O discurso ambiental

15/09/2019

Talvez o Ser Humano nunca tenha estado tão perplexo, diante da realidade, como nos tempos atuais. A realidade que se constitui, ao mesmo tempo se dissolve, como uma nuvem que passa, faz chover e depois se dissipa. A vida em sociedade, caracterizada pela liquidez das relações sociais, transforma o cotidiano em uma arena de constante mutação, um espaço em que a própria subjetividade é automatizada pelo Ser Humano.

As experiências do dia-a-dia promovem a formação de uma ligação entre o Ser e a Consciência, resultando em comportamentos culturais, por vezes não linear. Na arena social do cotidiano, é a cultura que forma a visão de mundo do Ser Humano, determinando a calibração dos impulsos que gerarão as mudanças nos hábitos, nos costumes e nas normas de organização da sociedade.

Os diversos atores sociais (empresários, políticos, estudantes, profissionais liberais, quejandos), estão estruturados por visões culturais do mundo, expressadas por meio de discursos; uma habilidade imanente ao Ser Humano que se transforma em um instrumento a serviço da construção de uma hegemonia cultural, econômica e política. É pelo discurso que se revelam as aspirações subjetivas, que se demarcam os espaços sociais e que se concretizam as filosofias do mundo do trabalho, do universo religioso e de das regras morais, éticas e jurídicas.

O enfrentamento social, que para muitos ocorre no ambiente de classe, acontece antes de tudo no discurso, apregoado desde os noticiários até os púlpitos religiosos; com força para sedimentar erudições, algumas de ódio, de intolerância e de morte e, outras, de paz, de fraternidade e de amizade.

O discurso é a palavra, uma tecnologia moldada para dominar e convencer os Seres Humanos de que os obstáculos da vida surgem do fracasso individual e não do sistema de morte a que todos estão submetidos; que a história representa apenas o relato dos vitoriosos que ocupam o Poder hoje e, que as mudanças dependem do extermínio do outro, do fim da democracia e das liberdades.

O presente ensaio procurará destacar a importância do discurso para o sistema de proteção socioambiental do Brasil.

A transliteração da palavra.

Atualmente, o uso e o alcance da palavra possuem uma diversificação jamais vista e, sobretudo, jamais incompreendida. A palavra, para os indivíduos, é transliterada por meio da rede mundial de computadores; que garante através das redes sociais, o livre acesso para expressar toda e qualquer manifestação de pensamento, realizar comunicação gratuitamente e alcançar um público ilimitado. As redes sociais, ao mesmo tempo que transformou o universo da comunicação, permitiu a facilidade na comunicação, transformando o universo do Ser Humano, que envolto aos diversos valores, alguns engendrados pela casta social dominante, utiliza da tecnologia para muito além da comunicação. As redes sociais ocupam o lugar do “pão e do circo”, aliais, em condições mais favoráveis, já que a arena do circo é a palma da mão e o alimento, de todos os dias, é ansiedade de ver chegar uma nova mensagem.

Nas redes sociais, os atores praticam ações impensáveis e improváveis pela lógica racional, cuja inversão pressupõe uma extrema exposição da vida privada, do corpo e dos hábitos pessoais e familiares. Há, ainda, a sublime arte de fazer acreditar que o mundo é composto, apenas, por pessoas feliz, sanas, cultas, alegres e ricas.

Com a rede mundial de computadores veio o fim da soberania cultural e a derrocada da diplomacia internacional. Sem fronteiras, a disrupção tecnológica estabeleceu um novo campo de batalha pela hegemonia mundial nas áreas política, econômica, cultural e moral. As informações, poucos e limitadas quanto ao conteúdo, dão conta de que a espionagem cibernética é capaz de alterar a vontade democrática de um povo e, que o discurso certo, difundido de forma maciça pelas redes sociais pode derrubar políticos e eleger mitos em todo o globo terrestre.   

A congruência da internet acabou por flertar com a tirania, ao camuflar um ideal de igualdade social e individual, suplantando aspirações democráticas e inoculando o germe das ideologias totalitárias. Os filósofos das redes sociais descartam a leitura dos clássicos literários, ignoram a necessidade da investigação sobre informações veiculadas e fazem, da razão pessoal, a única verdade possível, descartando os postulados científicos, relativizando o papel da história e confundindo o Estado com a religião.     

Os Seres Humanos, armados com um ou mais smartphones, estão entrincheirados e não sabem corretamente quem são os mocinhos e os vilões na guerra do cotidiano – qual é a mensagem verdadeira? Atirando a ermo e sem direção, o Ser Humano luta para não ser atingindo por uma rede social; para não ser vítima de uma mensagem falsa e, sobretudo, para não ter a consciência alvejada. Na nova guerra, o Ser Humano não sangra, enlouquece; o Ser Humano não perde um membro do corpo, perde a consciência. É uma guerra invisível, silenciosa e que, ao contrário, não mata pela inanição, mas pela oferta indiscriminada e abundante de alimento – as múltiplas conexões.   

Mas, não se trata de fazer uma execração da internet ou de demonizar as redes sociais; ao revés disso, a perspectiva é reflexiva, pois, da palavra à comunicação, a questão não se resolve com a censura, mas conjugando liberdade e responsabilidade social. Um velho ditado, porém, adequado ao propósito e contemporâneo à sociedade do século XXI, explica que machados podem ser usados para cortar lenha ou decepar cabeças. A escolha não é dos machados, mas de quem os segura. Qualquer que seja a escolha (cortar madeira ou decepar cabeças), o machado não vai se importar. Logo, se a sociedade vai usar a tecnologia na comunicação social para conquistar avanços em direção à democracia ou se vai sucumbir pela alienação, a responsabilidade não é, necessariamente, da internet.

