Por Giseli Caroline Tobler - 16/03/2016
Sob o comando de Adolf Hitler os nazistas foram responsáveis pelo extermínio de pelo menos 6 milhões de judeus, 3 milhões de prisioneiros soviéticos, 2 milhões de poloneses, além de outros milhares de indivíduos considerados "indesejáveis". O exército de Josef Stalin, líder soviético durante os anos de 1922 a 1953 dizimou cerca de 20 milhões de russos. Na China, o comunismo de Mao Tsé-Tung liquidou em torno de 30 milhões de chineses. (pág. 33)
No genocídio de Ruanda, na África Central, ocorrido no ano de 1994, o governo hutu determinou que todos aqueles que pertencessem a tribo tutsi deveriam ser executados. Em um período de aproximadamente três meses, segundo relatório das Nações Unidas, entre 800 mil e 1 milhão de ruandeses foram mortos brutalmente. Em uma entrevista concedida anos depois, um dos assassinos da tribo tutsi relatou: "A pior coisa do massacre foi matar o meu vizinho; costumávamos beber juntos e seu gado pastava na minha grama. Ele era como um parente" (pág. 34). Em outro depoimento, um indivíduo alega: "Matávamos todos que encontrávamos [escondidos] [...]. Não tínhamos razão para escolher, esperar ou temer alguém em particular. Éramos cortadores de relações, cortadores de vizinhos, apenas simples cortadores" (pág. 38).
A partir desse contexto histórico de conflitos e massacres e de tantas outras mortes impiedosas realizadas por pessoas aparentemente normais que, após sofrerem algum tipo de estímulo, seja por força de um discurso legitimador que subtrai as qualidades daqueles a quem se deseja arrebatar a vida seja pelas características inerentes a própria condição de ser humano, o Professor emérito de Psicologia da Universidade de Stanford e Presidente da American Psychological Association, Philip Zimbardo, traz em seu livro O Efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más alguns importantes questionamentos.
Segundo Zimbardo não existe uma disposição distinta, no qual de um lado estão aquelas pessoas boas, sempre bem-intencionadas e de outro os sujeitos de conduta forçosamente desviante. Em outras palavras, não há uma linha divisória entre sujeitos bons e maus, certos e errados, amáveis e odiáveis, cultos e imorais, santos e perversos, anjos e demônios. Ao longo de sua obra, vários questionamentos importantes são feitos, três deles merecem destaque com o intuito de nos fazer refletir: "Quão bem você conhece a si mesmo, as suas forças e fraquezas? Seu autoconhecimento advém da observação de seu comportamento em situações familiares, ou quando exposto a contextos completamente novos, onde seus velhos hábitos são postos à prova? [...] quão bem você conhece as pessoas com quem convive diariamente: sua família, amigos, colegas e pessoa amada?". (pág. 25)
Para Philip Zimbardo, após a realização e estudo de alguns experimentos, que serão analisados ao longo dessas linhas, o autoconhecimento humano está restrito as situações cotidianas, aquelas em que acreditamos ter o domínio e as quais estamos habilitados a resolver. Para situações novas, aparentemente não dispomos de condições para solucionar as divergências utilizando-se unicamente desses métodos habituais. "O seu eu antigo pode não funcionar como esperado quando as regras básicas se modificam" (pág. 25).
Partindo dos ensinamentos da Psicologia Social algumas máximas da conduta humana serão submetidas a esclarecimentos. O foco das respostas será deslocado do tradicional ponto de vista no qual as perguntas se pautam principalmente na figura emblemática do indivíduo, tais como: "Quem é o responsável? Quem foi o causador? Quem fica com a culpa? [...]". (pág. 27). Dada a incerteza e grande probabilidade de comportamentos incomuns diante de cenários pouco explorados, ao menos para uma boa parte das pessoas, questionamentos diversos daqueles usuais devem ser substituídos por outros, como por exemplo: "Quais circunstâncias podem estar envolvidas na criação desse comportamento? O que foi a situação na perspectiva de seus atores? [...] Em que medida as ações individuais podem ter se originado fora do seu autor, em variáveis situacionais e processos ambientais únicos a uma dada situação?". (pág. 27).
O entendimento para uma conduta realizada por um sujeito qualquer apresenta como ponto fundamental uma perspectiva estranha aquelas dispostas no próprio indivíduo. Philip Zimbardo nos oferece uma possibilidade de compreender a transformação do sujeito bom, respeitado, gentil e generoso para alguém violento, cruel, tirânico e desumano. O fator situacional, a circunstância e o ambiente são capazes de ocasionar essa diabólica, vertiginosa e facilmente transponível passagem que separa o bem do mal.
Para Zimbardo, qualquer ambiente, com determinadas características e passível de certas circunstâncias tem o poder de acarretar mudanças no comportamento, sobretudo, em pessoas que naturalmente apresentam uma conduta influenciável. Todavia, seu mais importante experimento se volta para um ambiente que, de certa forma, está desde sempre impregnado por situações arbitrárias, deteriorantes e vexatórias, em que o poder das circunstâncias gera basicamente dois tipos de indivíduos: aqueles que mandam, e aqueles que apenas obedecem. Philip Zimbardo foi o responsável pelo famoso Experimento da Prisão de Stanford, realizado no ano de 1971, no porão do Jordan Hall, da Universidade de Stanford.
O experimento proposto por Zimbardo consistia em dividir aleatoriamente um grupo de estudantes universitários sadios, destituídos de qualquer histórico de doença, em prisioneiros e guardas para, em um período de duas semanas, conviverem em um ambiente simulado de prisão. Tal como em uma cadeia real, regras foram impostas, bem como castigos por ocasião de qualquer ato tido como contrário aqueles estabelecidos. O próprio professor Philip Zimbardo assumiu o papel de Diretor da falsa prisão de Stanford.
