O direito penal subterrâneo como mecanismo (i)legal de produção ou “fabricação” (?) de provas no combate à corrupção

09/10/2019

Muito se tem falado, recentemente, sobretudo após a deflagração da interminável e imbatível “Operação Lavajato”, em “combate à corrupção”. Por meio dessa bandeira, prometeu-se passar o Brasil a limpo, de modo a extirpar da política e da “res” “publica” aqueles agentes públicos que não observavam as leis.

Ocorre, no entanto, que o referido “combate à corrupção” se deu de forma seletiva, atordoada e, pior, desastrosa. A atitude inefável da prisão preventiva para delatar[1], hoje já tida como “normal” por parte da sociedade e de alguns operadores do direito, era apenas um mau presságio de que tempos piores viriam.

Infelizmente, a razão estava, de fato, com o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, quando, espantado, externou sua perplexidade com os “tempos estranhos”[2] pelos quais passava – e está a passar – o Brasil, notadamente o direito penal e processual penal.

Como se tem notado, aqueles que foram afastados da coisa pública, pelo fato de não observarem as leis em vigência, estão sendo punidos por agentes que, em nome do combate à corrupção, acabaram por – também – por não observar a lei. Vale dizer, buscou-se punir corruptos, a todo e qualquer custo, inclusive corrompendo as regras do jogo.

Nesse cenário, mostra-se pertinente a indagação acerca da legitimidade dos atos de quem, para castigar, violou a lei, corrompendo-a, em nítida implementação do intitulado “Direito Penal Subterrâneo”.

Presentemente, verificam-se conversas nas quais um então juiz federal, em tese imparcial, se revelou um verdadeiro coordenador daquela operação que entrou para a história do “combate à corrupção”. Até quando, todavia, será mantida a reputação dessa onda punitivista, travestida de evolução moral e cívica, cujos rastros de ilegalidade começam a surgir com forças e evidências indesmentíveis?

Juiz participando, às ocultas e contra a lei, de negociações de acordo de colaboração premiada[3]; juiz coordenando o Ministério Público; substituindo promotores, quando esses não se demonstravam hábeis em certas ocasiões, tais como em audiências de “grande porte”[4]; esquemas de interceptação telefônica ilegais, feitas com nítido viés político, inclusive contra advogados que, na condição de defensores, têm assegurada, também por lei, a inviolabilidade de comunicação.[5]

Não são só estes os fatos, trágicos, que demonstram a completa extrapolação dos limites legais no enfrentamento à corrupção [de alguns]. Tem-se visto, nos mais diversos Estados da Nação, um movimento atrapalhado, que, dia após dia, indica que os fins nunca justificarão os meios, notadamente quando a parte que emprega meios ilegais é o Estado, aquele mesmo que editou as leis e as punições para os infratores. [6]-[7]-[8]

Todas essas transgressões à Lei, praticadas por integrantes do Estado, que saem em busca de produzir provas, mesmo quando ilegais, bem denotam aquilo que Christiano Gonzaga, Promotor de Justiça e estudioso da criminologia, em seu Manual de Criminologia, denomina de Direito Penal Subterrâneo.

No  Direito Penal Subterrâneo, em que se destacam os integrantes dos controles sociais formais (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário), existe verdadeiramente a prática de atos criminosos, com intensa violação de direitos e garantias individuais, cujo objetivo é a produção de provas a fim de alcançar-se determinadas pessoas (potencialmente criminosas), sobretudo quando são conhecidas.[9]

Na dicção Christiano Gonzaga, no direito penal subterrâneo, os órgãos formais de controle, por meio de seus representantes, violam os direitos e garantias constitucionais para chegar a provas incriminadoras, cuja obtenção não se dá de modo lícito:

Seria a máxima de que os fins justificam os meios, mas o problema é quando quem pensa assim é o integrante do Estado, o que coloca por terra toda a sistemática de um Estado Democrático de Direito.[10]

Diz-se, portanto, subterrâneo, porque os movimentos exercidos pelas agências executivas de controle desenvolvem um sistema paralelo, alheio ao ordenamento jurídico posto. Marcelo Soares Mota, citando Eugenio Raúl Zaffaroni, enfatiza essa definição para tratar dos fatos extralegais, praticados no falso envolto da legalidade e sob o manto do combate à criminalidade e proteção do interesse público.[11]

Impõe-se consignar, todavia, que, no Estado Democrático de Direito, no qual a atuação dos agentes estatais há de pautar-se na Lei, criada por esse mesmo Estado, não se pode tolerar que, em nome do combate à corrupção ou à criminalidade, notadamente aos denominados crimes do colarinho branco, sejam violados direitos e garantias fundamentais daqueles que são investigados ou acusados

A propósito, criticando os meios ilegais de obtenção (ou, em determinados casos, fabricação) de provas, relevantes e sensatas são as ponderações de Christiano Gonzaga a essa nefasta prática, intitulada de Direito Penal Subterrâneo:

Buscar provas violando a Constituição Federal, não importando o crime que se investiga, terá a mesma visão subterrânea [...] alegar que se está combatendo a corrupção ou outra sorte de crimes praticados pela elite em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de criminosos de colarinho-branco, é uma falácia que denigre todo o sistema penal, apesar de ser mais aceitável por parte da população leiga e desconhecedora dos princípios e das garantias fundamentais [...] é obvio que se almeja a extirpação desse câncer social que é o criminoso do colarinho-branco, mas para toda e qualquer persecução penal deve existir a atenção aos princípios básicos que fundamentam o ordenamento jurídico. [12]

Assim é que, na esteira de André Nicolitt, citando Costa Andrade, se o fim da pena é a confirmação das normas do mínimo ético, cristalizado nas leis penais, esta confirmação restará frustrada se o próprio Estado violar o mínimo ético para lograr a aplicação de uma pena.[13]

Como visto, não se pode combater a corrupção a qualquer preço, sob pena de, na ânsia pela “justiça”, cometer-se injustiças. Se uma prova é ilegalmente produzida ou angariada, ilegal também será o processo e eventual condenação contra o sujeito processado, na medida em que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LX, veda explicitamente a utilização de provas ilícitas, assim como também o faz o Código de Processo Penal, no artigo 157.

