1. O direito real de laje no Código Civil
No Brasil foi instituído, a partir da edição da lei federal nº. 13.465/2017, em 11 de julho de 2017, um novo direito real, a laje (art. 1225, XIII, do Código Civil) assim disposto:
‘Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.
§ 1º O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base.
§ 2º O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade.
§ 3º Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria, poderão dela usar, gozar e dispor.
§ 4º A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas.
§ 5º Os Municípios e o Distrito Federal poderão dispor sobre posturas edilícias e urbanísticas associadas ao direito real de laje.
§ 6º O titular da laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de um sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da construção-base e das demais lajes, respeitadas as posturas edilícias e urbanísticas vigentes.’
‘Art. 1.510-B. É expressamente vedado ao titular da laje prejudicar com obras novas ou com falta de reparação a segurança, a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício, observadas as posturas previstas em legislação local.’
‘Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios edilícios, para fins do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção que venha a ser estipulada em contrato.
§ 1º São partes que servem a todo o edifício:
I - os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituam a estrutura do prédio;
II - o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclusivo do titular da laje;
III - as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício; e
IV - em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício.
§ 2º É assegurado, em qualquer caso, o direito de qualquer interessado em promover reparações urgentes na construção na forma do parágrafo único do art. 249 deste Código.’
‘Art. 1.510-D. Em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da laje, nessa ordem, que serão cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso.
§ 1º O titular da construção-base ou da laje a quem não se der conhecimento da alienação poderá, mediante depósito do respectivo preço, haver para si a parte alienada a terceiros, se o requerer no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contado da data de alienação.
§ 2º Se houver mais de uma laje, terá preferência, sucessivamente, o titular das lajes ascendentes e o titular das lajes descendentes, assegurada a prioridade para a laje mais próxima à unidade sobreposta a ser alienada.’
‘Art. 1.510-E. A ruína da construção-base implica extinção do direito real de laje, salvo:
I - se este tiver sido instituído sobre o subsolo;
II - se a construção-base não for reconstruída no prazo de cinco anos.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não afasta o direito a eventual reparação civil contra o culpado pela ruína’”.
O direito real de laje instituído pela lei federal nº. 13.465/2017 representou uma mudança acentuada daquele que vinha previsto na Medida Provisória nº. 759/2016.
Na MP nº. 759/2016 havia toda uma lógica que aproximava o direito real de laje da noção de direito de superfície: ali se falava no direito real de laje como “consistindo na possibilidade de coexistência (sic) de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção”; ao mesmo tempo em que discorria sobre o “acesso independente qualquer que seja o seu uso” (art. 1510-A, § 3º); e “proibindo-se o adquirente de instituir sobrelevações sucessivas” (art. 1510-A, § 5º), tudo isso levando a se configurar uma “superfície de uma construção”, isto é, uma modalidade de direito de superfície que é, na dicção do art. 1524 do Código Civil português, “a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações”, um direito real sobre coisa alheia, que teria sempre uma ligação peremptória com a construção “ceder a superfície de sua construção” e que não configuraria direito autônomo porque proibida de maneira expressa a instituição de sobrelevações sucessivas.
Na nova lei federal nº. 13.465/2017, que alterou o art. 1510-A do Código Civil, criando o novo direito real de laje, ocorre uma mudança de orientação no Brasil quanto à forma de se conceber a regularização fundiária urbana.
2. A mudança do modelo de regularização fundiária no Brasil
O modelo tradicional de regularização fundiária, aquele derivado da lei federal nº. 11.977/2009, importa na forma de garantir a moradia para os que dela precisam com todos os substratos necessários à plena consecução desta (materiais, urbanísticos, creditícios, de infraestrutura, etc..), pensada a solução da moradia como uma solução ampla, de plena habitabilidade em uma determinada área urbana[1].
A lei federal nº. 13.465/2017 rompe com essa lógica. Ela tem como espírito o entendimento de que esse modelo de regularização fundiária urbana totalizante, que atende todos os anseios da moradia, é inviável, que é impossível de ser implementado com todas essas condições.
