O Direito não socorre quem dorme... Com outro...

10/06/2016

Por Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes - 10/06/2016

Se não for nada disso fique perto / Dou um jeito e tudo certo / Não precisa se preocupar / Dê mais um sorriso e vá embora / Por favor volte outra hora / Eu só quero ver você voltar/ Mas se não for amor / Não diga nada por favor / Não apague esse sonho / Pois meu coração nunca sofreu de amor /

Benito di Paula

Há poucas semanas, o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal condenou homem a pagar o valor de R$ 101 mil a sua ex sob a alegação de “estelionato sentimental”.

Conforme alegações da ex namorada (e endividada), durante o relacionamento, o ex por diversas vezes solicitou ajuda financeira, o que demonstrou por mensagens de celular, fazendo com que ela adquirisse dívida de R$ 101,5 mil para ajudar o então companheiro. Contudo o relacionamento terminou quando descobriu que ele havia reatado com a ex esposa ainda durante o namoro. Diante deste quadro, a namorada propôs ação visando o ressarcimento dos valores pagos. A ação foi julgada procedente em primeiro grau e a decisão mantida pelo TJDF.

O fundamento utilizado pelo Tribunal foi a de que:  “Embora a aceitação de ajuda financeira no curso do relacionamento amoroso não possa ser considerada como conduta ilícita, certo é que o abuso desse direito, mediante o desrespeito dos deveres que decorrem da boa-fé objetiva (dentre os quais a lealdade, decorrente da criação por parte do réu da legítima expectativa de que compensaria a autora dos valores por ela despendidos, quando da sua estabilização financeira), traduz-se em ilicitude, emergindo daí o dever de indenizar."[1]

O Tribunal assim decidiu:

PROCESSO CIVIL. TÉRMINO DE RELACIONAMENTO AMOROSO. DANOS MATERIAIS COMPROVADOS. RESSARCIMENTO. VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. ABUSO DO DIREITO. BOA FÉ OBJETIVA. PROBIDADE. SENTENÇA MANTIDA.

  1. Deve ser mantida a sentença a quo eis que, da documentação carreada para os autos, consubstanciados em sua maior parte por mensagens trocadas entre as partes, depreendendo-se que a autora/apelada efetuou continuadas transferências ao réu; fez pagamentos de dívidas em instituições financeiras em nome do apelado/réu; adquiriu bens móveis tais como roupas, calcados e aparelho de telefonia celular; efetuou o pagamento de contas telefônicas e assumiu o pagamento de diversas despesas por ele realizadas, assim agindo embalada na esperança de manter o relacionamento amoroso que existia entre os ora demandantes. Corrobora-se, ainda e no mesmo sentido, as promessas realizadas pelo varão-réu no sentido de que, assim que voltasse a ter estabilidade financeira, ressarciria os valores que obteve de sua vítima, no curso da relação.
  2. Ao prometer devolução dos préstimos obtidos, criou-se para a vítima a justa expectativa de que receberia de volta referidos valores. A restituição imposta pela sentença tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa, sendo tal fenômeno repudiado pelo direito e pela norma.
  3. O julgador não está obrigado a pronunciar-se quanto a todos os dispositivos de lei invocados pelas partes, quando entender ser dispensável o detalhamento na solução da lide, ainda que deduzidos a título de prequestionamento.
  4. Recurso conhecido e não provido.[2]

Tal decisão, embora eivada de boa intenção (penso eu), não mantém relação com regras básicas do Direito das Obrigações.

No estudo da Teoria do Pagamento, tem-se que podem pagar dívidas: o devedor e o terceiro. Este terceiro poderá ser: interessado ou não interessado.

Por terceiro interessado entenda-se a pessoa que, sem integrar o pólo passivo da relação obrigacional-base, encontra-se juridicamente adstrita ao pagamento da dívida, a exemplo do fiador que se obriga ao cumprimento da obrigação caso o devedor direto não o faça.[3]

Já o terceiro não interessado é pessoa que não guarda vinculação jurídica com a relação obrigacional-base, por nutrir interesse meramente moral. Tais pessoas agem movidas por sentimento de solidariedade familiar ou social, não estando adstritas ao cumprimento da obrigação.[4] Aqui encontra-se a hipótese de apaixonados que pagam a conta de sua “cara-metade”!!! Por tal motivo o texto se restringirá a análise do pagamento feito por não interessado.

