O Direito Penal como a Lei de Proteção do mais Débil: Desmistificando um Dogma Moderno

18/10/2015

Por Aramis Nassif - 18/10/2015

1. Introdução

É consabido que a teoria do garantismo tem como uma de suas máximas, a do direito exercido como defesa do mais débil contra o mais forte. Mas qual direito? Esta é uma pergunta que, a partir da leitura da teoria em referência, se me parece não bem respondida, mas ele é sempre identificado como sendo o direito penal.

Não se tem a pretensão respondê-la, mas, como sugerido acima, provocar reflexões em torno do tema e abalar o conforto mantido com o entendimento adotado sem maiores debates.

Indiscutível que o discurso garantista tem sua formação no movimento crítico do uso alternativo do direito, surgido nas décadas de 60 e 70 na Associação da Magistratura Italiana, e que seu desenvolvimento alcançou o patamar teórico exibido na cultuada obra ‘Derecho y Razon’ de Luigi Ferrajoli. O autor italiano se propõe a uma revisão teórica do modelo da legalidade penal e processual penal como foi traçado pelo pensamento iluminista.

É perceptível o empenho em desconstruir o direito penal e do caráter inquisitorial do seu instrumental (direito processual) fazendo contraponto à involução do quadro sociológico e criminal, na consagração liberal do Estado social mínimo e penal máximo. É um discurso de resistência embebido do pensamento crítico e questionador com assunção teleológica da defesa intransigente dos direitos humanos, especialmente do indivíduo perante a força do Estado.

Todavia, mesmo com a vocação teórica, merece contestação afirmar que o direito penal deve (ou pode) ser aplicado como meio de defesa do mais débil. Não vejo a possibilidade deste utilitarismo oblíquo do direito material, ainda que o abrigo da legalidade do penalismo seja um dos sustentáculos da doutrina, e que pudesse conduzir a este entendimento, ou seja, os direitos fundamentais têm correspondência com os limites do direito penal.

Mas, com toda a vênia, não é assim. A explicação continente estaria no princípio da legalidade. Afinal, o delito existe juridicamente em razão desse consagrado princípio, sistematizado conceitualmente na expressão ‘nullum crimen sine lege’, e limita-se a garantir que, sem a antecipada descrição típica, não há que se falar em crime. Então, a maior proteção do cidadão está no não-crime (quem sabe um não-direito penal?), ou seja, que suas condutas não sejam tipicamente recriminadas no sistema normativo de criminalização e, por isto mesmo, convalidam os direitos e garantias constitucionais, como se fossem um motocontínuo jurídico.

Todavia, é de ter-se presente que, historicamente o princípio da legalidade foi parido para consagrar o Estado constitucional com o qual se buscava contrapor ao Estado absolutista, tal como ocorreu com a instituição da Magna Carta inglesa de 1215, e, posteriormente, na França pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

A constitucionalização do princípio da legalidade não se limitou ou limita ao Direito Penal. A legalidade decorre do ideal de que a ausência de expressa proibição determina a permissão da conduta. Representa o princípio da legalidade geral, que é o marco avançado do Estado Democrático de Direito e que firma suas raízes em todos os desdobramentos e ramificações do Direito.

Desse modo, aceitando-se a tese de unidade do Direito e sendo a fragmentariedade apontada como elemento justificante do penalismo, afirma-se que o princípio da legalidade é o caráter de todo o direito, apenas atingindo no campo penal o ápice de sua projeção doutrinária, histórica e o patamar máxima da relevância dos seus efeitos.

Impressiona que o direito penal se contrapõe a preceitos constitucionais relevantes, podendo revogar os que, axiologicamente, tem nítida postura garantista, como a status libertatis e os direitos políticos e, ainda, pela repercussão conseqüente e subsequente ao fato incriminado e por ele provocado, vai atentar, inclusive, contra a dignidade da pessoa humana, certo que esta é um dos fundamentos do Estado de Direito. Aqueles atingidos legitimamente pela sentença penal condenatória transitada em julgado e, esta, pela estigmatização do processo criminal.