Importante atentar-se para o fato de que a prisão simulada de Zimbardo não traz todas as particularidades condizentes com uma prisão real, sendo até certo ponto "benigna" em relação a esta. Seus prisioneiros não pertenciam ao rol de criminosos, sequer apresentavam condutas desviantes, eram supostamente pessoas isentas de qualquer patologia. Do mesmo modo, aqueles que assumiram o papel de guardas nunca antes estiveram em uma penitenciária, controlando, ordenando, invadindo literalmente a privacidade daqueles a quem tinham a responsabilidade de vigiar.
O que efetivamente assemelhou a prisão de Stanford a qualquer encarceramento real foram os traços peculiares deste ambiente, cujas circunstâncias impostas trouxeram resultados devastadores a alguns estudantes já no primeiro dia de confinamento. Gradualmente os papéis atribuídos a cada grupo foram tomando forma, e cada qual assumiu de maneira tão rápida quanto distinta as crueldades intrínsecas ao poder e a submissão que lhes eram próprias. Os falsos guardas aos poucos se transformaram em sujeitos confiantes, seguros por seu status, acreditando verdadeiramente nessa ilusória, porém autêntica nova realidade. Igualmente os prisioneiros assumiram um posicionamento paradigmático de um condenado, subordinação, fraqueza, horas diminutas de sono, tortura psicológica, obediência extrema.
Do mesmo modo, o professor Zimbardo, então Diretor do presídio, assistiu com imparcialidade grande parte do desenrolar dos acontecimentos. Presenciou inócuo alguns de seus alunos prisioneiros implorarem para sair daquele ambiente apenas algumas horas após terem adentrado ao local. De fato, em poucos dias uma transformação crescente e contínua de atrocidades foi capaz de alterar negativamente o comportamento não apenas de jovens sadios e supostamente comuns como, do mesmo modo, atingiu Philip Zimbardo.
Findo o período de cinco dias o que se pôde testemunhar da prisão de Stanford foi uma realidade tal como a de qualquer prisão. Não havia humor, descontração, ou mesmo qualquer interação amigável entre os grupos. O que restava era apenas cansaço, físico e psicológico, irritabilidade fácil e constante, para os detentos qualquer resposta aos abusos sofridos deteriorava ainda mais seu comportamento, de tal forma que no decorrer do tempo estavam dispostos a ceder as torturas e abusos. Neste sentido, importante relatar que esta atitude de subordinação bem como as atrocidades cometidas pelos guardas não atingiu a todos aqueles que neste ambiente conviveram. Existiram aqueles que mantiveram suas convicções, resistindo bravamente a todas as circunstâncias e situações adversas, e que mais tarde foram relembrados por Zimbardo.
Christina Maslach, Ph.D. em Psicologia Social pela Universidade de Stanford juntou-se a equipe de Zimbardo pouco antes de o experimento atingir a sua metade, notório foi seu relato acerca dos acontecimentos assim como sua interferência foi crucial para o término prematuro desta importante experiência, diante de todos os abusos que presenciara. "Mais tarde, um dos membros da pesquisa disse-me que eu deveria dar uma olhada no pátio novamente, porque o novo guarda da madrugada havia entrado, e este era o turno do notório 'John Wayne'. Este era o apelido do guarda mais durão e cruel de todos, sua reputação o precedera em vários relatos que ouvira. É claro, estava ansiosa para ver quem ele era, o que fazia para atrair tanta atenção. Quando olhei pelo local de observação, fiquei absolutamente estupefada de ver que aquele a quem chamavam de John Wayne era o 'sujeito muito bom' com quem conversara a pouco. Só que agora ele era outra pessoa. [...] Era uma transformação impressionante com quem acabara de conversar - uma transformação que se dera em minutos, apenas atravessada a linha que divide o mundo externo e o pátio da prisão. Com seu uniforme militar, cassetete na mão, e óculos de sol prateados para ocultar os olhos [...], este sujeito era um eficiente guarda de prisão, decidido e realmente cruel". (pág. 245-246)
O experimento da Prisão de Stanford, planejado por Philip Zimbardo para durar duas semanas completas não alcançou sequer a metade de sua trajetória. A interferência e o término foram absolutamente necessários, dada a crueldade que se instalou naquele ambiente simulado, porém de consequências reais, sobre o comportamento dos jovens guardas e prisioneiros.
Em depoimentos posteriores alguns dos guardas lamentaram o encerramento precoce do experimento, para eles o auge do seu poder e controle sobre os prisioneiros era quase total, ou seja, acreditavam que dentro de pouco tempo teriam domínio completo sobre seus subalternos. "O fim do experimento também significou o fim da alegria de ter nas mãos o recém-descoberto poder de um guarda" (pág. 264). Para outros, entretanto, o término foi um alívio, uma vez que não tinham a intenção de torturar os detentos, mas estavam compelidos a fazê-lo ou mesmo a presenciar inertes as situações devido a combinação entre as circunstâncias em que estavam postos e que supostamente os direcionava para esses comportamentos unido ao medo de se impor diante de outros guardas mais ostensivos.
