O enquadramento da Defensoria Pública dentro do sistema jurídico nacional

03/05/2016

Por Edilson Santana G. Filho – 03/05/2016

Sob a perspectiva de um dever público, a Defensoria se enquadra naquilo que se denominou de status da cidadania ativa (ou status positivo[1]) de um direito fundamental, ou seja, a capacidade protegida juridicamente de exigir prestações positivas visando a efetividade do direito.

Destarte, sempre que se observar uma situação de necessidade (artigo 5º, LXXIV da CF), o cidadão vulnerável, assim qualificado, poderá exigir do Estado que lhe forneça assistência jurídica gratuita, que deverá ser prestada por meio de um Defensor Público, por força da disposição constitucional contida no artigo 134 da Constituição Federal de 1988. Tratando-se de um direito fundamental, especialmente em razão de sua dimensão subjetiva, o administrador público não pode se afastar de tal mister.

O leitor pode se questionar se a assistência jurídica gratuita ao necessitado poderia ser prestada de outra forma, que não pela Defensoria Pública. Quanto a isso, convém observar que nos Estados contemporâneos é possível identificar, pelo menos, quatro modelos jurídico-assistenciais: (1) Pro bono; (2) Judicare; (3) Salaried Staff Model; (4) Híbrido ou misto[2].

Em apertada síntese, no primeiro (pro bono), a assistência é prestada por profissionais liberais (advogados), sem contraprestação monetária. Em razão da ausência de contrapartida pecuniária, costuma-se afirmar que tal modelo é exercido em regime de caridade, por razões humanitárias.

Também no sistema judicare a assistência é prestada por advogados, porém, nesse caso poderá ocorrer remuneração pelos cofres públicos. A insuficiente instalação da Defensoria Pública e o alto índice de pobreza no Brasil permite identificar tal modelo, ainda que de forma subsidiária e temporária, através da indicação e remuneração de advogados dativos, qual seja, aqueles nomeados para a defesa de caso específico no qual a parte é economicamente necessitada, sendo posteriormente remunerados pelo Poder Público pelo ato (processo, audiência, apresentação de defesa etc.).

Já no salaried staff model, também denominado de advocacia pública em razão de a prestação de assistência ser realizada por profissionais que recebem uma remuneração fixa para o desempenho da função como um todo (e não caso a caso, como ocorre no judicare), um corpo de profissionais é remunerado para atuar em todas as causas. No “modelo de pessoal assalariado” a assistência tanto pode ser prestada por entidades não estatais subvencionadas por verbas públicas, geralmente sem fins lucrativos, quando pode haver a criação de um organismo estatal responsável pela prestação da assistência por meio de seu próprio corpo de servidores. Neste último caso se enquadra a Defensoria Pública.

Por sua vez, os modelos mistos mesclam as fórmulas dos sistemas mencionados acima.

Destarte, no Brasil, o constituinte de oitenta e oito fez clara opção pelo “salaried staff model”, criando um organismo específico, a Defensoria Pública, para o desempenho da assistência jurídica integral e gratuita, conforme se lê no artigo 134 da Carta Maior.

De se notar que o modelo brasileiro não impede a prestação de assistência voluntária, por razões de humanidade. O que resta impedido é utilização de verbas públicas para o custeio de outro sistema, contrariando o preceito constitucional que atribuiu a um órgão específico (a Defensoria Pública) a função. A diferença reside no aspecto de que no modelo brasileiro de Defensoria Pública há direito (subjetivo) à assistência, enquanto no pro bono conta-se com a boa votante do profissional caridoso. Não há, assim, que se falar em exclusividade do serviço jurídico-assistencial pelo órgão público, considerando, ainda, a possibilidade de patrocínio advocatício privado, ainda que condicionado o pagamento de honorários apenas no final do litígio ou em caso de sucesso da demanda.

Assim, a Defensoria Pública é responsável, no Brasil, pela realização da prestação de assistência jurídica integral e gratuita, por meio de um corpo de Defensores Públicos que seguem regras próprias de seleção, remuneração e atuação.

Segundo a Teoria do Órgão, a Defensoria Pública, por analogia com as ciências biológicas, configuraria uma parte do corpo (humano), que, no seu todo, formaria o Estado brasileiro, ao lado de outros órgãos, todos componentes da unidade total, com a específica atribuição prevista no artigo 134 da Constituição Federal.

A doutrina administrativista costuma classificar os órgãos públicos, quando à sua posição estatal, em (a) independentes, (b) autônomos, (c) superiores e (d) subalternos ou inferiores[3]. Os primeiros, por expressa disposição constitucional, são aqueles que atuam sem subordinação hierárquica ou funcional, de modo independente, por assim o exigirem suas próprias atribuições. Dentre esses são apontados, tradicionalmente, o Ministério Público e os Tribunais de Contas. Já os segundos, situam-se logo abaixo dos independentes, estando subordinados diretamente aos chefes desses, mas detendo ampla autonomia administrativa, financeira e técnica. Por não interessar ao objeto do presente texto, deixamos de nos ater quando às duas últimas classificações.