De lembrar que o estado de inocência (inadequadamente denominada presunção de inocência), é a mais óbvia negação do direito penal na instância das relações da vida (especialmente as intersubjetivas) e no conflito eventual que, pela sua ruptura, dela deriva, sobrevive durante o processo, antagonizando-se ao interesse oficial de punição – presente o direito penal - ao infrator (Estado versus cidadão).

A Constituição autoriza, é certo, a revogação do estado de inocência, mas mantém-se parcialmente sobrevivo na dosimetria da sanção, ms que também será revogado com a ‘pena definitiva’, vez sua executoriedade posterior, não mais pela sentença, mas na sentença, onde se consagra o princípio da individualização da pena.

A pena, no momento da conclusão condenatória da sentença, é sempre mínima considerando-a em sua abstração, o que é imposto pelo estado de inocência. Esta presença principiológica derivada da Carta obstrui a imediata aplicação da pena máxima. A movimentação para mais ou para menos do quantum penal, sempre nos limites da lei penal, será feito a partir de leitura constitucional (individualização) [1].

O que não deve ser despercebido é a posição do cidadão perante o ‘direito’ penal, pois no garantismo, reconhecendo a implicitude desta visão, a proteção do mais débil será ‘contra’ o direito penal, e não ‘pelo’ direito penal, sob o qual se oculta a força do mais poderoso: o Estado e seu exclusivo jus persequendi e, ao depois, jus puniendi.

2. Direito Penal Mínimo

Uma necessária colocação, mesmo já exposta acima, impõe-se ao introduzir o tema: não consigo entender que o direito penal protege ao mais fraco, ou, como referido no título - em inescondível evocação a Ferrajoli -, ao mais débil frente ao mais forte.

É de lembrar que o teórico italiano referia-se, ao cunhar a assertiva, ao ‘direito penal mínimo’ pois, para ele, sob este rótulo, estaria a configuração  da “proteção do débil contra o mais forte; tanto do débil ofendido ou ameaçado pelo delito, como também do débil ou ofendido ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o delinquente, e na vingança é a parte ofendida ou os sujeitos públicos ou privados solidários com ele” [2].

Mas, o que se lê e não se vê é, com máxima vênia, que a aplicação do princípio da insignificância, da irrelevância jurídica, (sem preocupação com a rubrica adotada pelos doutos), não é mais nem menos que a resistência à aplicação do direito penal em determinados casos concretos, em nome, ao se assumir esta postura corajosa, de uma formatação axiológica mais significativa frente ao sincretismo positivista, qual seja, a de não permitir que a jurisdicionalidade típica de uma conduta provoque um desvio teleológico da norma, qual seja, a consumação de uma injustiça, marcada pelo óbvio desfalque da proporcionalidade entre a ação humana e reação punitiva.

Lenio Luis Streck, alerta que a “perspectiva garantista de Ferrajoli tem como base um projeto de Democracia Social, que forma um todo único com o Estado Social de Direito: consiste na expansão dos direitos dos cidadãos e dos deveres do Estado na maximização das liberdades e na minimização dos poderes, o que pode ser representado pela seguinte fórmula: Estado e Direito mínimo na esfera penal, graças à minimização das restrições de liberdade do cidadão e à correlativa extensão dos limites impostos à atividade repressiva; Estado e Direito máximo na esfera social, graças à maximização das expectativas materiais dos cidadãos e à correlativa expansão das obrigações públicas de satisfazê-las”. [3]

Obvia-se na obra de Ferrajoli, ao promover o adequado translado doutrinário do direito penal moderno às lindes da Constituição, em seu viés garantista, permite a conclusão cogente que o direito à liberdade, fundamental que é, limita a intervenção do Estado quando sua privação decorre de cena inexpressiva no plano da censura social, ou que, pela imposição legal, não permite menos que sua negação na concretude da legislação ordinária no sentido de evitar a inconstitucional falta de proporcionalidade.