Em relação aos prisioneiros uma das principais declarações afirmadas no pós experimento foi quanto a perda de identidade que se instalou no momento em que se transformaram em detentos. Dentro da prisão não possuíam um nome, eram chamados apenas pelo número que lhes fora atribuído. Como se o passado tivesse se apagado e qualquer expectativa de futuro jamais fosse possível. Estavam presos em seu presente sem qualquer motivação a que pudessem se amparar contra todas as torturas e abusos. A vergonha também foi um fator que constantemente contribuiu para o retrocesso dos ideais. Quando receberam a visita de seus familiares a instrução fornecida pelos guardas foi a de que não falassem absolutamente nada a respeito dos abusos, mesmo sendo uma falsa prisão, em que poderiam de fato pedir para sair a qualquer momento assim como eram totalmente livres para relatar qualquer privação sofrida, nada disso fizeram, ao contrário continuaram a se comportar como sujeitos subalternos, presos não apenas naquele porão de Stanford mas igualmente dentro de suas próprias liberdades.
Ao citar a música George Jackson, de Bob Dylan, Zimbardo nos mostra que "às vezes o mundo parece um grande pátio de prisão: alguns de nós somos prisioneiros, e o resto de nós é guarda" (pág. 272).
Uma dúvida que constantemente pairava sobre os estudos de Zimbardo se remete a velha máxima de que se algo está errado possivelmente a causa se encontra nas chamadas "maçãs podres", ou seja, aquele seleto grupo de rebeldes aptos a desestabilizar todo um sistema com suas condutas contrastantes. Entretanto, uma análise minuciosa acerca dos resultados obtidos com o experimento da prisão de Stanford revelou que o ambiente prisional com sua carga psicologicamente coercitiva e de permanente opressão produziu nos estudantes o chamado "desamparo apreendido". Este termo foi utilizado inicialmente por Martin Seligman em experimentos com cães e consistia em aplicar choques nos animais privando-os da fuga, aos poucos estes apenas se conformavam e suportavam o choque mesmo quando lhes era dada a real possibilidade de fugir. Mais tarde, as consequências desse método puderam ser verificadas também em humanos, principalmente mulheres e crianças que sofreram abusos, prisioneiros de guerra e idosos residentes em asilos (pág. 692). "O desamparo apreendido é a experiência de passiva resignação e depressão que se segue a fracassos e punições recorrentes, especialmente quando estas parecem arbitrárias e não contingentes à ação de alguém" (280).
Alguns dos estudantes não suportaram sequer os primeiros cinco dias, tiveram de ser liberados já no segundo ou terceiro dia, devido a completa desordem que se instalou em suas capacidades cognitivas, provocando atitudes agressivas e emocionalmente abaladas. Quanto aos que permaneceram, suas reações gradualmente se perderam em meio ao caos daquele ambiente. As constantes privações, xingamentos e exigências feitas pelos guardas provocaram uma aceitação passiva em alguns dos prisioneiros, que passaram a se comportar tal como zumbis, indiferentes a qualquer novo estímulo.
Embora valendo-se de um experimento com um número de participantes relativamente baixo, Philip Zimbardo estava convencido de que seus alunos não eram "maçãs podres" sendo introduzidas em um ambiente salubre, antes os estudantes universitários saudáveis estavam drasticamente sendo inseridos no"barril podre" que é o sistema prisional. Antes do experimento iniciar os estudantes guardas poderiam perfeitamente ter feito o papel de estudantes prisioneiros e vice-versa. Eram todos semelhantes do ponto de vista psicológico. Suas posições foram definidas por meio de um simples sorteio, sem considerar qualquer outro aspecto. A única precaução inicial de Zimbardo ao selecionar os estudantes foi a de garantir que realmente eram normais e sadios.
Na tentativa de compreender melhor as complexidades presentes na psicologia do aprisionamento e, partindo das consequências e especificidades detalhadas em torno do Experimento da Prisão de Stanford, Zimbardo nos apresenta alguns processos psicológicos que, em maior ou menor grau, tem o poder de sujeitar indivíduos aparentemente normais a cometerem atos até então impensáveis contra outras pessoas. São eles, a desindividuação, a obediência à autoridade, a passividade perante ameaças, o mal da inação, sendo a desumanização o processo central nessa modificação de comportamento, uma vez que diminui os outros a condição de seres inferiores e, por consequência, merecedores de sofrimento e aniquilação.
Dizia Terêncio, autor de comédias da Roma Antiga "Nada do que é humano me é estranho". Sua conjectura tem razão de ser. A situação importa. O ambiente importa. E, as circunstâncias na maior parte das vezes são diretamente responsáveis, embora não percebamos, pela transformação de caráter. A tendência humana é reduzir a complexidade que existe por detrás das relações comportamentais. Por vezes desacreditamos que determinados indivíduos possam cometer qualquer brutalidade. Chocamo-nos quando essas informações são levadas até nossos ouvidos. Para essas pessoas existe uma linha preestabelecida e intransponível entre sujeitos bons e maus e esta divisão jamais será quebrada. Para Zimbardo, entretanto, esta linha divisória pode ser - e geralmente é - muito mais tênue do que se imagina. Segundo os resultados que obteve com seu experimento, bem como pesquisas diversas realizadas em Ciências Sociais não são apenas pessoas incomuns, portadoras de alguma patologia as responsáveis por uma conduta desviante, antes qualquer cidadão comum, saudável, do ponto de vista médico é capaz de cometer atrocidades. Em outras palavras "qualquer ato que tenha sido cometido por um ser humano, não importa quão terrível, pode ser cometido por qualquer um de nós - sob circunstâncias situacionais certas ou erradas" (pág. 300).
