‘O Direito não é uma ciência exata’ - então eu julgo conforme quiser?

05/08/2017

Por Guilherme Alcântara – 05/08/2017

Recentemente, o juiz federal Sérgio Moro, em entrevista à Folha de São Paulo, defendeu e justificou o prolongamento ilegal das interceptações telefônicas de Dilma Roussef e Lula, bem como o seu “vazamento”, bem como a condenação do último, alegando que ‘O Direito não é uma ciência exata’, e que ‘faz parte da aplicação do Direito’ que existam interpretações divergentes da que ele próprio teve sobre o Direito no desenrolar da Operação Lava Jato. Pois bem, neste textículo, quero elucidar melhor a expressão ‘O Direito não é uma ciência exata’ e expor porque isto não leva necessariamente à uma carta-branca para que a autoridade-intérprete do Direito aja de forma arbitrária.

Que o Direito não é uma ciência exata, e que portanto a aplicação do Direito não obedece à fórmulas matemáticas na esteira da Física e da Química, isso o sabemos desde as lições de Carlos Maximiliano, no início do século XX. O Direito, desde a (re)organização das ciências em físicas, exatas ou da natureza e humanas, históricas, sociais ou do espírito, no século XIX, sempre pertenceu a esta(s) última(s), cuja marca é justamente a “falta de exatidão” comparativamente à(s) primeira(s). Enquanto a aplicação das leis físicas segue um método e admite somente uma resposta negativa ou positiva – aquela combinação de substâncias dá nisto ou naquilo – as leis jurídicas admitiram diversas interpretações amiúde divergentes, a depender do tempo e espaço que ocupar o intérprete. Neste sentido, não raro se considera as ciências sociais ou históricas – ou do espírito - como inferiores em relação às ciências exatas ou físicas – uma herança do paradigma positivista de ciência[1], afinal, o próprio conceito de ciência moderna se dá inspirado pelo desenvolvimento das ciências da natureza no início do séc. XVII[2].

O primeiro problema que gostaria de levantar é o seguinte: ainda é sustentável a divisão das ciências em da natureza e do espírito? Acredito que não, na medida em que o positivismo científico se encontra há muito ultrapassado pela revolução copernicana que a viragem linguística provocou no conhecimento humano, colocando abaixo a distinção sujeito-objeto que separava palavras e coisas. Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos demonstra como os próprios físicos, matemáticos e químicos – v.g. Einstein, Heisenberg, Bohr, Wigner e Prigogine – relativizaram a exatidão das ciências exatas a ponto de apenas podermos esperar delas resultados aproximados e prováveis, nunca certos[3]. Esta minha primeira objeção poderia na verdade reforçar o argumento de Moro: se sequer nas ciências da natureza existem certezas, que dirá no Direito, ciência do espírito, cuja certeza ou objetividade nunca foi postulada? Podemos falar o que quisermos do não só do Direito, então, mas de tudo?

De novo, não. De certo modo, sempre foi um erro associar a historicidade das ciências do espírito à um relativismo que leva ao niilismo (Nietzsche alerta para isso na Segunda Consideração Intempestiva). A identificação do condicionamento histórico do conhecimento humano com a sua relatividade tem no Direito seu ápice epistemológico na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que no capítulo oitavo da referida obra defende que “a questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer [...] uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito”, sendo que as autoridades encarregadas de aplicar o direito (legislador, administrador, ou juiz) são livres no ato de interpretar/aplicar o Direito e “justamente por isso, a obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida amoldura da norma geral, uma função voluntária”, permeada “de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc.” as quais “do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade”.

Moro e Kelsen andam, portanto, de braços dados. Para ambos, “a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato”. E a justificativa teórica para tanto já o sabemos: o Direito não é uma ciência exata, mas do espírito.

O principal problema, porém, como já antevi, é que o positivismo morreu – embora a notícia não tenha chegado para a maioria dos juristas tupiniquins – e foi o linguistic turn que o matou. Não se pode colocar quaisquer palavras nas coisas: do mesmo modo que a nossa linguagem não se reduz a um instrumental, mas é nossa morada, a aplicação do Direito não pode se dar de forma arbitrária, mas antes precisa respeitar a autoridade da tradição jurídica.