Então, qual a lógica da nova lei, qual a lógica da nova regularização fundiária urbana no Brasil? É a compreensão de que o mais importante é titular as pessoas, dar a elas o direito de propriedade. Tornar essas pessoas proprietárias dos imóveis que habitam, ainda que não se consiga dar a elas as outras condições também necessárias para a moradia (os suportes materiais, urbanísticos, creditícios, de infraestrutura, etc..).
Se preconiza na nova legislação que é a sociedade civil que, a partir desses meios que foram concedidos, como o reconhecimento da propriedade das lajes. Isto é, a nova legislação passa a considerar que é melhor que se titule milhões de pessoas do que se garanta moradia integral e digna para apenas aqueles milhares de privilegiados que os recursos escassos do governo logrem atender[2].
Talvez essa seja, do ponto de vista individual, daquele que pleiteia o acesso à moradia plena, uma lógica não satisfatória, porém, em termos sociais, isso é uma concepção inequivocamente mais abrangente[3]. Uma política pragmática e realista para um país de recursos escassos.
3. A natureza jurídica do direito real de laje
Então temos que pensar o direito real de laje, tal qual ele surge da lei federal nº. 13.465/2017, dentro desse novo modelo. Que modelo é esse? É o modelo de um direito real de laje como uma verdadeira propriedade. Nós estamos falando aqui de uma propriedade sobre coisa própria. Falando de propriedade na sua acepção mais forte, na sua acepção mais ampla.
Uma propriedade pensada na elasticidade do direito de propriedade. Concebida como uma superação do princípio da acessão, uma superação do princípio do superficies solo cedit[4]. Entendido isso como historicamente a propriedade se transformou, quando a ideia da compressão e da elasticidade do domínio se altera em diversas circunstâncias históricas. Ele era um na propriedade feudal; há uma série de institutos que não existem mais como o morgadio[5]. Um instituto que não faz mais sentido em nossa sociedade, mas que foi vigente em épocas pretéritas.
A questão dominial se amplia e se reduz consoante as injunções históricas de cada período[6]. Então, temos que pensar contemporâneamente em uma propriedade afastada da ideia de projeção sobre o solo. Assim, é possível doravante ter uma propriedade mesmo que não se tenha uma fração ideal relativa ao solo onde ela está localizada.
No final do século XIX, quando se apresentou mais candente a questão da propriedade de apartamentos, também essa questão se colocou. Naquela época era uma novidade a ideia de propriedade de apartamento: ser proprietário de uma unidade imobiliária e da fração ideal em um condomínio necessário relativo ao prédio. Também nesse momento se discutiu muito a elasticidade do domínio[7].
O direito real de laje, tal como ficou configurado no art. 1510-A do Código Civil brasileiro, constitui um verdadeiro direito próprio de propriedade. É uma propriedade distinta daquela do solo (“unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”, art. 1510-A, caput). Tem os poderes inerentes ao direito próprio de propriedade (“Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria, poderão dela usar, gozar e dispor”, art. 1510-A, § 3º), o aspecto interno, a senhoria do direito de propriedade, e, obviamente, o direito de reavê-la de quem injustamente a possua.
É um direito de propriedade com uma outra elasticidade dominial[8]. Um feixe de poderes próprio e que se adequa ao escopo desse modelo de regularização fundiária urbana.
No artigo 1510-A, § 4º se observa a separação, a ideia da radicalidade do novo direito: a instituição do direito de laje não implica na atribuição de fração ideal do terreno (“A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas”, art. 1510-A, § 4º).
4. Elementos do direito real de laje
Portanto, nós não estamos tratando aqui de uma propriedade em condomínio necessário. Porém, se não é uma propriedade em condomínio, como se estabelecerão as relações jurídicas entre o proprietário da construção-base, o titular da laje e os outros titulares das lajes ascendentes ou descendentes? Aqui há uma influência grande do Código Civil português, do direito de construir sobre o edifício alheio (art. 1526[9]), sobretudo no que concerne ao art. 1510-C do Código Civil brasileiro:
‘Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios edilícios, para fins do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção que venha a ser estipulada em contrato.
§ 1º São partes que servem a todo o edifício:
I - os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituam a estrutura do prédio;
II - o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclusivo do titular da laje;
III - as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício; e
IV - em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício.
§ 2º É assegurado, em qualquer caso, o direito de qualquer interessado em promover reparações urgentes na construção na forma do parágrafo único do art. 249 deste Código.’