A natureza humana não é imutável, permanente e definitiva. O caráter está continuamente em formação. Na vida cotidiana essa mudança comportamental é pouco observável, pois nos moldamos de acordo com uma realidade conhecida, reagimos as situações habituais pautados em situações habituais, porém vivenciadas anteriormente, somos cópia permanente daquilo que constantemente fazemos. Essa condição muda completamente e em maior grau quanto mais diferenciado for o ambiente, a situação e as circunstâncias a que somos expostos. No ambiente prisional, essas alterações comportamentais se mostram ainda mais presentes. Nas palavras de Zimbardo "As prisões podem ser lugares brutalizantes que invocam o pior da natureza humana" (pág. 293). As prisões, ainda que fossem desprovidas de qualquer irregularidade, representam um ambiente insalubre por natureza e a circunstância a que são expostos aqueles que nelas adentram dificilmente são capazes de trazê-los novamente ao convívio social. O ambiente prisional apresenta em sua estrutura uma carga emocional poderosa na transformação de caráter. Por ser um "espaço vazio" delimitado, as situações já vivenciadas fora desse ambiente raramente se encaixam nessa nova realidade, aos poucos o passado vai sendo apagado e as perspectivas de futuro se tornam cada vez mais distantes. A única realidade existente é aquele momento, o momento presente, o estar ali, os comportamentos aos poucos se moldam para aquele instante tendo como perspectiva apenas um futuro imaginado. Na posição de prisioneiros e guardas a situação é agravada ainda mais.
O que inicialmente era para ser a representação de jovens estudantes universitários interpretando o papel de guardas ou prisioneiros transformou, ao menos alguns deles, de fato em guardas e prisioneiros. Essa condição poderia ser desconsiderada ou mesmo passar despercebida, por, quem sabe, ser inerente ao papel que ocuparam, mas analisando sob um enfoque mais minucioso algumas considerações importantes surgem.
Os papeis não estão restritos apenas aqueles interpretados por artistas de cinema ou de televisão, ao contrário estão presentes nas relações diárias, como, por exemplo, na profissão que se exerce. Um advogado tímido pode se mostrar habilidoso em sua defesa perante o Tribunal do Júri, de modo que praticando constantemente, suas habilidades oratórias se estendam para outros campos, consubstanciando aquilo que realmente é com o que gostaria ou necessita ser. Do mesmo modo, um juiz ou promotor podem valer-se do status que sua profissão lhes concede para fazer uso desse mecanismo comportamental em situações nas quais sintam-se desconfortáveis, mas tencionam demonstrar confiança e credibilidade. Os papeis nesses casos se misturam a realidade, aquilo que o indivíduo de fato é, até se transformarem, dependendo do quanto permanecem em seu personagem, em uma metamorfose de seu próprio eu.
Viver a partir de um personagem, significa, por vezes retirar-se de seu verdadeiro eu, o que até certo ponto não interfere de modo algum na realidade alheia. O problema surge quando esse papel toma a realidade de tal forma que o indivíduo passe a agir não da maneira como é mas como gostaria de ser e aqui, pode nascer uma identidade cruel e perversa. E, a medida que, dentro desse personagem começam a surgir recompensas advindas de sua atuação, o comportamento pode, efetivamente sofrer uma mudança extrema.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sob o comando de Adolf Hitler, médicos da SS diariamente exterminavam, de forma violenta e impiedosa milhares de judeus, fossem adultos, crianças ou idosos. Ausente qualquer intuito de defender ou legitimar os atos perversos dos médicos nazistas, Zimbardo propõe a compreensão e possíveis causas para diagnosticar as motivações que resultaram em tantas mortes desnecessárias. Como forma de apaziguar os conflitos psicológicos, entra em ação a chamada "compartimentalização" (pág. 304), um mecanismo de defesa do ego capaz de retirar do individuo toda a carga emocional negativa presente naquele momento em que comete suas atrocidades, em outras palavras seria uma defesa mental do próprio indivíduo para eximir a si mesmo de toda a culpa e imoralidade de suas ações, como se naquele instante por estar agindo em nome de seu personagem, este fosse o único responsável, estranho aquilo que o sujeito de fato é. Esta condição pôde ser verificada diante da defesa apresentada por líderes nazistas no julgamento de Nuremberg em que alguns alegaram estar apenas cumprindo ordens, para Zimbardo tal relato seria uma variante de "Não me culpe, eu estava apenas representando meu papel naquele tempo e naquele lugar - este não é meu verdadeiro eu". (pág. 309)
Nesta hipótese é perceptível, portanto, compreender a força das circunstâncias. Lee Ross fala da "caridade deliberativa", ou seja, é imprescindível "começar não culpando o ator pelo ato, mas antes, sendo caridoso, investigando primeiro a cena por detrás dos determinantes das circunstâncias do ato". (pág. 301). Como assevera Zimbardo, em uma sociedade individualista prevalece a descrença no outro, culpando o caráter alheio como algo próprio do indivíduo, retirando toda a carga influenciável promovida pelo ambiente, pelas situações e pelas circunstâncias. Porém, essa interferência, externa ao sujeito existe, basta observar com atenção.