A minimização do direito penal, mesmo pelas reações clamorosas de alguns operadores do direito e por muitas vozes leigas, serve, em contraponto às críticas e por elas também, ainda que involuntariamente constituída, como delação de um sistema penal cruel, falido, que, na figuração de direito positivo, não conhece o verdadeiro sentido da justiça.

Poder-se-ia surpreender na assertiva uma crise metafísica no texto. Mas não se entenda assim. Tenha-se como uma crise provocada, é certo, mas pela observação de uma ciência jurídica cada vez mais despojada de solidariedade na medida em que se coteja com nossa realidade sócio-política marcada pela injustiça.

Por esta porta ingressa o direito penal mínimo do qual se pode dizer, repetindo e ampliando a introdução do tema, que ele é a negação social e constitucionalmente autorizada do direito penal injusto.

3. Direito penal, poder e corrupção

Por outro lado, no que diz respeito ao direito penal propriamente dito, jamais há de ver nele a proteção de quem quer que seja, muito menos dos mais frágeis no contexto sócio-jurídico.

O direito penal é imune a princípios democráticos.

Suas regras são fixas, permanentes e inflexíveis, o que impõe, por isso mesmo, o reconhecimento de que "é preciso ampliar a visão do direito penal da Constituição na perspectiva de uma política integral de proteção dos direitos, o que significa entender o garantismo não somente no sentido negativo como limite do sistema punitivo (proteção contra o Estado), mas, sim, também como garantismo positivo, o que, no dizer de Baratta, aponta para a resposta às necessidades de assegurar a todos os direitos, inclusive os de prestação por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais), e não apenas aqueles que podem ser denominados de direitos de prestação e de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas.[4]

A explicação tem caráter estrutural: a densidade ideológica do sistema é a expressão legislativa do momento autoritário de sua genealogia e seu conseqüente desenho normativo. O direito penal não considera relevante os direitos do cidadão criminalmente processado, pois mais que titular deles é, em verdade, objeto da perseguição promanada desse mesmo direito (penal).

Portanto, o dogma moderno (esteio doutrinário do garantismo), de que o direito é meio de proteção do mais débil frente ao mais forte, mais não é que uma ilusão de ótica de alguns pensadores. A proteção está em fazer leitura constitucional do direito penal para minimizá-lo ou negá-lo, se for o caso, enquanto produtor de injustiça.

E porque a conformação interpretativa, além de identificar equivocadamente o direito penal como meio de proteção, fica cega à verdade única da agressão que deriva, imediata e interessadamente, do exercício de poder. E este não é necessariamente o do Estado-justiça (poder judiciário), que, na fuga do logocentrismo alienante de alguns, rompe com as amarras dogmáticas para contrariar o sistema normativo no afã de ser justo.

O poder que leva a desmistificar o direito penal como meio de proteção do mais débil é o estatal executivo/legislativo (sem excluir grande parte, se não a maior, do judiciário), pois que o sistema penal não representa mais que a autoproteção da classe política (não a facção partidária), dominante e se vem mantendo no poder sob qualquer capa ideológica há décadas, sendo o direito positivo mal disfarçado sistema dessa proteção. O direito penal é dirigido aos ‘outros’, ou seja, na confecção do poder, os excluídos. Ou se reprime ou se pune, as duas ações executadas de maneira furiosa. Na topografia política concorrem dois afluentes de origens ideologicamente distintas, mas em direção ao mesmo estuário legisferante: a direita repressiva e esquerda punitiva. Basta ler a história para ver o direito penal-ontem; basta acompanhar o processo legislativo para ver o direito penal-hoje: a geminidade filosófica, ainda que firmemente dissimulada e, assim, negada, é evidente.

