Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues
[1]Os bens jurídicos são todos os “valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva” (SANTOS, 2017). Aqueles considerados mais importantes – por serem necessários ou úteis “para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano” (idem) – são protegidos pelo Direito Penal, tais como a vida, a propriedade e a integridade, por exemplo.
Devido a sua importância e tutela pelo Direito Penal, caso haja lesão ou ameaça de lesão a esses bens, o Estado pode se utilizar de medidas mais drásticas para sua proteção, como as penas criminais e as medidas de segurança. Dentre essas, a mais conhecida – e mais extrema – é a pena de prisão.
Destarte, com o intuito de proteger de forma mais ativa esses bens, a pena de prisão é utilizada como punição para aquele que comete um crime (ameaçando ou lesionando um bem jurídico tutelado). Não obstante, o que se observa é que esta dita proteção – apregoada pelo discurso oficial – não se efetiva na prática.
“No Brasil, 136 leis penais foram editadas de 1940 a 2011” (ALMEIDA; GOMES, p. 17). Apesar de todas essas leis, e do recrudescimento de penas para alguns crimes, a violência não diminuiu. O problema é que “nenhuma reação punitiva, por maior que seja sua intensidade, pode pôr fim à impunidade ou à criminalidade de qualquer natureza” (KARAM, 2015)
Isto acontece pois existe uma enorme diferença entre a criminalização primária – aquelas condutas definidas pelo Poder Legislativo como crime – e a criminalização secundária – “a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas” (ZAFFARONI et. al. p. 43), ou seja, as pessoas que são presas porque cometeram algum delito. Dentre o número de delitos que acontecem e o número de delitos que chegam às agências judiciais (polícia, Ministério Público e Judiciário), há um enorme abismo.
Disso advém uma característica estrutural do sistema penal: sua seletividade. Devido à sua incapacidade operativa de atuar em todo fato criminoso que acontece, ele opta por atuar naqueles que são mais suscetíveis ao seu poder. Desta forma, na maioria das vezes, o sistema penal atinge aqueles que são mais vulneráveis (política, social e economicamente).
Este fato é comprovado quando se observa os dados do último levantamento oficial que fez análises qualitativas quanto à cor e escolaridade dos presidiários. De acordo com o INFOPEN (2017), 64% dos presos brasileiros são pretos ou pardos e 75% não se formou no ensino médio (o que é um indicador de baixa renda), indicando ser a maioria dos presidiários brasileiros composta por pretos, pobres e de baixa escolaridade. O sistema penal atua, então, sobre aqueles que estão mais expostos, deixando praticamente intocados outros tipos de criminosos, como os do colarinho branco.
Outrossim, tipificar uma conduta tampouco frustra seu cometimento. De acordo com Thompson (1991), a “criminalização não inibe, impede ou amedronta os criminosos”. Talvez o maior exemplo desta afirmação seja a proibição do comércio de drogas. Apesar de ter uma pena abstrata relativamente alta (5 a 15 anos), 20,28% dos presos brasileiros estão presos por este tipo penal (INFOPEN/19). Além disso, desde a Lei 11.343/06, que tornou mais severas as penas para este tipo de crime, o número de presos por tráfico, até 2013, cresceu cerca de 339% (D’AGOSTINO, 2015).
Logo, os efeitos preventivos gerais não são observados na realidade. Em outras palavras, a criação de mais tipos penais e o agravamento de penas não intimidam o delinquente no cometimento de crimes – o que também é observado pelo alto nível de reincidência.
Todavia, esses pontos não são discutidos, e o discurso oficial é reforçado pelos meios de comunicação de massa – como o rádio, a televisão e os jornais impressos e eletrônicos. Ao retratar e espetacularizar fatos criminosos de forma maniqueísta, eles contribuem para a criação de um estereótipo do criminoso. A esse estereótipo, associam-se “todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos” (ZAFFARONI et. al. p. 46). Cria-se a divisão entre nós e eles, cidadão de bem e inimigo. Desta forma, todos os problemas sociais podem ser atribuídos a esse estereótipo criminoso, sem haver uma reflexão sobre as divisões sociais e as reais causas da criminalidade.
Por conseguinte, a solução apresentada se materializa: mais prisão e mais pena. A pena de prisão é vista como uma “deusa alada onipresente (...) que resolve problemas, que influencia a alma dos seres humanos para que eles pratiquem certas ações e se abstenham de outras” (BATISTA, 2002, p. 4). A cada novo problema que surge, ela é invocada para resolvê-los: da fraude fiscal ao comércio de entorpecentes, dos crimes ambientais aos crimes contra o patrimônio.
Desde a redemocratização, cada vez mais pessoas são presas, mais tipos penais são criados e mais se aumentam as penas – tudo sem ter havido mínima diminuição da criminalidade. Os meios de comunicação, por sua vez, contribuem na manutenção desta situação, uma vez que “não há debate, não há atrito: todo e qualquer discurso legitimante da pena é bem aceito” (BATISTA, 2002, p. 4).
Apesar dos altos índices de encarceramento, da demasiada criação de novos crimes e dos altos índices de reincidência, o discurso da punição penal continua com muitos adeptos, tanto à direita, quanto à esquerda (KARAM, 2015). Teoricamente, se a penalização e sua consequente intensificação funcionassem, o número de pessoas cometendo esse tipo de crime deveria diminuir, o que não ocorreu.
Desta maneira, é preciso que se tenha em mente que um mesmo remédio pode funcionar muito bem para determinada patologia, e ser um veneno para outra. A pena de prisão continua a ser apresentada com solução para diferentes tipos de problema, sem contraditório. Portanto, o debate deve ser fomentado, refletindo-se sobre a real necessidade da pena de prisão para diversos crimes, não perdendo de vista o mais fundamental princípio do Direito Penal: o de ultima ratio (ser utilizada como último recurso).
Notas e Referências
ALMEIDA, Débora de Souza Almeida, GOMES, Luiz Flávio. Prefácio. In: Populismo Penal Midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013. 509 p.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Carcerárias. Org: Marcos Vinícius Moura. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf. Acesso em: 19 fev. 2020.
BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2019. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen. Acesso em 3 mar. 2020.
BRASIL. Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da República. Diário Oficial da União. Brasília, 11 jul. 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 19 de fev. 2020.
D’AGOSTINO, Rosanne. Com Lei de Drogas, presos por tráfico passam de 31 mil para 138 mil no país. Portal G1. 24. jun. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.html>. Acesso em: 4 jun. 2020.
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Blog da Boitempo. 28 jul. 2015. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/07/28/a-esquerda-punitiva/>. Acesso em: 27 abr. 2020.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. 734 p.
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro, Revan, 1991.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1978.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro, Revan, 2006. 660p
[1] Texto originalmente publicado no Jornal Voz Acadêmica, Vol. 3, de 21 de dezembro de 2020, p. 12-13, do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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