Associado a essa possibilidade de emergir os mais profundos ímpetos a partir de um personagem surge um fator psicológico legitimador do poder das circunstâncias, o anonimato ou desindividuação. No meio da multidão é muito mais provável que o impulso se sobreponha a cautela, somos predispostos a agir, sobretudo a demonstrar nosso lado menos admirável quando nos sentimos anônimos, sujeitos sem identidade, sem uma identificação particular. No ambiente prisional, vestidos como guardas, com suas fardas, seus cassetetes, seus óculos escuros, o que se presencia não são pessoas, sujeitos, mas sim um grupo de pessoas, vistas como um todo, ou seja, anônimos e desindividuados. Estudos demonstraram que agir a partir dessa condição facilita atitudes agressivas e violentas, abrindo margem para o crime. Citando o livro O Senhor das Moscas, de Wiliam Golding, Zimbardo afirma "Quando todos os membros de um grupo de indivíduos estão em um estado desindividuado, seu funcionamento mental se altera: eles passam a viver em um momento de presente expandido, que torna o passado e o futuro distantes e irrelevantes. Os sentimentos dominam a razão, e a ação domina a reflexão. Em tal estado, os processos cognitivos e motivacionais usuais que dirigem o comportamento em caminhos socialmente desejáveis passam a não mais guiar as pessoas. Em vez disso, a racionalidade apolínea e a noção de ordem dão lugar ao caos e ao excesso dionisíaco. Assim, torna-se tão fácil fazer guerra quanto fazer amor, sem levar em conta as consequências". (pág. 311). A racionalidade como sendo apolínea se remete a harmonia, verdade e sabedoria de Apolo, deus da mitologia grega, ao passo que um individuo inovador, no sentido de inconsequente, aquém dos ideias formadores de um caráter sólido tende a seguir os caminhos promovidos por Dionísio, deus do vinho, associado ao prazer, a embriaguez e ao apego material.
Aliado a essas condições não se pode olvidar do poder das pressões sociais. Ainda que inconscientemente, é certo que a sociedade espera que um guarda seja forte, apresente um comportamento firme e, por vezes controlador. Ao passo que, em relação ao prisioneiro este, em princípio não deve ser resiliente, antes precisa "pagar por seus atos", sofrer as consequências, não importa quais métodos sejam empregados. A construção social em torno da realidade (pág. 313) exige que cada indivíduo cumpra seu papel. Portanto, em muitos casos não será a vestimenta que tornará o sujeito cruel, mas a formação de seu comportamento e, principalmente a necessidade de ser aceito a partir daquilo que a sociedade espera dele. O contrassenso é que essa mesma sociedade pode se mostrar ainda mais perversa.
Apresentando o outro lado da moeda, Zimbardo expõe aquilo que chama de "perversão da perfectibilidade humana", ou seja, grande parte das ferramentas diárias utilizadas para o bem podem igualmente ser aplicadas na prática de comportamentos cruéis. Seu questionamento gira em torno das circunstâncias não vivenciadas diariamente como fator determinante para uma mudança de caráter e possivelmente uma das causas de tantos comportamentos desviantes. Citando alguns exemplos, o autor nos permite compreender que, assim como a memória pode ser utilizada para recordar eventos trágicos e a partir dessa experiência aprender com os erros, da mesma forma pode trazer à tona fatores que aumentam o desejo de vingança, que alimentam a depressão. Outro ponto citado por Zimbardo se remete ao poder da linguagem, de um lado instruindo, capacitando, demonstrando mesmo o diálogo sadio e necessário e de outro lado espalhando estereótipos, fofocas, falsas propagandas, regras abusivas. Por fim, dispõe o autor sobre uma das maiores qualidades do ser humano, a criatividade, que poderia ajustar-se com precisão ao mencionado título, ao menos em parte, sendo visto, por vezes como a própria perfectibilidade humana. A criatividade constrói, inventa, renova, possibilita o acesso a internet, a comunicabilidade, cria e recria o imaginário humano, a partir de livros, filmes, peças teatrais, o auge da perfeição humana, não fosse sua utilidade deslocada para a criação de câmaras de gás, prisões desconformes com a própria natureza humana, métodos de tortura cruéis e degradantes. Significa, portanto, que "qualquer um de nossos atributos especiais contém a possibilidade de seu oposto negativo (...)". (pág. 326)
Nesse ponto, se faz necessário renovar as palavras do psicólogo Philip Zimbardo "compreender o 'porquê' do que foi feito não desculpa 'o que' foi feito. A análise psicológica não é uma 'desculpologia'. Indivíduos e grupos que se comportam imoralmente ou ilegalmente ainda precisam assumir a responsabilidade e responder legalmente por sua cumplicidade e por seus crimes. Contudo, ao determinar a severidade de sua sentença, os fatores situacional e sistêmico que causaram seu comportamento devem ser levados em conta". (pág. 326)
Um dos mais consideráveis processos psicológicos caracterizadores da mudança de um comportamento normal para a prática de crueldades apresentado por Philip Zimbardo se remete a desumanização do outro. Nessa transmutação de caráter o olhar sobre o outro prescinde de humanidade, ou seja, determinados indivíduos são caracterizados precocemente como desprovidos de sentimentos, pensamentos, vontades, desejos, amor ou qualquer outra característica inerente a um ser humano. A relação "Eu-Vós" se transforma desumanamente em "Eu-Isto", sendo o outro estereotipado como um animal, um objeto, uma coisa, algo irrelevante, sub-humano, dispensável e portanto digno de ser dizimado, até chegar ao ponto, dependendo do grau de negatividade da experiência vivenciada, em que o próprio sujeito desumanizador se mostra sem identidade, surgindo uma relação "Isto-Isto" (pág. 316). Uma das raízes do preconceito se remete a desumanização do outro, como se este apresentasse desde sempre uma "identidade estragada" (pág. 430). O sentimento de poder e dominação que nasce com essa descrença em relação a outro ser humano, talvez seja o fator determinante para a legitimação pelo próprio agressor de suas atitudes arbitrárias.