Isto é, naquilo que são despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, as partes amalgamadas entre todos, é preciso fazer um rateio de custos. A lei vai disciplinar aquilo que é comum (os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituam a estrutura do prédio; o telhado ou os terraços de cobertura; as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício e, em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício) e estabelece que isso será feito mediante um contrato. Ora, esse contrato terá que ser feito regulando essa forma condominial sobre tais instalações. Ao contrário do que dispunha a MP nº. 759/2016, não há mais a necessidade de entrada independente para a laje, essas áreas comuns podem nem existir. É uma lei para regular a situação fática que existe para dar propriedade para todo mundo.
Se os mecanismos de compatibilização não puderem ficar perfeitamente delimitados em tal contrato, aplica-se a regra geral, estabelece-se uma servidão de passagem para a laje ou para as lajes ascendentes ou descendentes. A lei estipula o mínimo necessário: os interessados devem regular as suas relações jurídicas em contrato, mas, não chegando esses a um acordo, aplicam-se os princípios gerais da servidão. É melhor que tal contrato esteja averbado na matrícula do imóvel, para que torne certas as relações entre os proprietários e para que esta forma de associação para fins comuns seja uma associação mais segura.
O direito real de laje no direito brasileiro, ao contrário do direito de superfície, não é temporário. Ele é um direito que tende à perpetuidade, porque ele pode inclusive, ser reconstituído, no caso da construção-base vir a ser arruinada (“A ruína da construção-base implica extinção do direito real de laje, salvo: I - se este tiver sido instituído sobre o subsolo; II - se a construção-base não for reconstruída no prazo de cinco anos”, art. 1510-E). É possível até que o proprietário da laje reconstrua os pilares da construção-base e aí mantenha a sua laje sobreposta.
A lei define o direito de preferência (“Em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da laje, nessa ordem, que serão cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso”, art. 1510-D) o que também é uma característica do direito próprio de propriedade. Se não se tratasse de propriedade autônoma da laje, não haveria necessidade de direito de preferência. Há preferência porque a lei preconiza e incentiva a consolidação de propriedades diversas, nas mãos de um único proprietário.
Também no que se refere à matrícula do imóvel, se verificam características de que estamos, inequivocamente, diante de um direito próprio de propriedade. O que identifica o direito de propriedade é a existência da matrícula autônoma do imóvel. A partir da configuração base dessa matrícula é possível alienar sucessivamente esse direito e ter o direito de instituir sobrelevações sucessivas, na medida do que for permitido pelas posturas municipais e pelo Código de Obras do município.
Uma questão importante que não podemos deixar de levar em conta é que este é um direito que se forma por atividade negocial, isto é, eu vou constituir o direito de laje, eu tenho uma construção-base, que existe faticamente, que está averbada no registro de imóveis e, a partir daí, eu vou constituir o direito de laje, respeitando todos os regulamentos urbanísticos. Em qualquer circunstância o proprietário da construção-base vai poder juridicamente constituir a laje, ainda que, não seja possível faticamente fazer a nova construção em cima da laje, se os regulamentos urbanísticos assim não o permitirem.
O que é uma característica de um direito real. Nenhuma legislação municipal pode atingir o meu direito de constituir juridicamente uma laje.
5. A primeira apreciação judicial do direito real de laje
Cabe esclarecer que há uma primeira sentença no direito brasileiro reconhecendo o direito real de laje. Foi a sentença dada pelo Juízo de Direito da 26ª Vara Cível da Comarca de Recife – Seção B, nas ações de usucapião nº 0027691-84.2013.8.17.0001 e nº 0071376-44.2013.8.17.0001.
Eram dois autores que entraram com ações de usucapião de imóveis urbanos. Pai e filha. Os autores afirmavam ser possuidores do imóvel situado na Rua Bomba do Hemetério, 743. Água Fria, Recife-PE, medindo 461,47 m2.
Haviam adquirido o bem através de escritura pública de cessão de direitos hereditários, porém não foi possível fazer a transcrição no cartório de imóveis devido ao bem não possuir registro. Aduziram que jamais sofreram qualquer turbação ou contestação acerca da sua posse sobre o imóvel, exercendo posse mansa e pacífica por mais de 10 anos. Requereram a declaração de usucapião do imóvel.
O genitor havia cedido parte do seu terreno para a filha por meio de Escritura Pública de Cessão e Transferência de Direitos de Indenização de Benfeitorias e Posse, configurando a posse dela sobre esse terreno cedido medindo 38,18 m2. Então ele cedeu seus direitos de posse dessa parte do terreno para a filha, indenizou-se das benfeitorias realizadas e reconheceu a posse desta.
Então se preenchiam as condições da usucapião ordinária, prevista no art. 1.242 do Código Civil, no qual os autores demonstraram a presença de justo título e boa-fé, além da posse por lapso temporal superior a 10 anos, com animus - vontade de ser dono.
Qual a decisão do magistrado nessas circunstâncias? Ele decide que procedia integralmente a usucapião da propriedade do pai, que usucapiu a propriedade integralmente, mas não procedia a usucapião da propriedade da filha sobre o terreno menor, porque essa era uma posse derivada. Nos seguintes termos:
“Com relação à segunda Ação, observo que a autora pugnou também pela declaração da usucapião da parte que lhe foi cedida pelo seu genitor, casa 743-A. tendo a ação sido instruída como tal, inclusive com a citação das fazendas, confinantes, eventuais interessados, além da audiência de instrução para provar a regularidade da posse e o decurso do tempo.
No entanto, observo que não faz jus a autora à declaração da prescrição aquisitiva.
É sabido que o instituto da usucapião pressupõe aquisição originária da propriedade, o que não ocorreu no presente caso.
Dos fatos narrados e documentados, verifico que a autora adquiriu a posse do imóvel do seu genitor, por meio de cessão, que à época da negociação já era proprietário da casa 743, uma vez que a sentença de usucapião é meramente declaratória. Nesse sentido, a referida posse é derivada, sendo evidente a relação negocial existente entre o cedente e a cessionária, de forma que a usucapião é via inadequada para regularizar a propriedade”.
Entretanto reconhece o juiz que havia um instrumento negocial, este produziu os seus efeitos próprios e, levando-se em conta que a legislação se alterou e agora passou a ser possível se reconhecer juridicamente o direito de laje, e, assim já havia sido feita a transferência dessa laje e, inclusive, também se indenizaram as benfeitorias.
Dessa forma, o magistrado julgou improcedente o pedido de usucapião da segunda ação, ao mesmo tempo que reconheceu o direito de laje da casa nº. 743-A à autora, nos termos do art. 1510-A do Código Civil, devendo o imóvel referido ser registrado com matrícula própria, pagos os impostos e emolumentos e respeitadas as formalidades legais, in verbis:
Por outro lado, observo que a casa 743-A foi construída na superfície superior da casa 743, de modo que a pretensão de aquisição da propriedade mais se coaduna ao direito de laje, previsto no art. 1.510-A do Código Civil (..).
Desta feita, tendo havido a cessão do Sr. José Carlos da Silva da casa 743-A em favor da sua filha, Ladyane, autora da segunda ação, devidamente registrada em cartório, há que ser reconhecido o seu direito de laje, devendo o bem possuir registro próprio e dele podendo a autora usar, gozar e dispor.
(..)
Por outro lado, julgo improcedente o pedido de usucapião de formulado na ação de usucapião nº 0071376-44.2013.8.17.0001, ao tempo em que reconheço o direito de laje da casa 743-A à autora, nos termos do art. 1.510-A do Código Civil, devendo o imóvel referido ser registrado com matrícula própria, pagos os impostos e emolumentos e respeitadas as formalidades legais.
Na realidade estamos falando disso que está expresso nessa sentença, um direito de propriedade elástico, constituído de maneira negocial, que pode ser reconhecido pela autoridade judicial e pode ser, evidentemente, levado a registro em um cartório de imóveis, fora de um procedimento judicial.
6. Considerações finais
Concluindo, há que se entender que estamos diante de uma nova forma de propriedade. Uma revolução em termos proprietários. Aquilo que hoje é apenas uma propriedade, amanhã pode ser duas ou três propriedades distintas, a depender de sua constituição negocial.
Esse caráter benfazejo da generalização da propriedade já era ressaltado por Aristóteles. Na Política II.5, Aristóteles justifica a propriedade já não no contexto da casa, mas no âmbito da cidade e intenta responder à seguinte pergunta: deve a propriedade ser tida em comum pelos cidadãos ou em privado?
