O ENCERRAMENTO SUPERVENIENTE DE UMA CPI, CUJA LEGALIDADE DE ALGUNS ATOS FORA QUESTIONADA, NA JUSTIÇA, IMPLICA, AUTOMATICAMENTE, A PERDA DO OBJETO DA MEDIDA OU AÇÃO JUDICIAL INTENTADA? ENTENDEMOS QUE NÃO

03/02/2022

Sempre quando há a instauração de Comissões Parlamentares de Inquérito, não é incomum que seus alvos ingressem com mandados de segurança, ou outras medidas judiciais, na Justiça, contra eventuais atos ilegais praticados pelos membros da Comissão, a qual, não raro, pode praticar atos invasivos da intimidade, como a quebra de sigilo de dados.

Este dilema tem que ser enfrentado, sobretudo frente ao poder que ostenta uma CPI de decretar, por exemplo, mais modernamente, a quebra do sigilo telemático, carecendo a matéria de discussão nos tribunais pátrios, sendo que um dos primeiros Magistrados a levantar esta questão, a respeito da legalidade desta medida tão invasiva, foi o Ministro Gilmar Mendes, ao conceder, em parte, liminar para o Brasil Paralelo[1], sendo a matéria afetada para discussão em Plenário, dada a sua relevância.

Mas o ponto deste artigo não é discutir a (i)legalidade de atos praticados pela CPI x, y ou z, mas de apontar para entendimento, que ainda carece de maior análise nos tribunais, sobretudo de parte de alguns integrantes do Poder Judiciário, de que, com o mero encerramento dos trabalhos de uma CPI, cujos atos foram impugnados judicialmente durante o seu trâmite (com o ingresso, por exemplo, de mandado de segurança), implicaria a perda do objeto da medida judicial então manejada.

O motivo utilizado para considerar que, em tese, haveria perda superveniente do objeto da ação intentada, salvo melhor juízo, não é, respeitosamente, o mais acertado, pois a ilegalidade suscitada carece ainda, portanto, de uma resposta do Poder Judiciário, sob pena de se fazer letra morta o preceito de Acesso à Justiça, constante do artigo 5, inciso XXXV, da Magna Carta.

Conforme bem ensina o Ministro ALEXANDRE DE MORAIS, a respeito do postulado sobre o Acesso à Justiça: “o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação corretiva, independentemente de lei especial a outorgue” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24.ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.83)(grifamos e destacamos)

O fato de haver o encerramento de uma CPI (qualquer que seja) não implica perda superveniente do objeto dos remédios constitucionais utilizados para questionar a legalidade de seus atos, por falta de interesse processual.

Ora, uma vez havendo violação de direito líquido e certo de alguém, recorre-se à Autoridade Competente, o Judiciário, de modo a sanar e fazer cessar a ilegalidade de um ato praticado por uma CPI.

O interesse-utilidade, por seu turno, alicerça-se na demonstração de que, além de necessário, o processo deve ser útil ao fim visado, observando que se havia patente interesse utilidade quando da propositura do mandado de segurança, pela quebra indevida de um sigilo de dados, por exemplo, tais dados obtidos continuam constituindo, por exemplo, uma prova ilícita, que a própria Constituição sanciona, determinando a sua INADMISSIBILIDADE, não cessando a ilegalidade apenas pela extinção da CPI.

A prosperar o entendimento de que, por exemplo, o remédio constitucional do mandado de segurança, frise-se, de envergadura fundamental, perderia o seu objeto com o mero encerramento das atividades de uma CPI, apesar da prática de atos apontados como ilegais e abusivos, poderia implicar que a Autoridade Coatora indicada, em determinado caso, na iminência de ver reconhecido o constrangimento ilegal, ainda que parcialmente, encerrasse as suas atividades (com o fim da CPI), para evitar a concessão de tutela pelo Judiciário.

Enfim, um instrumento constitucional importantíssimo, como é o mandado de segurança, o qual, nas palavras do Ministro ALEXANDRE DE MORAES, é “instrumento de liberdade civil e política” (Direito Constitucional. 24.ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 152), pode ser completamente esvaziado, data vênia, com este entendimento, ainda mais diante de atos praticados por Comissão Parlamentar de Inquérito, que sempre tem caráter político, qualquer que seja a sua finalidade, podendo realizar uma série de atos atentatórios aos direitos fundamentais, os quais ficariam sem a devida tutela jurisdicional sob o argumento, com todo o devido respeito, singelo de que a CPI foi encerrada.

