O Direito Jurisprudencial Empírico e Uma Nova Perspectiva do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica  

22/12/2018

 

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica é incidente processual excepcional, consistente no meio hábil para o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Atualmente, para que esta espécie de pleito prospere se faz necessário a comprovação do desvio de finalidade social ou confusão patrimonial dos bens da pessoa jurídica com os de seus administradores e/ou sócios. Todavia, a partir do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luis Roberto Barroso, no Habeas Corpus (HC) nº 152.752[1], inaugurou-se uma tomada empírica, através de dados e estudos, como base de formação de precedentes judiciais. Cenário este que, invariavelmente, alterará a atual jurisprudência a respeito dos requisitos necessários para a caracterização da desconsideração da personalidade jurídica.

Regulada pelo art. 50 do Código Civil (CC/02)[2], a desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida em nosso ordenamento jurídico, ainda na década de 1960, através de Rubens Requião. (COELHO, 2003).[3]

Em vista da necessidade de cobertura de danos causados por pessoas naturais, através das pessoas jurídicas que integram ou representam, a doutrina construiu a disregard doctrine ou disregard of legal entity, conhecidas, respectivamente, como: teoria do superamento ou teoria da penetração. (BOEIRA, 2017)[4]

Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica não excepcional[5], aplicar-se-á a teoria maior – segundo Maria Isabel Gallotti, no voto dos Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp) nº 1.306.553/SC, são os requisitos para a concessão da desconsideração da personalidade jurídica: (STJ, 2014)[6]:

“O encerramento das atividades da sociedade ou sua dissolução, ainda que irregulares, não são causas, por si sós, para a desconsideração da personalidade jurídica a que se refere o art. 50 do CC. Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social - adotada pelo CC -, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros. É a intenção ilícita e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo CC, a aplicação do instituto em comento. Especificamente em relação à hipótese a que se refere o art. 50 do CC, tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, deve-se restringir a aplicação desse disposto legal a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial. (...) Ressalte-se que não se quer dizer com isso que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei, com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial.(...).

Já, quanto ao marco inicial da desconsideração da personalidade jurídica, Nancy Andrighi explica que (STJ, 2012)[7]:

"o encerramento irregular da empresa constitui importante indício de abuso da personalidade, o qual, diante das peculiaridades do caso concreto, é apto a embasar o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para se buscar a satisfação do credor no patrimônio individual dos sócios.

Assim, através dos arrestos de votos acima extraídos e dos Enunciados nº 46[8] e 282[9] das Jornadas de Direito Civil, uma conclusão: os requisitos para perda da autonomia patrimonial de uma pessoa jurídica são:

a) Encerramento irregular das atividades da empresa;

b) Desvio de finalidade social ou confusão patrimonial;

O atual posicionamento da doutrina e jurisprudência deriva de extenso lapso temporal, em vias de preservar a segurança jurídica, sem destinar um grave retrocesso ao instituto da autonomia patrimonial da pessoa jurídica e sua desconsideração de personalidade. Contudo, é tempo de superação destes precedentes.

No tocante a instauração do incidente de Desconsideração da Personalidade jurídica, Luis Felipe Salomão esclarece que “Se a insolvência não é pressuposto para decretação da desconsideração da personalidade jurídica, não pode ser considerada, por óbvio, pressuposto de instauração do incidente ou condição de seu regular processamento.”.[10].

O Direito vive tempos de empirismo, de decisões baseadas em dados, com a valorização da experiência obtida através dos fatos. Luis Roberto Barroso solicitou à Coordenadoria de Gestão da Informação do STJ, a respeito dos pedidos da defesa concedidos em Recursos Especiais (REsp) e Agravos em Recursos Especiais (AREsp) criminais no STJ, proferidos pelas 5ª e 6ª turmas do STJ no período de setembro de 2015 a agosto de 2017 (STJ, 2018).[11] O motivo do pedido da pesquisa solicitada pelo Ministro Luis Roberto Barroso restou claro após seu voto no julgamento do HC nº 152.752[12], onde, nas palavras daquele julgador (BARROSO, 2018):[13]

“A história é uma marcha contínua na direção do bem e ela nem sempre é linear (...) Meu último capítulo chama-se “O Direito e a Justiça baseado em evidências” (...) mas há um giro que nós ainda não conseguimos efetuar inteiramente por ideias antigas e arreigadas, que é um giro empírico pragmático, em que é preciso (...) que é uma característica brasileira (...) que é um mundo de retórica vazia, alheio aos fatos,(...) portanto, o empirismo significa a valorização da experiência, dos fatos  (...) portando você pode pensar em soluções com base em dados (...) portanto, eu tomei o cuidado de trazer alguns número (...) segundo pesquisa desenvolvida pela Coordenadoria de Gestão da Informação do Superior Tribunal de Justiça, sob a coordenação do digníssimo ministro Rogerio Schietti, os números em relação aos recursos especiais no superior tribunal de justiça também infirmam a necessidade da mudança de jurisprudência”.

Os resultados da pesquisa realizada pela Coordenadoria de Gestão da Informação do STJ[14], a respeito dos pedidos da defesa concedidos em REsp e AREsp criminais no STJ, deixam clara a intenção científica do Ministro Luis Roberto Barroso, mais do que dados empíricos, trouxe um diagnóstico de nossa época a respeito dos julgamentos realizados pelo STJ, que, por sua vez, em um momento futuro, poderá apresentar novos dados, um novo estado de coisa, em outras palavras: a referida pesquisa denota uma variante histórica estatística externa ao julgamento.

Desta forma, há outra conclusão: dados empíricos são causas de distinguish entre o caso sob judice e seu paragonado na superação de precedentes judicias.

Se o atual entendimento zela pela autonomia do patrimônio da pessoa jurídica, deve-se observar, através de dados, se esta autonomia tem lastro científico. Pois bem: atualmente, o Brasil está emergido em uma crise financeira, mais ainda o Estado do Rio de janeiro, segundo pesquisa do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) a pedido do Clube de Diretores Lojistas do Rio de Janeiro (CDL Rio), foi registrado um crescimento de 0,4% na inadimplência do comércio lojista da capital fluminense, em outubro passado, em relação a igual mês de 2016. Esse foi o menor índice do ano. Já as dívidas quitadas e as consultas diminuíram 1,4% e 8,4%, respectivamente, também em relação a outubro do ano passado.[15]

Quanto as pessoas jurídicas, segundo o indicador de inadimplência de pessoas jurídicas SPC Brasil e CNDL (dados referentes a jan. 2018), a exemplo, na região sudeste houve um aumento de 9,47% de pessoas jurídicas inadimplentes e de 8,04% de dívidas de pessoas jurídicas em comparação com janeiro de 2017, segundo esta mesma pesquisa, apesar de 3,80% das empresas saírem do cadastro de negativação através do pagamento de dívidas, o número de novos CNPS inscritos superou os adimplentes.[16]

Os dados confirmam: é necessário a superação dos precedentes e atuais entendimentos a respeito da desconsideração da personalidade jurídica. O aumento numeroso de devedores, pessoa jurídicas, supera a atual jurisprudência, não há mais uma segurança jurídica da autonomia empresarial, e sim uma insegurança jurídica dos titulares do crédito, num cenário, onde, pessoas jurídicas aumentam sua inadimplência, encerram suas atividades de forma irregular, sem que isso, à luz dos tribunais, signifique a responsabilidade de seus sócios ou representantes legais.

 

 

Notas e Referências

[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal (STF). Tribunal Pleno. Habeas Corpus nº 152.752/PR. Relator (a): Ministro Edson Fachin. