O Direito Privado que faz repensar as certezas dos fundamentos de ser família

20/06/2016

Por Guilherme Wünsch e Wilson Engelmann – 20/06/2016

É com Fachin que sempre se relembra a ideia de que o movimento de publicização do Direito Privado emanava desde o Pós-II Guerra Mundial, mas a Constituição-cidadã “salientava-o de maneira dramática, afetando, frontalmente, os pilares das Codificações Oitocentistas Privadas, fazendo com que o Código Civil perdesse a centralidade de outrora para o texto constitucional”.[1] Trata-se da aceitação da ideia de que o Direito Civil não pode ser analisado apenas através dele próprio, senão com o influxo do Direito Constitucional, já que o Código não se torna mais a espinha dorsal do Direito Privado, conquanto o advento da Constituição e o surgimento de microssistemas tenham modificado tal concepção.

Segundo o autor, dos institutos jurídicos de Direito Privado, sobretudo civis, alguns deles, notadamente, foram alterados de maneira intensa. O Direito de Família e o Direito dos Contratos foram profundamente rejuvenescidos pela Constituição de 1988.[2] Para o autor, a Constituição passou a ter uma função promocional nos contratos, com o Poder Público interferindo nas relações contratuais, definindo limites e constitucionalizando este ramo, que, até então, não sofria ingerência do Direito Público. Da mesma forma, o Direito de Família constitucionalizou-se, impondo uma radical reformulação dos critérios interpretativos adotados em matéria de família. A questão da propriedade, igualmente passa por transformações, haja vista que a função social da propriedade torna-se figura essencial para a compreensão deste instituto.

Logo, o Direito Contemporâneo necessita superar a crise que pode ser atribuída à fragilidade dos pilares da modernidade, porque pautava o sujeito enquanto individualidade e autonomia, para possibilitar o respeito à diferença e aos direitos fundamentais. Nas palavras de do autor em análise, é “tempo, pois, de operar criticamente e “reinventar” o Direito Civil.”[3] E é assim que se inicia uma concepção de sociedade em função do homem e não o contrário. O homem se realiza nas comunidades em que atua.

A ruptura ocasionada pela transformação paradigmática no Direito Privado evidencia que o problema atual do Código Civil é a sua perda de capacidade de se apresentar como norma superior, papel que passa a ser destinado às Constituições, Tratados, princípios e valores. Como aduz Lorenzetti, o Direito pode ser um instrumento de justiça, de equilíbrio contratual e de inclusão na sociedade atual, instrumento de proteção de determinados grupos na sociedade, de garantia da dignidade da pessoa humana, de combate ao abuso de poder econômico e combate a toda atuação que seja contrária à boa-fé no tráfego social e no mercado.[4]

A questão dicotômica fundava-se na idéia de que, em se tratando de relações entre particulares, estas estariam albergadas somente pelo direito privado, ao passo de que as relações que envolvessem o Estado seriam tuteladas tão somente pelo direito público. Mas, para além desta mera diferenciação, aduz-se que a natureza da relação jurídica também justificava a diferença entre o privado e o público. Assim, Fachin, alude que:

Há outro referencial também discutível ao lado da qualidade do sujeito. É a natureza da relação jurídica, segundo a qual, se foi o vínculo marcado pela subordinação, isto é, por uma supremacia juridicamente legítima de uma parte sobre a outra, como no caso do fisco em relação ao contribuinte numa obrigação tributária, estaria inserido no direito público. No Direito Privado, as relações são, em regra, marcadas pelo sentido de coordenação, ou seja, são pólos de uma relação jurídica que não estabelecem, desde o início, na sua essência, compromisso de prioridade ou supremacia de um sobre o outro.[5]

O Direito Privado, portanto, projeta-se para o âmbito das relações firmadas entre particulares sobre um ordenamento que organiza e estrutura esses pilares. Vale tecer alguns comentários sobre a função do contrato dentro da esfera clássica do Direito Privado. O instituto do contrato pressupõe vontade, ou melhor, a existência de um alguém que manifesta a sua vontade. Aqui, se está diante da condição de sujeito da pessoa que se coloca diante de outro sujeito para originar uma relação jurídica. Neste sentido, origina-se a noção de objeto que se coloca como um dos pilares que compõem o Direito Privado.