O Brasil presenciou inúmeros acontecimentos que tiveram sua origem na comunicação de massa, via redes sociais, comprovando como a internet pode alterar um quadro sociocultural ou político. Os mais expressivos exemplos alcançaram características de ordem social e política. Socialmente, os jovens da periferia expressaram sua cultura (ou a segregação socioeconômica e cultural) através da organização de encontros em pontos públicos, conhecidos como “rolezinhos”. Depois, no ambiente político, a tecnologia foi responsável pela convocação e pela massificação dos protestos de 2013, bem como pela realização da campanha eleitoral, vitoriosa, do atual Presidente da República Federativa do Brasil que, dispensando os grandes canais de comunicação e os debates oficiais, manteve (e mantêm) todo o relacionamento com os eleitores, exclusivamente, através das redes sociais.

A tecnologia, expressada popularmente pelas redes sociais, proporciona o meio mais rápido, barato e fácil de difundir ideias, ideologias e crenças; portanto, tornando-se responsável pela fixação, em última análise, das diretrizes políticas de uma nação. Embora não se possa dizer que os indivíduos são o que se comunica nas redes sociais, pode-se dizer, no mínimo, que os Seres Humanos que estiverem no modo off podem ser surpreendidos pelos Seres Humanos que estiverem no modo on-line. A extravagância virtual é o plebiscito da sociedade moderna, requerendo dos indivíduos respostas imediatas aos acontecimentos sociais; uma vertigem coletiva que propaga de forma irresponsável os sentimentos humanos. Assim, a tecnologia ultrapassou a política, entortou a ética e se transformou o mundo virtual em um tribunal de exceção, onde os fundamentos do julgamento são rasos, às normas aplicadas são de natureza moral e as penas são de banimento e vilipendio perpétuo à imagem.

A transliteração da palavra em discurso e do discurso em “figurinhas” da rede social é um fenômeno que não retrocederá, cabendo à sociedade saber usar a tecnologia a favor da vida e da dignidade das pessoas. A chave para o uso responsável da tecnologia passa pela reconquista (recolocação) da sensibilidade na emissão das informações públicas.

A palavra, a sensibilidade e o discurso socioambiental.

Quando o mundo é um reality shows grotesco, a sensibilidade no uso da palavra decorre da capacidade de o Ser Humano produzir e exteriorizar (individual ou coletivamente) uma comunicação verdadeira, ou seja, que afugente o medo do ridículo, a preocupação com o anonimato e o receio da exposição genuína da natureza humana.

O discurso socioambiental tem encontrado na arena tecnológica um palco para concretizar a disputa de sentidos e significados sobre preservação ambiental e crescimento sustentável. A crise ambiental, que antes de tudo é uma crise da razão, mobiliza atores extremados da sociedade e produz um discurso disputado pelos diversos atores sociais envolvidos.

A sociedade on-line acompanhada de forma atônita a plêiade de informações lançadas e, confusa, não percebe a construção de uma hegemonia econômica e empresarial na fixação do que seja meio ambiente e a respectiva importância do meio ambiente para a sociedade. Os mecanismos de comunicação legitimam a hegemonia do discurso do desenvolvimento sustentável baseado em soluções tecnológicas. Entretanto, a solução tecnológica pressupõe a manutenção da exploração dos recursos naturais sob a dialética de que o uso da tecnologia permitiria a substituição ou a redução no uso dos recursos naturais. Trata-se da difusão da teoria neoclássica da crise ambiental vivência no Brasil e no mundo, que desconsidera os processos de produção, distribuição e consumo de bens e produtos.

A ausência de sensibilidade na comunicação acaba por produzir uma informação socioambiental acrítica e sem conteúdo sociopolítico, fazendo com que o Ser Humano possua pouca ou quase nenhuma capacidade de intervenção para mudar a realidade social. A planificação da informação unilateral e a desqualificação das informações científicas não permite aos Seres Humanos a correta compreensão dos fenômenos socioambientais vivenciados por todo o mundo.

A comunicação socioambiental, nas redes sociais, não diferencia o discurso hegemônico entre a economia ambiental e a economia ecológica, sendo possível encontrar uma verdadeira salada de teorias e conspirações, contudo, em sua maioria, sem base cientifica. O resultado da desinformação é a prevalência de uma lógica de destruição ambiental perversa e silenciosa.

A experiência acerca da disputa pelo discurso ambiental mais recente do Brasil ocorreu em relação a informações sobre as queimadas na região da floresta Amazônica. É possível encontrar diversas informações nas redes sociais, inclusive nominadas pelo Chefe de Estado e de Governo do Brasil, contudo, o discurso hegemônico não permite credenciar a informação do Instituto Nacional de Tecnologia Espacial – INPE, um instituto criado pelo Brasil e para o Brasil.    

Conclusão.

Neste ensaio, procurou-se demonstrar o quanto o discurso é objeto de disputa e o quanto a tecnologia é responsável pela transliteração da palavra, levando-a, carregada de ideologia, para além das fronteiras de um país.

Restou demonstrado, ainda, que a sociedade on-line vive sob a égide de uma hegemonia que comunica um conceito específico do que seja meio ambiente e sobre o que significa crescimento sustentável.

Por fim, indicou que existe urgência na revisão dos postulados da comunicação, incluindo a sensibilidade ética, para que o Ser Humano possa desenvolver uma consciência crítica e política acerca do meio ambiente.   

 

Imagem Ilustrativa do Post: walk in the woods // Foto de: guilherme jofili // Sem alterações

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