Aristóteles justifica a sua preferência pela opção que consiste em combinar a propriedade privada e o uso comum com base nas seguintes razões: a) a propriedade comum dá origem a discussões e reclamações sobre o modo de distribuir as coisas; b) a propriedade comum favorece a negligência de cada um no tratamento das coisas de todos e, pelo contrário, a propriedade privada estimula que cada um se dedique ao que lhe é próprio; c) a propriedade privada estimula os prazeres naturais, em particular o amor próprio; d) a propriedade privada favorece a amizade, pelo prazer que constitui ajudar e obsequiar os amigos; e) a propriedade privada torna possível o exercício das virtudes, como a generosidade e a moderação.
Deste modo Aristóteles professa o entendimento que a propriedade deve ser, de um modo geral, privada, mas comum quanto ao seu uso. O uso comum não altera a natureza essencialmente privada da propriedade, mas antes a pressupõe.
Assim, Aristóteles não é um defensor do caráter sagrado da propriedade privada. Impõem-lhe limites. Embora prefira, pelas razões apontadas atrás, a propriedade privada, combina-a com o uso comum e com a partilha não obrigatória do uso dos bens, assente no exercício da virtude da generosidade. Aliás, o Estado ideal de Aristóteles assegura alguns serviços públicos a todos os cidadãos, ricos ou pobres: educação, refeições, justiça e segurança. Cabe, também, aos cidadãos mais ricos a distribuição de uma parte das suas receitas pelos cidadãos mais pobres, não como uma exigência do Estado, mas como uma consequência dos bons costumes[10].
Tomás de Aquino, por seu turno, dizia que a propriedade era algo absolutamente necessário para que um homem pudesse realizar todas as suas potencialidades. Sem uma propriedade um homem não é capaz de fazer parte efetivamente de uma sociedade[11]. Então é uma forma de se pensar a ideia de que essa propriedade é necessária para que as pessoas se desenvolvam.
O direito de laje, tal como configurado no Código Civil brasileiro, pode vir a realizar essas potencialidades pensadas pelos filósofos, generalizando-se a propriedade de modo benfazejo, dentro da nova configuração instituída pela lei federal nº. 13.465/2017.
[1] Lei nº. 11977/2009. art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
[2] Aproximando-se assim essa legislação das ideias do economista peruano Hernando de Soto, para o qual é a propriedade formal que proporciona o processo, as formas e as regras que fixam os ativos das pessoas em uma condição que permite convertê-los em capital ativo. Esse processo
começa com o registro de propriedade, descrevendo e organizando os aspectos econômico e socialmente mais úteis sobre esses ativos. Depois, são convertidos em títulos, seguindo um conjunto de regras legais e precisas, compartilhando com os demais essas informações padronizadas e aceitas socialmente. Em seguida, o autor destaca seis efeitos desse simples procedimento, que permite ativos transformarem-se em capital. Os chamados efeitos-propriedade seriam: fixação do potencial econômico dos ativos; a integração das informações dispersas em um único sistema; a responsabilização das pessoas; a transformação dos ativos em bens fungíveis a integração das pessoas e a proteção das transações. DE SOTO, Hernando. O mistério do capital: por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[3] Para a concepção histórica cristã da função social da propriedade a função social abrange não somente o exercício do direito de propriedade sobre bens materiais mas abarca também, de um modo muito prevalente, a produção de novas riquezas, isto é, o fomento ao desenvolvimento econômico em benefício da comunidade, para comunicação do uso ou desfrute dos bens exteriores não como próprios, mas sim como comuns, em algumas formas mais essenciais e permanentes:
o dever de produzir; o dever de contribuir para o gasto público em proporção ao patrimônio e às rendas; dever de realizar aquelas aportações extraordinárias em momentos excepcionais ou, pelo menos, graves na vida da nação; o dever de cooperar na medida em que está ao seu alcance, no processo de redistribuição da propriedade e de acesso a ela ao maior número possível de homens;
a contribuição, a mais generosa possível, à implantação e sustentabilidade de um sistema eficaz de seguridade social. RUIZ-GIMENEZ, Joaquín. La propriedad: sus problemas y su función social. Salamanca: Ediciones Anaya, 1962, p. 325/327.