Não fora só isto, concorre para sustentar a tese de que o direito penal desserve à proteção do mais frágil, a produção de linhas de poderes paralelo ao estatal. Dissertei um dia:

O Estado, omisso, perde vigor para o poder paralelo que se estabelece a partir de organizações criminosas com topografia social distintas e distantes. São neste contexto, duas as estampas: Primeira: O Estado perde sua força para a corrupção dos agentes públicos, cúmplices, se não autores da expropriação do Estado. A manipulação da riqueza pública lhes é fácil. Por isto que nos círculos oficiais forma-se grupos para tráfico de influência, venda de proteção oficial, acobertamento de fatos ímprobos, etc., onde o poder estatal não tem ingresso, estabelecendo um complexo de convivência distanciado da sociedade periférica.., com reflexo da anomia naquele espaço comunitário semioficial, a denunciar que, os que ali vivem e se organizam, foram incluídos pelo establishment, passam a produzir normas de regulação social próprias em função de terem se apropriado desse poder estatal. Acomodam-se no poder. Segunda: Perde sua força para o poder paralelo que se estabelece a partir da organização criminosa. A manipulação da riqueza popular lhes é fácil. E por isto que nas favelas, verdadeiros guetos sociais, o poder constituído também não tem ingresso, estabelecendo-se um complexo de convivência coletiva distinto do da sociedade nuclear urbana, com reflexo da anomia oficial naquele espaço comunitário marginal, a denunciar que - os que ali vivem e se organizam - foram excluídos pelo establishment, e passam a produzir normas de regulação social próprias em função de terem tido seus direitos e garantias básico-fundamentais jamais reconhecidos. Repelem o poder estatal. Por razões óbvias, o primeiro grupo, por ocupar, também, o espaço repressor, com algum sucesso, conduz o segundo ao processo penal.” [5]

Longe está, pois, o direito penal da função de proteção aos mais frágeis.

O poder, seja qual sua face, na construção e na aplicação da norma penal, gera corrupção: a corrupção ideológica (que se busca esconder no discurso político), a política (apropriada do Estado econômico) e a fragmentária social (consequência da primeira), constroem barreiras de autoproteção da qual o cidadão mais débil está excluído.

4. Existe proteção penal?

Pela teoría garantista, “es más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en el delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios com el”,  que, repetindo a expressão introdutória deste. Texto que, agora nas palavras de Salo de Carvalho, significa “... o potencial garantista do direito que é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”. [6]

Daí afirmar que é o direito penal a via protetiva do cidadão mais fraco em qualquer plano da relação que exija esta definição, é, com cautelosa vênia, uma impropriedade. O direito penal é o que é. Sua normatização jamais teve o caráter protetivo, salvo, obviamente, para manter distante da punição os arquitetos da norma e próximos dela os excluídos, se não para só punir, mas jamais para proteger.

Antecipando o raciocínio de que o direito penal deve ser desmistificado como via de proteção ao mais frágil, e que, se ela existe, tem outra sede, leio Geraldo Prado:

“No caso brasileiro, a interpretação da lei penal incriminadora ou, dito de outra maneira, a fidelidade do juiz à lei penal incriminadora, reveste-se das seguintes peculiaridades: a lei penal que tutela situações discriminatórias ou voltadas à perpetuação das desigualdades sociais fere o pacto social, viola a Constituição da República e é inválida. Cabe ao juiz deixar de aplicá-la. Com isso, por exemplo, a incriminação dos movimentos sociais de reforma agrária se transforma em matéria no mínimo de discutível constitucionalidade; quando a proteção penal obedecer à cláusula de tutela dos interesses da maioria ou da generalidade das pessoas, o juiz penal não deve se esquecer do caráter excepcional da intervenção do sistema punitivo, cumprindo interpretar a lei penal de forma restritiva.” [7]

Ora, sabemos todos que é o processo penal o meio instrumental do direito material, em que pese sua distinção e distância científica.

Lopes Jr, com propriedade e a sobriedade de sempre, escreve:

“Antes de servir para a aplicação da pena, o processo serve ao Direito Penal e a pena não é a única função do Direito Penal. Tão importante como a pena é a função de proteção é a função de proteção do indivíduo em relação ao direito penal, por meio do princípio da reserva legal, da própria essência do tipo penal e da complexa teoria da tipicidade. O processo como instrumento para realização do direito penal deve realizar sua dupla função: de um lado tornar viável a aplicação da pena e, de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdade individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc.” [8]

A pressão constitucional, sobre o processo penal como via de restauração de seus preceitos aleijados eventualmente pela norma penal em abstrato, ou concretamente pelo caso ocorrido gera implícita tensão entre os dois ramos do direito, impondo-se, ao fim e ao cabo, a vontade da dama régia (a Carta).

