O ENTENDIMENTO DO DESEMBARGADOR PAULO RANGEL, NO CASO FLÁVIO BOLSONARO, É O QUE MELHOR PRIVILEGIA A DIGNIDADE DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NO PROCESSO PENAL.

10/09/2020

Escrevemos este texto, pois, a nosso ver, têm sido lançadas críticas um tanto quanto duras e até, eventualmente, despropositadas ao entendimento esposado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sobretudo em relação ao voto do Desembargador Paulo Rangel.

Não conhecemos o referido magistrado pessoalmente, mas sim apenas dos excelentes escritos de processo penal. Não há aqui qualquer fator pessoal nesta análise.

Tivemos acesso ao voto do magistrado, no site jurídico Jota, no que concerne ao entendimento majoritário constante do acórdão, o qual entendeu que seria competente para a análise do caso Flávio Bolsonaro o Eg. TJ/RJ, haja vista que, à época dos supostos fatos, este seria Deputado Estadual.

Particularmente, talvez tívéssemos adotado outra linha de argumentação, considerando que os precedentes do Supremo Tribunal Federal são, de fato, a princípio, contrários ao entendimento abraçado pelo Colegiado, muito embora o caso tenha uma peculiaridade, consubstanciada no fato de que o investigado já detinha a prerrogativa de foro, conforme, salvo engano, bem listado pela Procuradoria Geral da República.

Ora, como bem se sabe, a competência é determinada mediante a obediência às regras estabelecidas não só pela Constituição Federal, mas, também, pelo próprio ordenamento jurídico como um todo.

No ponto, desde os bancos de graduação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fomos doutrinados que o princípio do juiz natural não se referiria apenas ao juiz constitucionalmente competente, mas também diria respeito ao juiz legalmente constituído, sempre se enfatizando, em aulas, que a competência, dada toda a sua importância para o sistema de garantias, mormente do imputado, deveria ser determinada de forma prévia, à época dos fatos, e imutável.

Neste sentido, sejam os professores ou os doutrinadores considerados mais garantistas, ou, pelo menos, mais apegados ao respeito à interpretação que otimize o maior rendimento dos princípios e garantias fundamentais, sobretudo em relação ao acusado ou investigado, sempre se ensinou que até mesmo uma eventual mudança na legislação infraconstitucional, alterando a competência de uma simples vara (por exemplo, com a criação de uma vara especializada), deveria ser aplicada com reservas, pois poderia ferir o juiz natural, afinal, para os fatos já praticados até então, não poderia haver redistribuição de feitos, em respeito ao juiz natural, previamente determinado à data dos fatos.

Evidentemente, sabe-se que o entendimento que privilegia a imutabilidade do juiz natural, sobretudo do órgão ou do juízo competente à época do fato, não é muito prestigiado pela jurisprudência nos dias de hoje, apesar de, em um passado não muito remoto, ter sido aplicada com maior cuidado.

Seja como for, do ponto de vista da melhor técnica, o entendimento mais antigo nos parece ser o mais correto, não se sustentando as críticas ao voto proferido pelo Desembargador Paulo Rangel, em que pese seu entendimento, modernamente, não seja tão privilegiado no Supremo, muito embora o caso concreto analisado ostente as suas particularidades.

Em decorrência do disposto no artigo 5.º, incisos LIII e XXVII, da Constituição, na medida em que lá se prevê que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, bem como que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, preceito que, com toda sua carga valorativa, tem o condão de impedir a mudança da competência ou mesmo a criação de um órgão instituído ex post facto, é imperioso haver um juízo (previamente) competente para a causa, verificável segundo as leis vigentes à época dos fatos.

Enfim, por esta interpretação, considerando a competência à época do suposto evento delituoso, não poderá mais ocorrer alteração da competência, devendo o hoje Senador ser julgado no foro competente à época dos fatos, qual seja, o Eg. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Assim, no que tange ao foro por prerrogativa de função, que alguns chamam de foro privilegiado - mas que de privilegiado, nada tem, haja vista a ausência de duplo grau de jurisdição - (os réus do julgamento do mensalão, cabe lembrar, ao ser instalada a sessão de julgamento no STF, suplicaram para serem julgados na primeira instância, havendo, inclusive, várias discussões calorosas entre o Ministro Ricardo Lewandowski e o Ministro Joaquim Barbosa), nós sempre questionamos o entendimento de que, caso o sujeito deixe o cargo para o qual a prerrogativa de foro se sustenta, deveria o seu caso, de uma hora para outra, como em um passe de mágica, baixar para a primeira instância.