Aliada a desumanização do outro o mal da inação é fator igualmente determinante para a proliferação de condutas arbitrárias. Como afirma Edmund Burke "A única coisa necessária para que o mal triunfe é que os homens bons não façam nada". No mesmo sentido, Martin Luther King Jr. reforça a necessidade de aprendermos que "aceitar passivamente um sistema injusto é cooperar com esse sistema, e, portanto, tornar-se partícipe de seu mal". (pág. 439)
Conforme ressalta Zimbardo, o mal se prolifera não apenas nas condutas repulsivas, atos de violência, discursos de ódio. Antes ele se encontra naqueles lugares ocupados por pessoas vazias, que diante de um discurso silencioso "olha mas não vê", "escuta, mas não ouve" (pág. 439). Nesse ponto o questionamento se reporta aos motivos que levam algumas pessoas a presenciaram atos abusivos contrários as normas de bem viver em sociedade a permanecerem inertes mesmo quando tem o poder de modificar a situação.
O famoso caso Kitty Genovese é um exemplo importante para a compreensão de que mesmo em ambientes repletos de pessoas podemos não estar protegidos das adversidades e perigos em sociedade e geralmente não estamos. "Por mais de meia hora, no Queens [Nova York], 38 cidadãos respeitáveis e cumpridores da lei testemunharam um assassino perseguir e esfaquear uma mulher em três ataques separados, em Kew Gardens. Por duas vezes, o som de suas vozes e o acender repentino das luzes de seus quartos o interromperam e afugentaram. A cada vez, ele retornava, procurava-a e a esfaqueava novamente. Nem uma pessoa sequer telefonou à polícia durante o ataque; uma testemunha ligou para a polícia depois que a mulher estava morta [The New York Times, 13 de março de 1964]". (pág. 440). "Kitty morreu sozinha em uma escadaria, onde não mais conseguiu escapar de seu assassino enlouquecido". (pág. 440)
Outra situação apresentada por Zimbardo acerca do mal da inação se mostra ainda mais insana. Ocorreu pouco tempo depois do caso de Kitty Genovese e "deu-se uma imagem ainda mais vívida e arrepiante de quão alienados e passivos podem ser os espectadores. Uma secretária de 18 anos foi espancada, sufocada, despida e estuprada em seu escritório. Quando finalmente conseguiu se livrar do assaltante, nua e sangrando, ela desceu correndo as escadas do prédio até a entrada gritando 'Ajudem! Ajudem! Ele me estuprou!' Uma multidão de cerca de 40 pessoas se juntou na rua movimentada e observou quando o estuprador a agarrou de volta escada acima para continuar seu abuso. Ninguém foi em seu socorro! Apenas a chegada casual de policiais que passavam impediu a continuação do abuso e um possível assassinato (The New York Times, 6 de maio de 1964)". (pág. 440-441)
A resposta para esse congelamento social e coletivo mediante atos públicos de agressão a outros indivíduos pôde ser compreendida a partir de pesquisas realizada por dois professores das Universidades de Nova York - Columbia e NYU, Bibb Latané e John Darley (pág. 441), respectivamente.
Para esses professores é nítido que o mal da inação surge precisamente pela expectativa de que o outro deve se responsabilizar por ajudar aquele que está sendo agredido. De outro modo, quanto mais pessoas presentes em um ambiente de violência menor será a probabilidade de alguém se propor a interferir. Muitas pessoas isoladamente tendem a cumprir seu papel social quando invocadas a cooperar mas em uma multidão a pressão diminui assim como a sensação de responsabilidade individual. Outro fator interessante se remete ao medo que algumas pessoas sentem de contribuir erroneamente e por conseguinte serem rotuladas de incompetentes, sobretudo em momentos nos quais agem por mera opção. Em meio a multidão prevalece a regra de "não-ação passiva". (pág. 441)
O mal da inação não se resume a pessoas desconhecidas, perdidas em meio ao vazio de uma multidão, existe, como assevera Zimbardo uma institucionalização desse não ajudar, não fazer, deixar que os outros se responsabilizem. Desde os policiais que desconsideram as atitudes agressivas de seus colegas perante uma minoria possivelmente desumanizada, passando pelos escândalos da Igreja Católica, aqueles de que se tem conhecimento, por óbvio, até os momentos que por sua carga emocional extrema ainda provocam náuseas. Citado por Zimbardo uma dos acontecimentos mais trágicos "do mal institucionalizado da inação ocorreu em 1939, quando o governo dos Estados Unidos e seu presidente humanitário, Franklin D. Roosevelt, recusaram-se a permitir que um navio, repleto de judeus refugiados, atracasse em qualquer um de seus portos. O SS St. Louis viera de Hamburgo, na Alemanha, até Cuba, com 937 judeus refugiados fugindo do Holocausto. O governo cubano alterou seu acordo anterior de aceitá-los. Por 12 dias, os refugiados e o capitão do barco tentaram desesperadamente conseguir permissão do governo norte-americano para conseguir atracar em um porto de Miami, que estava à vista. Negada a permissão para entrar nesse ou em qualquer outro porto, o navio retornou e atravessou o Atlântico. Alguns refugiados foram aceitos na Grã-Bretanha e em outros países, mas muitos acabaram morrendo em campos de concentração nazistas". (pág. 445)
É preciso, portanto, afastar essa visão isolada de que o mal se encontra em determinadas pessoas como característica intrínseca a estas. Os comportamentos são moldáveis e o ambiente apresenta grande influência nessas modificações. A partir de tudo o que foi demonstrado por Philip Zimbardo, é possível dizer que as circunstâncias possuem um papel fundamental na formação de caráter de uma sociedade. Importante acrescentar a crítica de Zimbardo ao sistema legal de justiça criminal, que pode perfeitamente ser aplicada ao modelo criminal brasileiro. "Nosso sistema legal de justiça criminal superestima as visões do senso comum sustentadas pela opinião pública sobre que coisas fazem as pessoas cometer crimes - normalmente apenas determinantes motivacionais e de personalidade. É o momento para o sistema legal de justiça levar em conta o corpo substancial de evidências das ciências comportamentais acerca do poder do contexto social de influenciar o comportamento, tanto de ações criminais quanto das morais". (pág. 448-449)
Como forma de compreender o motivo de tantos indivíduos comuns cometendo atos atrozes durante o Holocausto, o psicólogo social Stanley Milgram realizou um dos mais importantes experimentos relacionados a obediência cega à autoridade. Seu questionamento se remetia a quais fatores poderiam estar envolvidos a ponto de transformar cidadãos alemães comuns e sem um histórico de agressividade ou torturas em matadores impiedosos.