Lenio, citando Massimo Donini defende que "um enfoque constitucionalista do Direito Penal não supõe, unicamente, que o Direito Penal não possa estar em contradição com a Constituição. Mais que um limite, deveremos entender a Constituição como fundamento da pena e do Direito Penal, verificando hipóteses em que a criminalização de determinadas condutas se demonstra constitucionalmente...” [9]

Resulta que o direito adjetivo, para efeitos de assegurar as garantias legitimamente descritas e instituídas pela Constituição, consolida a clivagem com direito material (enquanto objetivo), tornando-se, ao revés, também simbólico, com notável vocação teleológico-constitucional. O processo penal, sob a leitura constitucional não pode mais ser definido apenas como meio de realização do direito material, sem deixar de ter-se presente, esclareça-se, a característica hassemeriana do processo. Leia-se:

 “...el proceso penal prepara y organiza el escenario que necesita el Derecho sustantivo para hacerse efectivo  y sin proceso penal no puede  haber ni protección de bienes juridicos ni realización de fin alguno de la pena o qualquiera de los fines que se quieran atribuir al Derecho Penal...El Derecho procesal penal media entre Derecho penal material y proceso y, en este sentido, “sirve” a la realización del Derecho penal sustantivo”. [10]

Escrevi alhures:

“É que a lei não expressa todo o conteúdo jurídico de uma determinada sociedade, mas é a abstração de sua hipotética vontade. A doutrina resolve no plano da sugestão, da proposta, da constatação. Só a sentença (e a jurisprudência) é a concreção do direito em determinado momento histórico”. [11] e, mais adiante, “quando o magistrado, na necessidade imperativa de fazer da sentença um objetivo de justiça, contrariar a norma abstratamente positivada, o fará - repete-se necessária e exaustivamente - em concordância e obediência à hierarquia de princípios do processo explícitos ou implícitos no direito constitucional pátrio”. [12]

4. Proteção processual penal constitucional

Para Aury José Lopes Jr., “diante do ‘direito penal do terror’ implementado pelas políticas repressevistas de lei e de ordem, tolerância zero, etc.,o processo passou a desempenhar uma missão fundamental numa sociedade democrática, enquanto instrumento de limitação do poder estatal e, ao mesmo tempo, instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais”. [13]

Todavia, pouco significado teria a afirmação do doutrinador gaúcho, não fosse reconhecer a existência de um direito processual penal marcado pela presença constitucional.

Sabe-se que no direito alienígena, especialmente o argentino, existe um interessante debate sobre o ‘direito processual constitucional’ e o ‘direito constitucional processual’, e suas distinções. A nosso ver concorre um terceiro elemento para incrementar o debate e que estaria sob a rubrica do ‘direito processual penal constitucionalizado’.

Para Morelo [14], localizando sua dialética na ciência adjetiva, o direito processual constitucional diz com ‘justiça constitucional’, ou seja, a instrumentalização específica para tutela de dispositivos intraconstitucionais o que inclui, no forçado transporte ao direito brasileiro, a previsão na Carta como agente de controle da constitucionalidade no direito interno ao Supremo Tribunal Federal, bem assim, consagrando a ‘justiça constitucional’ ou a ‘jurisdição constitucional da liberdade’ (Capeletti), ao criar mecanismos para a tutela dos direitos fundamentais, como o mandado de segurança e, no interesse do texto, o habeas corpus, etc; já o direito constitucional processual, agora com a dialética constitucional, são as categorias processuais específicas erigidas em normas constitucionais para reforçar concretamente as garantias inerentes ao processo em geral, como, por exemplo, o acesso à justiça, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência...