Assim, excluídas as duas últimas categorias, a dificuldade de enquadrar a Defensoria Pública (como órgão independente ou autônomo) decorre de um distúrbio somente corrigido com advento das Emendas Constitucionais 45/2004 e 74/2013. É que, embora a instituição deva ser, por essência, independente (especialmente em razão de suas atribuições e independência funcional de seus membros, c.f. LC 80/1994), não lhe era atribuída, até a alteração promovida pelas emendas, autonomia funcional, administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária[4]. Não seria possível, assim, que, dentro de uma classificação escalonada, um órgão pudesse ser independente, sem que tivesse autonomia.

O advogado e professor de direito constitucional Cláudio Pereira de Souza Neto aponta interessantes critérios para se aferir o acerto quanto ao destacamento de um órgão do Poder ao qual pertence, por meio da atribuição de autonomia, sem que reste ferido o ordenamento jurídico. São eles: (a) o critério funcional, com vistas a verificar se o órgão exerce uma função inerentemente executiva; (b) o da coerência, devendo ser questionado se o texto originário da Constituição Federal possui princípios que são coerentes com a atribuição de autonomia; (c) o da integridade das funções estatais, com o fito de analisar se a concessão de autonomia a um ente específico se insere em um movimento de fragmentação do todo, que possa levar a sua desestruturação[5].

No tocante à Defensoria Pública brasileira, observa-se que suas atribuições não são tipicamente administrativas. A Defensoria Pública, que exerce função essencial à Justiça, é instituição voltada ao pleno acesso à justiça, e, como decorrência disso, à efetividade dos demais direitos fundamentais pelos mais necessitados e vulneráveis, historicamente excluídos, se voltando, muitas vezes, contra o próprio Poder Executivo, responsável pela efetivação de normas jusfundamentais. Destarte, as atribuições da Defensoria Pública não são inerentes ao Poder Executivo.

Quanto à coerência, a verdade é que as Emendas Constitucionais 45 e 74 tornaram a Constituição mais coerente, afinando o funcionamento da Defensoria Pública à previsão contida no inciso LXXIV do art. 5º da Carta de 1988.  Nesse aspecto, é importante observar, conforme anota Maurílio Casas Maia, que a Assembleia Nacional Constituinte já alertava para a necessidade de uma Defensoria Pública autônoma, configurando uma promessa do constituinte[6].

Por fim, não se observa qualquer processo de fragmentação, não havendo que se falar em desestruturação do Poder Executivo, que se mantém íntegro e forte, a par da independência e autonomia da instituição.

A autonomia, portanto, é necessária e inerente à própria configuração da Defensoria Pública como órgão independente, cuja missão é prestar assistência jurídica integral e gratuita de forma efetiva.


Notas e Referências:

[1] A classificação é utilizada por Jellinek, citado por ALEXY, Robert em: Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 255-269.

[2] Nesse sentido: ALVES, Cléber Franciso. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos estados unidos, na frança e no brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006; Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da defensoria pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014; LIMA, Frederico Viana de. Defensoria pública. 3. ed. Salvador: JusPodvm, 2014; e NETO, José Wellington Bezerra da Costa. Assistência judiciária gratuita: acesso à justiça e carência econômica. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.

[3] Nesse sentido: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

[4] Referida autonomia se mostra imprescindível à necessária independência de instituição que litiga diariamente com o próprio Poder Executivo, o mesmo ao qual encontrava-se vinculada e que insiste, ainda hodiernamente, em manter algumas ramificações da Defensoria (nos Estados Federados e na União) com reduzida estrutura física e de pessoal, impedindo a real efetivação de direitos, inclusive do próprio acesso à Justiça.

O reconhecimento de autonomia ao órgão, todavia, ainda gera discussões. Em face da Emenda 74, por exemplo, foi Ajuizada Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI 5296), pela Presidência da República, ainda pendente de julgamento.

[5] Constitucionalidade da autonomia da Defensoria Pública da União. Disponível em: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/outros-destaques/constitucionalidade-da-autonomia-da-defensoria-publica-da-uniao/. Acesso em 01.05.20163

[6] Autonomia: promessa do Constituinte à Defensoria e um débito histórico quitado. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/autonomia-defensoria/. Acesso em 01.05.2015.


Edilson Santana G. Filho

. . Edilson Santana G. Filho é Defensor Público Federal. Especialista em Direito Processual. Professor de Direito Constitucional. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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