[4] GAIO, I., II, § 73: “Praeterea id quod in solo nostro ab aliquo aedificatum est, quamvis ille nomine aedificaverit, iure naturali nostrum fit, quia superficies solo cedit”. A regra que vigorava em Roma, no direito clássico, de modo absoluto, a regra de que superficies solo cedit, por força da qual tudo quanto fosse acrescido ao solo (plantações e construções) passava a integrá-lo e ao seu dono pertencia, não podendo ser objeto de transferência senão juntamente com o solo.
[5] O morgadio é uma forma de propriedade vinculada na qual o seu titular dispõe da renda, mas não dos bens que a produzem. Ele se beneficia apenas do usufruto de um determinado patrimônio, sem poder dispor do valor constituído do mesmo. O mais importante, no entanto, era que ao titular do morgado cabia também a perpetuação do nome da família, a honra e a valentia do grupo familiar. Neste sentido, o morgado era um ato de regulamentação de um patrimônio, no qual também se transmitiam regras de conduta social em sua relação com a memória de seus antepassados. Por conseguinte, uma das características marcantes deste tipo de propriedade vinculada é a noção de que o herdeiro não poderia desmerecer a herança recebida, mantendo, portanto, uma estreita relação com a hipotética valentia de sua família e o seu prestigio. No entanto, as exigências legais para a institucionalização de um morgado nem sempre foram claras. No século XIX, os jurisconsultos inclusive discordaram sobre a origem do morgadio na Península Ibérica. Nas Ordenações Filipinas são expressas as normas de sucessão, aquando da morte do filho mais velho do instituidor do morgado, dando preferência ao neto, e não ao irmão, ou seja, ao filho segundo daquele instituidor. Também registra a preferência da sucessão pelo varão, mesmo no caso de a filha ser mais velha, e regula a diferenciação entre as questões sucessórias dos morgados e bens vinculados patrimoniais. Em Portugal, até à lei pombalina de 3 de agosto de 1770, que regulou a matéria, a faculdade de instituir morgados era geralmente permitida a toda a pessoa, que tivesse bens de que dispor, e que não tivesse impedimento legal, ou da natureza, que o impossibilitasse. Além disso, até 1770 não se exigiu prova de nobreza para a instituição do morgado. MOTTA, Márcia Menendez. Minha casa, minha honra: morgadios e conflito no Império Português. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes et alii. Raízes do privilégio: mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp 639-666.
[6] “Em substância, portanto, a propriedade não é tão somente um poder da vontade, um direito subjetivo que compete sem mais nada a um sujeito, mas é, ainda mais, uma situação jurídica subjetiva complexa” (tradução livre). “In sostanza, quindi, la proprietá non è piú soltanto un potere della volontà, un diritto soggettivo che spetta tout-court ad un soggeto, ma è ancor piú di una situazione giuridica soggetiva complessa”. PERLINGIERI, Pietro. Introduzione alla problematica della proprietà. Camerino: Jovene, 1971, p. 101.
[7]A transmissão ou constituição da propriedade em planos horizontais não dispensa, de forma alguma, a transcrição, como modo translativo ou constitutivo do domínio. Na prática, o ponto de
vista vencedor é o de tudo resumir-se à averbação dos apartamentos, uma vez terminada a construção. Na verdade, a solução que alvitramos é a legal, pelo menos é a que se impõe, em face das regras do direito vigente. Não desconhecemos, porém, a onerosidade que envolve esta orientação que defendemos, e que o fazemos tão-só em homenagem à lei e como defesa a quaisquer nulidades decorrentes da falta de registo. Precisaria, como dissemos, de uma reforma da lei no sentido da propriedade em planos horizontais ter a sua formação regida por princípios análogos aos da inscrição do plano de loteamento. O proprietário ou co-proprietários, que pretendessem transformar o seu domínio em planos horizontais, inscreveria os seus documentos, e então as averbações surgiriam com os efeitos próprios de assinalar a transmissão de cada apartamento aos adquirentes ou aos promitentes compradores. Do mesmo modo, seria prevista a questão da hipoteca de coisa futura. Em lugar da hipoteca recair sôbre o imóvel tal qual existe no momento da sua constituição, ela já se projetaria sôbre o apartamento A ou B que viesse a ser construído, e assim, com a averbação, se reuniria, além do domínio, o ônus real hipotecário. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos registros públicos. v. IV. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 282.