A ousadia em incluir um terceiro membro nesta categoria de constitucionalização do processo, além das duas que faz parte do debate tradicional expresso na lição de Morelo, está localizada na ancianidade do Código de Processo Penal brasileiro. Isto obriga, o exame de seus dispositivos à luz de adequação ao sistema jurídico, político e social atual e, assim, inevitável a filtragem constitucional, que aliás, não é novidade alguma, haja vista o intenso debate a seu respeito. A questão maior versa sobre a categorização e qualificação da releitura constitucional dos preceitos processuais penais infraconstitucionais, inclusive com sua derrogação.

Paulo Rangel [15] disserta que “assim, os operadores jurídicos devem realizar uma releitura do direito, buscando um novo discurso jurídico com escopo emancipatório e de forma alternativa, porém de cima para baixo, ou seja, da Constituição para as normas infraconstitucionais e não o contrário como se tem feito. Não há mais espaço para aplicação de determinados dispositivos legais que pertencem a reminiscência do milênio passado e que não podem mais prender o juiz do novo século. O Direito é dinâmico e não estático”.

Mais adiante, o autor esclarece:

“É cediço por todos que nossa lei processual penal pertence a uma época em que as liberdades públicas eram cerceadas pelo regime político imposto pela Era Vargas. O que significa dizer: nosso código pertence a um período de exceção. Conseguiu atravessar o milênio, mas não pode revogar a Constituição devendo a ela se harmonizar. Assim, diversos de seus dispositivos legais merecem uma releitura constitucional”.

O CPP é um continente da inquisitorialidade, não havendo surpresas quando se depara em espasmos pro societate de impossível convivência com preceitos constitucionais atuais. Portanto, o Código de Processo Penal, com idade mais que sexagenária, não está, na sua redação original, e mesmo nas constantes reformas, representando a realidade constitucional (temos uma Constituição contrastante com vários dispositivos do CPP), política (vive um momento de plena democracia, ao contrário do momento em que foi construído o diploma adjetivo); e social (com os costumes alterados em relação ao momento da confecção da lei formal). A lacuna causada por essa imprestabilidade legislativa é suprida pelos preceitos emanados da Carta política do país.

Não é difícil concluir, pois, que, no que se refere ao direito processual brasileiro, as três fontes formam a rede de proteção constitucional a ser observada pelo operador do direito: O direito processual constitucional; o direito constitucional processual e, por fim, o direito processual penal constitucionalizado.

Qualquer teoria que visa interpretar o direito processual não pode ignorar a realidade jurídica e social modernas, que obriga, pela nova dimensão em qualquer dessas realidades, à leitura sob o espectro da constituição a respeito do sistema jurídico como um todo. E, por óbvio, não se lhe exclui o sistema formal brasileiro.

Decorre de aí afirmar que o sistema de proteção ao cidadão mais débil – aqui considerada a relação processual - está:

a) na Constituição através de seus instrumentos próprios (direito processual constitucional e constitucional processual);

b) no processo penal constitucionalizado (através da filtragem constitucional).

Para implementar este entendimento, é de destacar outras feições do processo penal como tutela de interesses (se existem) no feito criminal, que conduz ao pensamento de Gilson Bonato:

“Não é mais admissível que o processo continue sendo o espaço do conflito, sendo necessária uma urgente revisão do mesmo, onde haja um efetivo respeito pelo princípio do devido processo legal e a busca pela reconstrução do fato não seja apenas formal ou aparente, mas o Estado realmente seja presença e não apenas uma sombra da Justiça”. [16]

Por tudo que já foi dito, não existe esta proteção no direito penal, cuja depuração constitucional é feita com a sua instrumentalização pelo direito processual, merecendo ser desconstituído este dogma moderno. É que, repete-se, se a norma de direito material está jurídica ou socialmente inadequada ao momento histórico ela deixa de ser aplicada ou é contrariada, que mais não é que sua própria negação e, jamais, sua aplicação de maneira adaptadamente protetiva.