Resumidamente, o "paradigma da obediência de Milgram" (pág. 375), consistia em um teste para avaliar a memória e o aprendizado, de modo a encontrar soluções para melhorar seu funcionamento, porém empregando como método a punição. Dois candidatos eram selecionados, e por meio de um falso sorteio um permaneceria no papel de professor e o outro representando o aluno (que, neste caso, fazia parte do experimento). Ao aluno foram dadas várias palavras para que memorizasse. A cada acerto o professor poderia lhe dar uma recompensa mas quando cometesse erros, choques seriam aplicados e, conforme os erros avançassem a intensidade dos choques aumentava significativamente. O aluno se encontrava em uma sala e o professor em outra, sendo este auxiliado por um pesquisador.
Propositalmente, a cada nova serie de palavras o aluno errava sua resposta e a medida que avançava a intensidade dos choques, bem como os gritos de sofrimento do aluno, o professor começava a sentir-se desconfortável em infligir sofrimento a outra pessoa, questionando seu auxiliar se realmente deveria prosseguir. O ponto ápice da pesquisa de Milgram, ocorreu quando o pesquisador auxiliar interferiu alegando que era extremamente necessário ao professor concluir seu teste até o fim, pois não possuía outra escolha, uma vez que se comprometeu por meio de contrato a permanecer no experimento até o final. O poder das regras impostas fora outro fator determinante para que o professor permanecesse no experimento, nesse sentido a única saída que grande parte dos examinandos encontrou para fugir daquela tortuosa situação foi acabar o experimento o mais rápido possível, ainda que o aluno não mais reagisse a qualquer estímulo provocado pelas, cada vez, mais elevadas intensidades de choques.
Após o experimento, Stanley Milgram solicitou a médicos psiquiatras que respondessem, de acordo com seus estudos, quantos dos indivíduos participantes como professores concluiu os choques até sua intensidade máxima. A estimativa sugeriu menos de 1% dos candidatos. Estavam os psiquiatras redondamente enganados em suas hipóteses. De acordo com Milgram, dois em cada três participantes (65%) (pág. 380) foram até o final do teste, imputando aos alunos a máxima dor possível, ainda que tenha sido um experimento e, portanto, os choques não fossem verdadeiros.
A resposta para o imenso equívoco dos psiquiatras deveu-se ao fato de que quando estimaram a porcentagem suprimiram o poder das circunstâncias, fixando-se apenas nas características comportamentais inerentes a cada indivíduo. Ainda que os participantes reclamassem sentindo-se desconfortáveis naquela situação, não conseguiam visualizar uma saída diante da autoridade inabalável de seu supervisor. As variáveis psicológicas utilizadas por Milgram apresentavam um impacto maior ou menor na porcentagem final daqueles que permaneciam até o término do experimento, como quando diminua a distância ou o elo entre o professor e o aluno, geralmente quanto mais distantes estavam um do outro menor era a sensação de empatia. A partir dessas pequenas mas significativas modificações qualquer ambiente pode se transformar em um lugar propício ao abuso mediante a obediência extrema à autoridade. "Milgram foi capaz de demonstrar que índices de obediência podem se elevar para mais de 90% das pessoas que atingiram o máximo de 450 volts, ou ser reduzida para menos de 10% - introduzindo uma única variável crucial na receita da submissão". (pág. 382) O autor do experimento ainda revela que para se obter uma obediência extrema basta colocar alguém como o auxiliar daquele que se submete a torturar.
Portanto, a natureza comum da maior parte dos torturadores, no experimento de Stanley Milgram "revelou claramente a docilidade da natureza humana; quase todo mundo poderia ser totalmente obediente ou quase todo mundo poderia resistir às pressões da autoridade. Tudo depende das variáveis situacionais que vivenciam". (pág. 382) Como explanou Charles P. Snow, Either-Or (1961) "Quando se pensa na longa e sombria história do homem, descobre-se que muito mais crimes abomináveis foram cometidos em nome da obediência do que em nome da rebeldia". (pág. 383)
Na mesma linha dos resultados obtidos por Milgram em seu experimento sobre a obediência cega à autoridade, no ano de 1963, a filósofa social Hannah Arendt, publicou o seu mais significativo livro, um clássico, sobretudo nos tempos atuais. A obra Eichmann em Jerusalém: a banalidade do mal, traz uma análise minuciosa acerca do julgamento de Adolf Eichmann, nazista responsável pelo assassinato de milhões de judeus. Como defesa em seu julgamento, Eichmann valeu-se como tantos outros de seus colegas nazistas da máxima "Estava apenas cumprindo ordens". (pág. 404)
Partindo dessas observações, imprescindível se faz acrescentar as conclusões obtidas por Hannah Arendt após seu estudo acerca do caso Eichmann "O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições legais e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que [...] esse era um tipo novo de criminoso [...] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. Foi como se naqueles últimos minutos [da vida de Eichmann] estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou - a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos". (pág. 404-405)
A banalidade do mal, trazida por Arendt denota um fator importante na compreensão da mudança de um comportamento sadio para algo desumano. A orientação se volta para o sujeito desviante não mais como alguém patologicamente aquém da sociedade, com traços específicos próprios de sua condição pessoal. Antes o papel que cumprem, o treinamento que recebem, a necessidade de ser aceito pelo grupo em que vivem, bem como as ideologias defendidas por seus companheiros e, por vezes forçosamente introduzidas em nome de um modelo social de pacificação, que exclui todo e qualquer pensamento contrário a esse disposto, todos esses fatores situacionais e sistêmicos, atrelados a condição circunstancial em que o indivíduo é posto, ao poder que lhe é ofertado, as garantias oferecidas como respostas a esse poder concedido e, sobretudo a pressão social por uma produção de resultados imediatos, tem influência na mudança de um comportamento que facilmente pode transpor a tênue linha que separa sujeitos bons e maus.