Tal posicionamento poderia propiciar, inclusive, incentivo para que Autoridades Públicas continuem praticando atos ilegais, referendando ainda maior arbítrio, na medida em que atos manifestamente abusivos poderiam eventualmente ficar à margem da devida (e, por que não dizer, necessária) prestação e tutela jurisdicional.

Outrossim, não poderia o jurisdicionado, justamente a parte que maneja um remédio constitucional, a parte mais fraca, atingida por ato manifestamente ilegal do Estado (CPI), ser, na prática, punida pelo seu encerramento superveniente, sendo considerado prejudicado o remédio jurídico manejado, sobretudo considerando a plausibilidade das razoes invocadas, mormente quando o pedido liminar foi concedido, muitas vezes, pelo próprio Judiciário.

Mesmo porque, cabe anotar, o interesse processual permanece íntegro, pois, ainda que extinta a CPI, o ato ilegal foi praticado, tendo produzido efeitos, sobretudo considerando a devassa nas informações do cidadão, com a exposição dos seus dados, quebrados indevidamente, observando-se que, pela própria imprensa, foram noticiados diversos vazamentos indevidos em quebras empreendidas por várias CPIS, ao longo da história.

Ademais, os dados coletados, com ofensa ao seu direito à intimidade, podem, eventualmente, ser compartilhados, a qualquer tempo, com outras Autoridades, sendo que a ilegalidade originária remanesce e pode ser potencializada.

O princípio de Acesso (efetivo) à Justiça – sobretudo em um prazo razoável, que é outra garantia constitucional - não se coaduna com posições mais formalistas, sob pena de se olvidar o princípio da instrumentalidade das formas, fazendo-se do formalismo, ou da forma, um fim em si mesmo, ao, por exemplo, se extinguir um remédio constitucional idôneo e cabível contra uma arbitrariedade, deixando-se o direito tutelado à margem de (qualquer) controle jurisdicional ou, ainda que sujeito a controle posterior, sujeito a maiores ônus, esperas e lesões, dada a espera ou demora ínsita à concessão de tutela posterior.

Evidentemente, não se renega o formalismo, mas sim aquele sem sentido, utilizado como argumento potencializador da violação de direitos; a este respeito, nada melhor que analisar a história, sobretudo no que tange aos mais variados tipos de processos, sendo que, sobretudo nos procedimentos históricos conhecidos por inquisitórios, houve, certamente, como não poderia deixar de ser, a previsão de formalidades; contudo, estas eram absolutamente inúteis, já que instituídas com o fim único de tornar o processo apenas mais confuso, moroso, sem sentido, haja vista a finalidade de dificultar a defesa e a tutela de direitos e garantias fundamentais.

Conforme ensina LUIGI FERRAJOLI, “normas deste tipo chegaram ao seu máximo desenvolvimento nos velhos regimes inquisitivos, que inventaram ‘uma multiplicidade de formalidades’, ‘dilações’, ‘intrigas e labirintos’, cujo único efeito foi o de tornar ‘complicada a simples máquina dos juízos públicos’, até o ponto de a história do procedimento penal parecer a Bentham ‘o contrário do das demais ciências: nas ciências se vão simplificando cada vez mais os procedimentos acerca do passado; na jurisprudência, ao contrário, se vão complicando cada vez mais. Enquanto todas as artes progridem multiplicando os resultados com o emprego de meios mais reduzidos, a jurisprudência retrocede, multiplicando os meios e reduzindo os resultados’” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 50 (grifamos e destacamos)

Tão deletério quanto a ausência da forma é o apego radical a ela, o que pode tornar o procedimento ou o processo um verdadeiro labirinto, conforme ensina o Professor Titular de Direito Processual das Arcadas, JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE (Efetividade do processo e técnica processual. 2ª ed. Malheiros, 2007, p. 52).