A proteção só possível com as regras de processo penal, estas sim, admitindo sua adaptação ou adequação jurídica e socialmente, mormente quando feita leitura constitucional de seu complexo normativo ou, mesmo, se aplicado apenas a Constituição em sua tríplice feição processual.

5. O Estado e o indivíduo

Poder-se-ia pensar que o Direito Penal em sua feição de estrita legalidade protege o acusado da força do Estado, pois ele não poderia transpor os limites legitimamente constituídos pela norma para punir o indivíduo.

Não vejo assim.

Vejo que o Estado se faz forte pela vontade da sociedade ou da fracção politicamente dominante dela promanada. Mas é o Estado a expressão da juridicidade orgânica e ele quem legisla. Ao se sobrepor à vingança privada, substituindo-se à vítima, dotou-se de critérios legitimantes do poder punitivo que detém com exclusividade, passando a exercer, no enfeixamento sócio jurídico óbvio, maiores poderes que jamais teve o particular para vingar-se.

Óbvio que o Estado não sobreviveria sem um sistema normativo e no interior desse o direito penal é força e seu pretexto. Força, porque está autorizado a aplicá-lo e é o único que pode fazê-lo; Pretexto, porque os limites legais é a escusa para exercê-lo em nome da sociedade juridicamente ordenada contra o cidadão, (salvo os períodos de autoritarismo), estando ele mesmo infenso à sua aplicação, vez que o Estado não comete crimes. Assim, o Direito Penal, repete-se, o sustenta e mantém legitimado ao exercício da vingança.

6. Conclusão

O que precisa ser dito, e o faço temerária mas convictamente, é que o processo penal não serve apenas para a realização do direito penal, mas e também, para sua destruição (negação), desde que seja para defesa do mais frágil na relação por ele instituída e ou fora dela, quando faz prevalecer, à ciência penal, os princípios contidos na Constituição (filtragem constitucional).


Notas e Referências:

[1] Talvez aqui deva ser lida a inadequação constitucional da Súmula 231, STJ.

[2]  FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 335

[3] STRECK, Lenio Luiz. Revista do Direito, UNISC, Santa Cruz do Sul, 127-138, 1999.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n.º 2, p. 279.

[5] NASSIF, Aramis. Sentença Penal: O desvendar de Themis. Rio: Lúmen Júris, 2005.

[6] CARVALHO, Salo de. Descodificação Penal e Reserva do Código, Porto Alegre:  ITEC.

[7] PRADO, Geraldo. Processo penal e estado de direito no Brasil: considerações sobre a fidelidade do juiz à lei penal. in Revista de Estudos Criminais, ano IV, n. 14, 2004, pp. 95-112.

[8] LOPES JR. Aury José. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da instrumentalidade garantista). Rio: Lúmen Júris, 2004.

[9] ob. cit. p. 280.

[10] HASSEMER, Winfried, “Fundamentos del Derecho Penal”. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1984, p. 150.

[11] ob. cit. p.165.

[12] ob. cit. p.195

[13] LOPES JUNIOR, Aury Jose. Introdução crítica ao processo penal. Rio: Lúmen Júris. 2004.

[14] MORELO, Augusto Mario. Constitución y Proceso – La nova edad de las garantias jurisdiccionales. Buenos Aires: Libreria Editora Platense, 2002.

[15] RANGEL, Paulo. O Juiz Garantista. In http://www.mundojuridico.adv.br/documentos/artigos/texto066.doc. Data de acesso: 4/04/05.

[16] BONATO, Gilson. Por um efetivo Processo Penal. In Direito Penal e Processo Penal – Uma visão garantista (Coord. Gilson Bonato). Rio: Lúmen Júris, 2001.


Aramis Nassif

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Aramis Nassif é Mestre em direito (AJURIS-UNISINOS). Desembargador aposentado. Professor pós-graduação UNIRITTER Porto Alegre; UNISINOS Porto Alegre; UPF Passo Fundo RS.

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Imagem Ilustrativa do Post: The Colorful Bokeh Man // Foto de: Ian Sane // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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