Como a legislação brasileira não permite a alegação de desconhecimento da norma para fins de não cumpri-la é imperioso saber que o pagamento de dívida feita por terceiro não interessado, para que seja objeto de ressarcimento, deve ser feito com critérios.

O pagamento de terceiro não interessado pode se dar de duas maneiras:

  1. Terceiro não interessado paga a dívida em nome próprio – Aqui a lei possibilita o ressarcimento pelo valor pago (art. 305, CC). Neste caso, além de demonstrar o propósito de ajudar o devedor, o terceiro já transparece seu intento de obter o reembolso.
  2. Terceiro não interessado paga a dívida em nome a à conta do devedor – neste caso, o terceiro não terá a possibilidade do reembolso uma vez que fez o pagamento por motivos morais e não por motivos patrimoniais. Entende-se que, aqui, quis fazer uma doação, sem qualquer direito a reembolso.[5]

O artigo 305 do Código Civil brasileiro dispõe que o pagamento feito por terceiro interessado em seu próprio nome, é passível de reembolso. De outro lado, aquele que em nome do devedor, sendo terceiro não interessado, efetuar pagamento, não terá direito a reembolso, trata-se de mera LIBERALIDADE.

Em assim sendo, durante o relacionamento amoroso, caso haja a intenção de pagamento das dívidas do “parceiro(a)”, este deverá ser acompanhado de comprovante de pagamento em nome do namorado pagador, sob pena de não poder ser reembolsado. Apesar da falta de romantismo do ato (até porque quem mais tarde pensa em cobrar, não paga dívida de outro só por sentimento ou por solidariedade, quer algo em troca!!!) a solução é andar com bloco de recibo na bolsa ou na carteira.

O fundamento utilizado pelo Tribunal de Justiça Do Distrito Federal de que os pagamentos feitos pela namorada foram de boa-fé pois visavam a manutenção do relacionamento e portanto passíveis de ressarcimento, não deve prosperar. Não podem prevalecer pois:

1) fere o disposto em lei;

2) se o namorado traidor teve interesses escusos ao pedir valores mesmo sabendo que não manteria o relacionamento (se é que sabia!!!), a namorada também o teve em utilizar o pagamento dos valores como moeda de troca para manutenção da relação, tanto que diante do abrupto término da relação, ela não mediu esforços em requerer o ressarcimento dos valores que à época tão “amorosamente” ela despendeu.

3) Não se trata de aplicação da Teoria do Enriquecimento sem Causa pois no caso em análise o pagamento feito pela namorada não é indevido nem objetivamente (erro quanto à existência ou extensão da obrigação) nem subjetivamente (pagar a credor equivocado ou sem ser devedor). Aqui, a namorada tinha plena consciência do pagamento efetuado.

Portanto, o “estelionato sentimental” não seria somente daquele que dá amor para receber dinheiro, pois quem dá dinheiro para receber amor usa o outro tanto quanto.


Notas e Referências:

[1] Luciano dos Santos Mendes, juiz da 7ª Vara Cível de Brasília

[2] TJDF. Acórdão n.866800, 20130110467950APC, Relator: CARLOS RODRIGUES, Revisor: ANGELO CANDUCCI PASSARELI, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 08/04/2015, Publicado no DJE: 19/05/2015. Pág.: 317

[3] GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume III. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 111

[4] GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume III. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 111

[5] GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume II. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 246.

GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume III. São Paulo: Saraiva, 2009. GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume II. São Paulo: Saraiva, 2009.

Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes. Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes é graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2002) e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2005). Doutoranda pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente é professora do Instituto Catarinense de Pós Graduação, advogada pela Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e professora da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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