Na verdade, este “vai e vem”, ou melhor, “sobe e desce”, ou este “não ata nem desata”, no trâmite processual, só propicia maior atraso na resolução da controvérsia, levando, não raro, à ocorrência de prescrição.

Nesta esteira, temos como irrecusável a lição do Professor Fernando da Costa Tourinho Filho, ao ensinar que “mesmo cessada a função, o foro deve continuar, malgrado tenha o Excelso Pretório cancelado a súmula 394. E assim pensamos em respeito ao princípio do Juiz natural, dogma de fé. Por isso entendemos, com Frederico Marques (...), que, se a infração for cometida durante o exercício funcional, o foro especial persiste mesmo que cessada a função” (Processo Penal. 32 edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 174)

Gustavo Henrique Badaró, por seu turno, embora entenda que “as mudanças de competência no caso de foro por prerrogativa de função (...) não são incompatíveis com a garantia do juiz natural”, faz a importante ressalva: “desde que tais mudanças sejam obrigatoriamente previstas em lei, não ficando sujeitas a qualquer juízo de discricionariedade” (Juiz Natural no Processo Penal. São Paulo: RT, 2014, p. 570)

Ora, como se sabe, nesta matéria, inexiste qualquer regra jurídica clara ou mais específica, ou mesmo enunciado legal estreme de dúvidas, que propicie maior segurança jurídica, tanto que o Supremo Tribunal Federal, nestes últimos anos, decidiu ora de uma forma, ora de outra.

Cabe lembrar, com Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, que migramos de um sistema pautado na “regra da atualidade” do exercício do cargo para a “regra da contemporaneidade” (que seria a, a nosso ver, a mais correta, não mais se alterando a competência, conforme Sumula 394, do STF, que foi cancelada[1]), a qual vem sendo relativizada, com a observação de que, caso o sujeito com prerrogativa de foro deixe o cargo, cessa a competência, sendo que, mais recentemente, passamos a adotar a regra da “atualidade limitada ou restrita”, permeada pelo “critério da fase processual”, havendo “perpetuatio jurisdictionis” se for encerrada a instrução criminal, com a abertura das alegações finais. (Novo Curso de Direito Processual Penal. 15 edição. Salvador, Juspoddivm, 2020, pp.456-458)

Ora, das sucessivas mudanças jurisprudenciais apontadas, é fácil vislumbrar a confusão com que a jurisprudência trata a matéria.

Com todo o devido respeito, o que se tem hoje é uma verdadeira confusão, a qual, em realidade, veio a ser criada pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Como bem  apontam os Autores acima citados, de fato, nem sempre é tão certo dizer quando o crime supostamente praticado pela autoridade teria alguma relação funcional (Novo Curso de Direito Processual Penal. 15 edição. Salvador, Juspoddivm, 2020, pp.458). E este é só um dos problemas, pois o Supremo criou um critério, não previsto em lei, para discorrer quando haveria a perpetuatio jurisdictionis.

A verdade é que, desde a nova orientação do Supremo, muitas perguntas ainda remanescem, o que dá margem à grande insegurança jurídica e, por que não dizer, ao próprio casuísmo.

Oxalá, em nova oportunidade que o Supremo Tribunal Federal terá para se debruçar sobre este assunto, nossa Corte Suprema defina regras mais claras a respeito da alteração do foro por prerrogativa de função.

Na verdade, melhor seria que, em prol da melhor interpretação constitucional, seria o momento de se conferir uma efetiva dignidade e real dimensão à garantia do juiz natural, impedindo-se a redistribuição de feitos cuja competência já era previamente delimitada na data dos fatos imputados, em especial com a prerrogativa de foro, pouco importando se o sujeito assumiu um novo cargo ou mesmo o deixou, já que a regra de competência deve ser imutável, dado seu caráter garantista, em respeito ao Juiz Natural.

 

Notas e Referências

[1] Muito embora tenha se tentado reavivar o conteúdo da súmula 394, por meio da inclusão de §§ ao artigo 84, do CPP, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a sua inconstitucionalidade na ADI 2797/DF

 

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