[8] No direito romano justianeu Siro Solazzi preconiza também para a superficie essa elasticidade do domínio por constituição negocial. Em seu trabalho “La superficies nel diritto giustinianeo” desenvolve tese original sobre o assunto. Argumenta que o direito justinianeu conheceu a propriedade horizontal e o direito de superfície, mas não a propriedade superficiária. O cessionário de um edifício, ou dos pavimentos dele, seria proprietário ou simplesmente superficiário, conforme o alienante tivesse querido transferir-lhe a propriedade ou um direito real de superfície sobre coisa própria. Tratar-se-ia, na primeira hipótese, de propriedade pura e simples, não havendo, pois, nenhuma razão para qualificá-la de superficiária.
A superfície seria portanto um direito real que qualquer proprietário poderia constituir sobre o que é seu, e seria, muito provavelmente, segundo Solazzi, incluída entre as servidões. Tal servitus não se identificaria com uma servidão predial, já que, em tal caso, o edifício deveria pertencer ao superficiário (titular apenas, segundo o autor, de um direito real); haveria, mais provavelmente, um direito real sobre o edifício, hipótese esta, por outro lado, coerente com a tendência dos juristas pós-clássicos e justinianos de chamar servitus a qualquer tipo de direito real sobre coisa alheia.
Assim, para Solazzi, a construção sobre solo alheio pode ser no direito justinianeu propriedade do construtor, mas essa propriedade não é superficiária. Se investe o construtor somente de um direito real de superfície, ele não é proprietário. MARCHI, Eduardo C. Silveira. A propriedade horizontal no direito romano. São Paulo: Edusp, 1995, p. 27.
[9] Artigo 1526º
(Direito de construir sobre edifício alheio)
O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito às disposições deste título e às limitações
impostas à constituição da propriedade horizontal; levantado o edifício, são aplicáveis as regras da propriedade horizontal, passando o construtor a ser condómino das partes referidas no artigo 1421º.
[10]BRITO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2007, p. 73.
[11] Ao discutir a propriedade, Tomás de Aquino começa por indagar, na questão 66 da Secunda secundae da Suma Teológica, “se é natural ao homem possuir coisas externas” . Frisa ele a natureza dupla das coisas externas. Em primeiro lugar diz que o domínio principal sobre todas as coisas pertence a Deus que, em sua providência, destinou ao homem o natural domínio dos bens externos dado que este, por sua razão, é capaz de utilizá-los para sua utilidade, uma vez que os seres menos perfeitos existem para os mais perfeitos. Isso significa que o homem, superior na ordem ontológica, tem uma natural soberania das coisas externas no que diz respeito a fazer a utilização das mesmas, que se destinam ao seu sustento .
No que se refere à relação do homem com os bens exteriores, a este compete uma dupla atribuição. A primeira, o poder de gerir e dispor dos bens. Tem o homem o poder de adquirir bens e distribuí-los e, assim, é lícito este possuir alguma coisa como própria. Constitui-se em princípio fundamental à vida humana por três razões. Primeiro é que cada um é mais solícito em administrar o que lhe pertence, do que o comum a todos. Segundo, as coisas humanas são mais bem cuidadas quando cada um emprega o seu cuidado em administrar uma coisa determinada. Terceiro, porque cada um cuidando do que é seu de maneira mais satisfatória, reina a paz entre os homens, uma vez que as querelas surgem com mais frequência onde não há divisão das coisas possuídas .
Portanto, Aquino, seguindo Aristóteles, assegura, consoante a prudência, a legalidade e a necessidade da propriedade privada no âmbito da atual condição humana em termos de maior benefício para o bem comum e, ainda, na orientação dos bens para a ordem, eficiência, segurança e paz, não desconectada dos valores instrumentais da moderna liberdade. Assim, o estado de direito obriga à conclusão que o regime da propriedade privada provê, via de regra, o melhor meio para o florescimento da sociedade humana. AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. IIae. v. 6. São Paulo: Edições Loyola, 2005, q. 66, 1, p. 158.
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