A partir desse contexto proposto por Hannah Arendt, Zimbardo sugere o deslocamento do termo para as boas ações naquilo que denominou de banalidade do bem. Durante a realização de seu Experimento da Prisão de Stanford, em meio ao caos que se instalou no ambiente prisional simulado, Zimbardo constatou que alguns de seus estudantes se mantiveram firmes e convictos em suas próprias crenças, ou seja, para o psicólogo assim como o mal pode surgir inesperadamente de alguém que jamais imaginou que pudesse cometer qualquer ato ilegal, quanto mais cruel e violento, igualmente a bondade pode ser encontrada. E mais, pode estar presente nos mesmos ambientes insalubres, negativamente carregados, ainda que nesses lugares deva existir uma força de vontade considerável para sobreviver, é possível efetivamente resistir ao mal que neles habita.
Zimbardo propõe a celebração do herói comum e aduz "Essa percepção implica que qualquer um de nós poderia facilmente se tornar herói ou perpetrador do mal, dependendo de como somos influenciados pelas forças das circunstâncias. Torna-se imperativo descobrir como limitar, restringir e prevenir as forças das circunstâncias e sistêmicas que impelem alguns de nós rumo a patologia social". E conclui "Isso é obtido transmitindo a mensagem de que cada pessoa é um herói à espera, que será chamado a fazer a coisa certa quando o momento das decisões chegar (...) Precisamos preparar muitas coroas de louros para todos aqueles que irão descobrir seu reservatório de forças e virtudes ocultas, permitindo-lhes se aproximarem para agir contra a injustiça e a crueldade e se manterem firmes seus princípios morais". (pág. 669)
A "banalidade do heroísmo" postula que qualquer sujeito normal tem possibilidades de ser um herói. Geralmente somos descrentes quanto a essa condição e quando surge alguém digno do mérito heroico, a tendência é elevá-lo à condição de superioridade em relação aos demais indivíduos, trata-se, de certa forma, do mesmo modo de compreender aqueles que provocam o mal. Enquanto o herói é vangloriado o vilão é disposto à margem da sociedade. Como analisado anteriormente esse fato não se confirma, da mesma forma o heroísmo não é algo super-humano, próprio de Clark Kent, são as boas atitudes diárias, o comportamento compreensivo e solidário, o olhar o outro para além de si, a busca por melhores condições no âmbito da igualdade, o respeito mútuo. Em contraposição ao dito anteriormente, praticar o bem significa olhar e ver, ouvir e escutar e não apenas estar presente, é preciso modificar o mundo, ainda que se inicie por aquele próprio de cada um.
Como assevera Zimbardo "A banalidade do heroísmo quer dizer que somos todos heróis em potencial. É uma escolha que podemos todos ser levados a fazer em algum momento. Acredito que tornando o heroísmo um atributo igualitário da natureza humana, em vez de uma característica rara de poucos eleitos, podemos melhor estimular os atos heroicos em todas as comunidades. Segundo a jornalista Carol Depino: 'Todos têm a capacidade de se tornar um herói, de uma forma ou de outra. Às vezes, pode-se não percebê-lo. Para alguém, poderia ser tão pequeno quanto manter uma porta aberta e dizer 'olá' para o outro. Somos sempre heróis para alguém'". (pág. 671)
O heroísmo, portanto, deve ser celebrado como algo possível e universal, apto a atingir qualquer pessoa, sem distinção. Aqueles que habitualmente praticam atos heroicos, ainda que não considerem suas atitudes uma façanha digna de tal atribuição merecem especial estima, pois seus sacrifícios diários enriquecem a vida de todos.
Por fim, Zimbardo traz as considerações feitas por Daniel Boorstin sobre sua "apreciação dos heróis cotidianos não celebrados, que vivem e trabalham entre nós: Nessa vida de ilusão e quase ilusão, a pessoa com virtudes sólidas que pode ser admirada por algo mais substancial do que sua fama normalmente se revela como o herói não celebrado: o professor, a enfermeira, a mãe, o policial honesto, o trabalhador em tarefas solitárias, mal pagas, desprestigiadas e desconhecidas. Invertidas as coisas, estes podem permanecer heróis, precisamente porque permanecem não celebrados". (pág. 672)
Portanto, a mensagem final, após essa explanação que se iniciou com a origem de comportamentos voltados para o mal, é que os atos heroicos devem ser promovidos, compartilhados e, principalmente celebrados, pois representam o legítimo vínculo humano, a essência capaz de unir efetivamente as pessoas.
Notas e Referências:
ZIMBARDO, Philip. O Efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más. Rio de Janeiro: Record, 2013.
. . Giseli Tobler é graduada em Direito pela UFSC. Estuda decisão e comportamento a partir da Psicologia. .
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