O DRIBLE DO RÉU E A CITAÇÃO COM HORA CERTA NO PROCESSO PENAL  

26/07/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Existe o mundo ideal, no qual as pessoas sempre agem de boa-fé, são educadas e se dispõem a resolver os conflitos de interesses de maneira civilizada. Quando surge algum problema, as pessoas reúnem-se e conversam sobre aquilo que as angustia. Cada uma das pessoas expõe o seu ponto de vista, revela os seus argumentos e faz as suas ponderações. Depois disso, as pessoas chegam a um consenso. Elas fazem concessões e resolvem a questão da melhor forma possível. Em alguns países, é uma desmoralização as pessoas precisarem procurar o Poder Judiciário. Isso representa que elas não têm civilidade suficiente para resolver as suas questões. Nesse sentido, René David lembra que ir aos tribunais continua a ser, aos olhos dos japoneses, um comportamento condenável.[1]

Mas esse é o mundo ideal. No mundo real, as pessoas procuram o Poder Judiciário por qualquer problema que tenham. Na realidade brasileira, por exemplo, tem-se um incrível número de processos em curso nos tribunais, muitos ainda esperando o primeiro julgamento, muitos aguardando o julgamento de infinitos recursos. Não custa lembrar que os dados do Relatório Justiça em Números – 2018, do Conselho Nacional de Justiça, afirmam que o Brasil tem 80 milhões de processos em curso.[2]

Deposita-se no Poder Judiciário um poder que o mesmo não tem. Os juízes têm o poder de proferir a sentença, ou seja, diante dos argumentos das partes, cabe aos juízes decidir quem está certo, quem está errado e de que forma o caso deve ser solucionado. Mas o papel – no caso, a sentença – aceita qualquer coisa que nele seja escrita, o que não significa que se terá o efeito esperado pelos juízes.

Em outras palavras, os juízes decidem formalmente as questões e, às vezes, até conseguem decidir materialmente as questões, ou seja, eles conseguem modificar o mundo real. Mas nem sempre isso acontece. Para chegar-se a tal conclusão, basta imaginar um conflito envolvendo familiares que passam a estabelecer uma relação inviável. Um irmão que agrida uma irmã, por exemplo. Se eles não pararem para conversar e resolver, efetivamente, a questão, não será necessariamente a sentença de algum juiz que pacificará a questão. O juiz pode até dizer quem está certo e quem está errado. A sentença pode até atingir o trânsito em julgado. Mas, se os envolvidos não tiverem a iniciativa para tanto, o conflito permanecerá.

Por conta dessa característica social, há muitos casos em que sequer se consegue fazer com que algum juiz tente solucionar o problema. As pessoas não conseguem solucioná-lo e, por isso, um dos envolvidos procura o Poder Judiciário. Mas sequer mostra-se viável a parte autora conseguir contatar a parte ré para estabelecerem a relação processual.

É certo que, em alguns casos, a parte autora ajuíza a sua pretensão e simplesmente não consegue localizar a parte ré, seja porque não tem o seu endereço atualizado, seja porque realmente não consegue encontrá-la no seu endereço correto. Em outras palavras, ninguém age de má-fé processual e, mesmo assim, não se consegue levar o problema para o exame de algum juiz.

A citação é o ato processual através do qual o réu é convidado ao processo. Quase ninguém gosta de receber o mencionado convite, mas ele é fundamental para que a relação processual se estabeleça. Em verdade, é justamente através da citação que a parte ré toma conhecimento da existência do processo e passa a ter a possibilidade de apresentar os seus argumentos.

No mundo ideal, já que não houve a possibilidade de diálogo antes da existência do processo, a parte autora ajuíza a sua pretensão, o réu é citado e traz os seus argumentos ao processo, as partes produzem as provas que entendem devidas e o juiz decide. Tudo muito simples. Mas nem sempre é assim.

Existem algumas maneiras de citar o réu, mas a coluna de hoje dedica-se a uma situação especial. O que pretendemos é abordar a citação com hora certa, prevista no art. 362, caput, do CPP, o qual dispõe o seguinte: verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma estabelecida nos art. 227 a 229 da Lei n° 5869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

Em outras palavras, sabemos que o réu sabe da existência do processo e que ele está se escondendo para não ser citado. Eis o grau máximo de incivilidade: o réu não resolve a questão fora dos tribunais e também não quer resolvê-la dentro dos tribunais. Com tal propósito, o réu passa a gastar a sua energia driblando o Poder Judiciário. É disso que estamos falando.

O art. 1046, § 4°, do atual Código de Processo Civil, ensina que as remissões a disposições do Código de Processo Civil revogado, existentes em outras leis, passam a referir-se às que lhe são correspondentes neste Código. Por isso, em verdade, quando o art. 362, caput, do CPP, faz menção aos arts. 227 a 229 do CPC, devemos considerar que ele faz menção aos atuais arts. 252 a 254 do CPC.

Nesse sentido, o art. 252, caput, do CPC, dispõe o seguinte: quando, por 2 (duas) vezes, o oficial de justiça houver procurado o citando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar.

O evidente propósito do legislador é evitar que prevaleça a má-fé da parte a ser citada. Veja-se que não basta o réu não ser encontrado. É fundamental que o oficial de justiça verifique o réu está se ocultando justamente para evitar a citação. Buscando evitar qualquer alegação de que o réu não tomou conhecimento do processo, o legislador é cuidadoso e determina que seja intimada alguma pessoa da família ou algum vizinho do citando, para que lhe dê o recado no sentido de que o oficial de justiça voltará no dia seguinte para encontrá-lo.

Voltando ao local no dia seguinte e encontrando o réu, o oficial de justiça formaliza a citação sem qualquer problema. Mas se o réu persistir no seu propósito de evitar a citação, resta ao oficial de justiça elaborar uma certidão narrando o ocorrido e declarando o réu citado com hora certa.

Além disso, o art. 254, caput, do CPC, determina que o escrivão ou o chefe da secretaria envie, no prazo de 10 dias, contado da data da juntada do mandado aos autos, carta, telegrama ou correspondência eletrônica, dando-lhe de tudo ciência.

São muitos os cuidados do legislador. O réu é procurado pelo oficial de justiça e tenta ocultar-se. Diante da suspeita de ocultação, o oficial de justiça deixa um recado dizendo que voltará no dia seguinte. O oficial de justiça retorna ao local na hora certa, mas o réu continua ocultando-se. O oficial de justiça considera o réu citado com hora certa. Depois, o escrivão ou o chefe da secretaria envia correspondência ao réu informando tudo o que ocorreu.

No mundo ideal, tudo isso sequer seria necessário. As pessoas, diante de um problema, simplesmente conversariam e resolveriam a questão. O Poder Judiciário sequer seria chamado a intervir. No mundo real, não sendo possível as pessoas resolverem as suas questões, o Poder Judiciário é provocado, o réu é citado e traz os seus argumentos para o juiz poder decidir da melhor forma possível.

O que estamos tratando nesta coluna é o que de pior pode acontecer em um processo. O réu sabe que a questão foi judicializada, mas se esconde para não ser citado. Oculta-se para evitar a citação. Diante da existência de países nos quais buscar o Poder Judiciário é uma desmoralização para os envolvidos porque revela um acentuado grau de incivilidade, dá até uma certa vergonha pensar no réu que se presta ao papel de ficar driblando o oficial de justiça. É disso que se trata. Deixemos os nossos dribles para os gramados.

 

Notas e Referências

[1] DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 613.

[2] Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Relatório Justiça em Números – 2018. Disponível em: <www.cnj.jus.br>. Acesso em: 06 jul. 2019.

 

 

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