Foi isso o que identificou Gadamer ao recordar a origem da divisão das ciências em exatas (ou da natureza) e humanas (ou do espírito), feita originariamente pelo físico Hermann Helmholtz há mais de cem anos. Embora – na esteira do positivismo moda à época – tenha colocado as ciências do espírito em desvantagem em relação às exatas, Helmholtz tem razão ao demonstrar que  é justamente na “fraqueza” das primeiras em relação às segundas que reside seu diferencial: na medida em que as ciências da natureza baseiam-se no sapere aude kantiano, as ciências do espírito demandam o oposto para atingir a verdade, o respeito à tradição da história da humanidade[4]. Como refere Gadamer, “escutar a tradição e situar-se nela é o caminho para a verdade que se deve encontrar nas ciências do espírito”[5].

Mais uma vez, repito o que deve(ria) ser óbvio: não se trata de obedecer a uma autoridade ou a tradição cegamente. De certo modo, Moro fez isso, ao reproduzir um modo-de-fazer o Direito totalmente compatível com o que se sempre se fez do Direito no Brasil – um instrumento de poder político das classes dominantes. Ele inclusive justificou as açodadas prisões preventivas na Lava-Jato decretadas com argumentos do tipo: “sempre se fez assim...”. Nestes termos, Moro efetivamente seguiu uma tradição jurídica brasileira, a de matiz autoritária, pré-Constituição de 1988.

Por sorte, seguir a tradição é algo muito mais complexo para a Crítica Hermenêutica do Direito, na medida em que até quem critica a tradição está trabalhando para a construção de uma tradição autêntica. O que parece faltar ao juiz Sérgio Moro – e isso fica patente em outros trechos desta e de outras entrevistas – é a noção de que a interpretação do Direito não é um processo isolado, como ensina Peter Haberle[6], e que a obediência “à autoridade significa perceber que o outro – assim como a outra voz, que fala a partir da tradição e do passado – pode ver alguma coisa melhor do que nós mesmos”[7].

O direito, portanto, não é mesmo uma ciência exata. Nenhuma, na verdade, é. Mas isso não constitui permissão para o arbítrio das nossas autoridades. Por exigência do constitucionalismo democrático, o juiz Sérgio Moro possui a responsabilidade política de buscar a interpretação/aplicação correta do Direito.

O pior: nada do escrito aqui possui originalidade. Ronald Dworkin falou isso sua vida toda. O professor Lenio Luiz Streck trabalha a recepção da filosofia gadameriana no Brasil há mais de 20 anos. Apenas estou repetindo o já dito à exaustão em obras como Verdade e Consenso, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, Lições de Crítica Hermenêutica do Direito, O Que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência, entre outras. Ou seja, não é por ignorância que nossos juízes são arbitrários, mas porque convém mesmo...


Notas e Referências:

[1] "Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn o atraso das ciências sociais é dado pelo carácter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências naturais, essas sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão por toda a comunidade científica, conjunto esse que designa por paradigma, nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente toda a espessura do conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso acarreta é simultaneamente causa e efeito do atraso das ciências sociais" (SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. - São Paulo: Cortez, 2008, p. 37-38).

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. II: complementos e índice. Trad. de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 49.

[3] "O caracter local das medições e, portanto, do rigor do conhecimento que com base nelas se obtém vai inspirar o surgimento da segunda condição teórica da crise do paradigma dominante, a mecânica quântica. Se Einstein relativizou o rigor das leis de Newton no domínio da astrofísica, a mecânica quântica fê-lo no domínio da mi-crofísica. Heisenberg e Bohr demonstram que nãoé possível observar ou medir um objecto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que oobjecto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou. [...] . A ideia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza de Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra. Este princípio, e, portanto, a demonstração da interferência estrutural do sujeito no objecto observado, tem implicações de vulto. Por um lado, sendo estruturalmente limitado o rigor do nosso conhecimento, só podemos aspirar a resultados aproximados e por isso as leis da física são tão só probabilísticas" (SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. - São Paulo : Cortez, 2008, p. 43-44).

[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. II: complementos e índice. Trad. de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 52.

[5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. II: complementos e índice. Trad. de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002 p. 53.

[6] HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre/RS: Sergio Antonio Fabris Editor. 2002, p. 41.

[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. II: complementos e índice. Trad. de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 53.


Guilherme Alcântara. . Guilherme Alcântara é Mestrando em Fundamentos e Efetividade do Direito pelo programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Guanambi. Advogado. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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