Na prática, ao se entender que uma medida judicial ficaria prejudicada, frente ao encerramento de uma CPI (em relação à qual houve questionamento quanto à legalidade de atos), um elemento, por exemplo, originário de quebra indevida de dados, portanto, constitutivo de prova ilícita, à qual a Constituição Federal prevê a maior SANÇÃO DE INADMISSIBILIDADE (a ensejar vício que gera mais que a nulidade, até mesmo a inexistência jurídica, conforme defendem os Professores das Arcadas, GRINOVER, SCARANCE e GOMES FILHO[2]), poderá produzir efeitos, gerando, assim, danos até mesmo irreparáveis a direitos e garantias fundamentais, haja vista a decisão que poderia ir no sentido de se extinguir o feito, sob o argumento de perda superveniente de objeto.

Neste sentido, o entendimento criticado, no presente, não se coaduna com o princípio da economia processual.

Até porque, como bem ensina a doutrina processual mais moderna, e conforme tônica empreendida pelo Novo Código de Processo Civil (2015), existe o princípio da primazia do julgamento de mérito em detrimento de supostas questiúnculas formais (evidentemente, ressalta-se: não se quer, de forma alguma, menosprezar a forma, mas sim o formalismo sem sentido), o que se coaduna com o espírito constitucional do preceito que estatui o Acesso (Material) à Justiça e à Efetividade da Jurisdição (devendo o direito ser concretizado, isto é, efetivado, sobretudo fora do processo, não sendo o processo um fim em si mesmo, sem resultados práticos).

Para finalizar, citam-se as sempre lúcidas lições do Professor CASSIO SCARPINELLA BUENO, que deve orientar a matéria discutida neste breve artigo: “o princípio da efetividade do processo, por vezes denominado de efetividade da jurisdição, também encontra seu fundamento contido no inciso XXXV do art. 5 da CF de que a lei não excluirá nenhuma lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário. Sua noção nuclear repousa em verificar que, uma vez obtido o reconhecimento do direito indicado como ameaçado ou lesionado, seus resultados devem ser efetivos, isto é, concretos, palpáveis, sensíveis no plano exterior do processo, isto é, ‘fora’ do processo. O princípio da efetividade do processo – nesse sentido – e diferentemente dos demais - , volta-se mais especificamente aos resultados da tutela jurisdicional no plano material, exterior ao processo. É inócuo falar em um ‘processo justo’ ou em um ‘processo devido’, dando-se a falsa impressão de que aqueles atributos tendem a se esgotar com a tão só observância da correção do meio de produzir a decisão jurisdicional apta a veicular a tutela jurisdicional. O ‘justo’ e o ‘devido’, com efeito, vão além do reconhecimento jurisdicional do direito. É essa a razão pela qual me parece mais adequado propor, para substituir a tradicional expressão ‘efetividade do processo’, outra, que coloque ênfase onde ela deve ser posta: efetividade do direito e no processo. Não se trata, enfatizo, de entender ‘efetivo’ o processo em si mesmo considerado. A efetividade do processo mede-se pela sua capacidade de tornar reais (concretizados) os direitos controvertidos, ameaçados ou lesionados. É que, na perspectiva do próprio modelo constitucional, é suficientemente alcançado pelo inciso LXXVIII do art. 5º que rotulo, no número anterior, de eficiência processual. Na exata medida em que a autotutela é vedada e que a sua contrapartida é a tutela jurisdicional, é irrecusável a conclusão de que a tutela daqueles direitos depende do processo. Sem processo não há direito efetivo. A efetividade, é do direito, e não do processo” (BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 65)(grifamos e destacamos)

 

Notas e Referências

[1] https://www.conjur.com.br/dl/gilmar-brasil-paralelo.pdf

[2] “É que as provas ilícitas, sendo consideradas pela Constituição, e agora pela lei, inadmissíveis, não são tidas como provas. Trata-se de não-ato, de não-prova, que as reconduz à categoria de inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas: não têm aptidão para surgirem como provas” (FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 11 ed. SP, RT, 2009, p. 136). No mesmo sentido: ARANTES FILHO, Márcio Geraldo Britto. A interceptação de comunicação entre pessoas presentes como meio de investigação de prova no direito processual penal brasileiro. Dissertação (Mestrado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2011, p. 87; AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. São Paulo: RT, 2010, p. 109; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. RJ, Elsevier, 2012, p. 291; GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. A tortura e prova no processo penal. São Paulo: Atlas, 2002, p. 105. No ponto, a nosso ver, questionamos, em certo sentido, o entendimento de que as provas ilícitas seriam atos juridicamente inexistentes, por reputar que a nulidade é instituto melhor aplicável à espécie.

 

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