Nesse contexto, esclarece-se que não trata de ser “contra” ou “a favor” do combate à corrupção, como se o devido processo legal se resumisse a tão reducionista e simplória expressão. Cuida-se, em última análise, de ser contra uma postura arbitrária e violadora de direitos e garantias constitucionalmente assegurados ao cidadão que se vê acusado de qualquer sorte de crime.

É-se contra o “corrupto combate à corrupção”, mormente porque, ao violar-se leis para combater crimes, num típico caso Direito Penal Subterrâneo – praticado à margem da lei, fora do alcance da legalidade –, cometem-se crimes ao punir. Destarte, se assim procedem as autoridades estatais, tem-se uma justiça corrupta, na qual os justiceiros são, na verdade, tão – ou mais – criminosos quanto aqueles que investigaram, acusaram julgaram e condenaram.

 

Notas e Referências

[1] NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. Prisão para delatar transforma a preventiva em método de tortura. Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-dez-20/opiniao-ilegalidade-prisao-preventiva-delatar>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[2] Marco Aurélio critica 'manipulação da pauta' no STF: 'tempos estranhos'. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/marco-aurelio-critica-manipulacao-da-pauta-no-stf-tempos-estranhos-22827300>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[3] “Mensagens privadas trocadas por procuradores da Operação Lava Jato em 2015 mostram que o então juiz federal Sergio Moro interferiu nas negociações das delações de dois executivos da construtora Camargo Corrêa, cruzando limites impostos pela legislação para manter juízes afastados de conversas com colaboradores. As mensagens, obtidas pelo The Intercept Brasil e examinadas pela Folha e pelo site, revelam que Moro avisou aos procuradores que só homologaria as delações se a pena proposta aos executivos incluísse pelo menos um ano de prisão em regime fechado”. Mensagens apontam que Moro interferiu em negociação de delações. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/mensagens-apontam-que-moro-interferiu-em-negociacao-de-delacoes.shtml>.

[4] Nesse sentido: “Em diálogo divulgado no último dia 9, o site havia mostrado que Moro enviou mensagem a Deltan Dallagnol, em 2017, orientando que aconselhasse a procuradora Laura Tessler a melhorar seu desempenho em interrogatórios da operação. O novo trecho revelado nesta quinta indica que Deltan discutiu o assunto de maneira particular com Carlos Fernando dos Santos Lima, à época um dos integrantes mais experientes da força-tarefa, e hoje aposentado. O coordenador do grupo chegou a encaminhar ao colega a mensagem em que Moro critica a procuradora. "Vamos ver como está a escala e talvez sugerir que vão 2, e fazer uma reunião sobre estratégia de inquirição, sem mencionar ela", disse Deltan, de acordo com a rádio BandNews. Santos Lima responde: "Por isso tinha sugerido que Júlio ou Robinho fossem também. No [depoimento] do Lula não podemos deixar acontecer". A discussão ocorreu dois meses antes do primeiro depoimento de Lula como réu em Curitiba. Na audiência, ocorrida em maio, compareceram três procuradores: Santos Lima, Júlio Noronha e Roberson Pozzobon. Laura Tessler, criticada por Moro, não participou”. Lava Jato discutiu troca de procuradora após crítica de Moro, indicam diálogos. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/lava-jato-discutiu-troca-de-procuradora-apos-critica-de-moro-indicam-dialogos.shtml#_=_>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[5] TRF-4 ordena destruição de grampos em ramal dos advogados de Lula. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-14/trf-ordena-destruicao-grampos-ramal-advogados-lula>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[6] Cabo diz que Gaeco realizou grampos ilegais em 15 operações. Disponível em: <https://www.midianews.com.br/politica/cabo-diz-que-gaeco-realizou-grampos-ilegais-em-15-operacoes/355323>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[7] Coronel PM detalha esquema, cita Perri e Fávaro e pede desculpas. Disponível em: <https://www.midianews.com.br/judiciario/coronel-pm-detalha-esquema-cita-perri-e-favaro-e-pede-desculpas/355266>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[8] CHEFE DO MP MANDA APURAR DESVIO DE FINALIDADE DE VERBA SECRETA DO GAECO. Disponível em: <https://www.reportermt.com.br/poderes/chefe-do-mp-manda-apurar-desvio-de-finalidade-de-verba-secreta-do-gaeco/95580>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[9] GONZAGA, Christiano. Manual de Criminologia. São Paulo: Saraiva Jur., 2018. p.135-136.

[10] GONZAGA, Christiano. Manual de Criminologia. São Paulo: Saraiva Jur., 2018. p.136.

[11] MOTA, Soares Marcelo. O sistema penal subterrâneo e o contágio prisional. Canal Ciências Criminais. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/sistema-penal-subterraneo/>. Acesso em: 18 jul. 2019.

[12] GONZAGA, Christiano. Manual de Criminologia. São Paulo: Saraiva Jur., 2018. p.137.

[13] ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra, 1992. p. 15 apud NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 8. ed. Belo Horizonte: D'plácido, 2019. p. 715.

 

 

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