A constitucionalização do Direito, especificamente na intensidade em que ocorreu na segunda metade do século passado, enfatiza essa lacuna de travessias que clama por respostas urgentes, quer através do sistema legal ou por meio de políticas públicas. No sistema legal, uma destas formas foi pavimentada pela presença normativa dos princípios constitucionais, especialmente o da dignidade humana. Suas funções foram exponencialmente reforçadas pela crescente complexidade das relações humanas. A plataforma de governo é chamada, através do sistema legal, para, de forma rápida e eficiente, oferecer regras e soluções. Desejos e demandas que surgiram a partir de liberdade e autonomia buscam uma meta contraditória: a segurança e realização. Os paradoxos assumem os sistemas e criam um espaço de reflexão sobre os temperamentos que a esfera das relações sociais e privadas sugere.[6]

Os três pilares fundamentais do Direito acabam por assumirem um novo contorno, passam a assumir novos papeis. Aquilo que antes denominava-se de contrato, família e propriedade, passa a ser visto como trânsito jurídico, projeto parental e titularidades. A família gradativamente surge como um fenômeno social, nesta tendência de remodelamento das relações sociais. Neste sentido, a complexidade se apresenta como um conjunto emaranhado, da ambiguidade e da incerteza, dentro de um sistema organizado. É uma mistura de ordem e desordem, por onde se abre o sistema, emergindo dele o sujeito complexo, caracterizado por essas ambiguidades e incertezas. Destarte, esta matriz de pensamento contrapõe-se ao modelo cartesiano, pois, supera o método reducionista, de conceitos herméticos.

Neste sentido, há uma nova seara comportamental dos três pilares do direito civil, que passam a considerar o sujeito em família, que se insere em um sistema jurídico, que busca definir um sujeito para um conjunto de objetos, pelo que o Direito Privado assume um papel de classificação dos fatos que a ele interessam, albergando-os, no sistema como fatos jurídicos.

Em vista das mutações nas relações sociais, para além da pura exegese, em que outrora se assentava a dicotomia entre o público e o privado, ou seja, entre a sociedade e o direito, os quais legitimavam a discriminação nas próprias relações familiares, posto que o diferente não era considerado como um sujeito de direito, diz-se que o Direito é um fenômeno social, que deve conhecer a sociedade em que se integra. Deste modo, a família, no contexto contemporâneo, define-se a partir da passagem do sistema codificado para o sistema constitucional, já que a Constituição Federal de 1988 assume o papel de ser norma fundamental, englobando a família, antes à margem do Código Civil de 1916, e, portanto, despatrimonializa o estatuto jurídico da família, para considerar agora o estatuto jurídico pessoal.


Notas e Referências:

[1] FACHIN, Luiz Edson. O direito civil contemporâneo, a norma constitucional e a defesa do pacto emancipador. IN: CONRADO, Marcelo. PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. (coord.). Direito privado e constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p.20.

[2] FACHIN, Luiz Edson. O direito civil contemporâneo, a norma constitucional e a defesa do pacto emancipador. IN: CONRADO, Marcelo. PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. (coord.). Direito privado e constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p.23.

[3] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 86

[4] LORENZETTI, Ricardo. A descodificação e a possibilidade de ressistematização do Direito Civil. IN: FIUZA, César. SÁ, Maria de Fátima Freire de. NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.230.

[5] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.142.

[6] Constitutionalization of the Law, specifically in the intensity in which it occurred in the second half of the past century, emphasizes this gap of crossings which clamors for urgent responses, whether through the legal system or through public policies. In the legal system, one of these ways was paved by the normative presence of constitutional principles, especially that of human dignity. Its functions were exponentially strengthened by the growing complexity of human relations. The government platform of responses was called upon, through the legal system, to quickly and efficiently offer rules and solutions. Desires and demands that arose from freedom and autonomy sought a contradictory goal: security and achievement. The paradoxes took over the systems and created a space for reflection on the temperaments that this sphere of social and private relations suggests. (Tradução para a lingual portuguesa livre do autor). FACHIN, Luiz Edson. Mind the gap between the new portfolio and the so-called old systems. IN: civilistica.com. a. 2. n. 1. 2013. p.11

FACHIN, Luiz Edson. Mind the gap between the new portfolio and the so-called old systems. IN: civilistica.com. a. 2. n. 1. 2013.

FACHIN, Luiz Edson. O direito civil contemporâneo, a norma constitucional e a defesa do pacto emancipador. IN: CONRADO, Marcelo. PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. (coord.). Direito privado e constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

LORENZETTI, Ricardo. A descodificação e a possibilidade de ressistematização do Direito Civil. IN: FIUZA, César. SÁ, Maria de Fátima Freire de. NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.


Guilherme WunschGuilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) foi assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS, FADERGS, FACOS, FACENSA, IDC e VERBO JURÍDICO.


Wilson Engelmann

Wilson Engelmann é Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2005). Atualmente é professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNISINOS. Líder do Grupo de Pesquisa JUSNANO (CNPq/Unisinos). Avaliador ad hoc do INEP/DAES. Orientador de bolsista de iniciação científica PIBITI/CNPq, PIBIC/CNPq e FAPERGS. Orientador de Mestrado e Doutorado.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Family // Foto de: Andrey // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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