimentos de ensino dessa natureza[vi]. Não resta dúvida de que os valores da obediência e hierarquia serão arraigados nos jovens que lá se formarão, mas o mesmo não poderá ser dito com relação à tolerância e ao respeito ao diferente.
A atuação desses específicos servidores públicos em setores alheios aos de sua formação somente vem a reforçar o sentimento de superioridade, que é próprio do espírito militar, frente aos paisanos. Há, portanto, um cenário que permite o desenvolvimento de uma imagem messiânica de um determinado agente público, o que é deletério para qualquer regime democrático. Trata-se de uma problemática simbologia e que, no curso da história brasileira, foi que legitimou a função moderadora das Forças Armadas, argumento tão caro nas diversas quarteladas ocorridas na república.
A existência de atos políticos de conteúdo contrário ao regime democrático já não mais causa espanto, pois os brados que clamam por uma intervenção militar perderam o caráter de novidade. Por mais paradoxal que possa parecer, um deputado federal publicamente defendeu o Ato Institucional nº 05 e o fechamento de instituições democráticas, o que, aliás, implicou na decretação de sua prisão por ordem de um Ministro do Supremo Tribunal Federal. Todo esse cenário demonstra que os limites estabelecidos para o exercício do poder não se mostram mais suficientes para conter os ímpetos de determinada parcela da sociedade que se mostra incapaz de lidar com o Outro. O espírito militar se mostra, assim, perfeitamente adequado para esses que desconhecem – e para os que não conhecerão – os seguintes conceitos: democracia, respeito à diversidade e pluralismo.
O risco autoritário, portanto, é real e não pode ser considerado como devaneio alarmista. O momento crítico poderá permitir uma refundação das Forças Armadas brasileiras, além da desmilitarização das polícias[vii]. Alguns caminhos já foram esboçados pela Comissão Nacional da Verdade, vide as Recomendações nº 5 e 6 do seu Relatório Final:
“[5] Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos.
[6] Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos.”[viii]
Há, ainda, a apresentação de Proposta de Emenda Constitucional, cujo projeto é de autoria da Deputada Federal Perpétua Almeida, que impede que militares da ativa ocupem cargos de natureza civil na Administração Pública. Sem sombra de dúvida, é uma medida salutar e necessária. Nos navios, quartéis e bases aéreas é que devem estar os militares. O aparelhamento da máquina administrativa por esses profissionais acaba por representar em risco de desvirtuamento de suas instituições, isto é, de se tornarem órgãos de governos. A blindagem, aliás, de uma instituição de Estado não é nenhuma novidade na realidade jurídica brasileira, vide o tratamento proibitivo conferido aos magistrados e membros do Ministério Público para atuarem no Executivo.
E que não se esqueça de importantes setores da sociedade civil que se mostram contrários às escolas cívico-militares[ix]. Mais do que nunca a juventude necessita ser ensinada e, principalmente, vivenciar o pluralismo. Apesar de o artigo 1º, inciso V, Constituição da República indicar como valor o pluralismo político, com uma educação pautada na tolerância e respeito é possível ir além do campo político. E isso somente será possível em um cenário que consiga superar um projeto pedagógico pautado exclusivamente na observância da disciplina, hierarquia e obediência.
Essas posturas críticas se mostram alvissareiras; porém, é preciso que elas, bem como outras ainda embrionárias ou sequer ainda concebidas, sejam desenvolvidas e concretizadas. Somente assim, as Forças Armadas do Brasil poderão ser, enfim, tidas como instituições democráticas, e não mais como abrigo da ideia de superioridade que conduz à mentalidade autoritária de que trata esse texto.
Ainda que um famoso egresso seu demonstre incompetência administrativa e desrespeito às vítimas da pandemia, não é o momento de demonizar as Forças Armadas brasileiras, pois são instituições estatais, por força constitucional, tidas como permanentes. Não são elas as genitoras do autoritarismo pátrio. Contudo, enquanto não aperfeiçoadas e inseridas ao regime democrático legitimamente estabelecido em 1988, ao perseverar no contraproducente e intolerante “espírito militar” que ainda as norteia, infelizmente, continuarão servindo de chocadeira desse fenômeno que necessita ser extirpado do nosso horizonte cívico.
Notas e Referências
[i] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. pp. 64-65.
[ii] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[iii] CASTRO, Celso. O Espírito Militar. Um antropólogo na caserna. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
[iv] CASTRO, Celso. O Espírito Militar. Um antropólogo na caserna. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 44.
[v] CASTRO, Celso (organizador). General Villas Bôas: conversa com o comandante. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2021. p. 158.
[vi] Divulgadas regras que regulamentam a implantação das escolas cívico-militares em 2021. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/educacao-e-pesquisa/2020/12/divulgadas-regras-que-regulamentam-a-implantacao-das-escolas-civico-militares-em-2021 Acesso em 11 de junho de 2021.
[vii] SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.
[viii] Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf. Acesso em 11 de junho de 2021.
[ix] Especialistas em educação criticam projeto de escolas cívico-militares lançado pelo governo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/especialistas-em-educacao-criticam-projeto-de-escolas-civico-militares-lancado-pelo-governo-23929588 Acesso em 11 de junho de 2021.
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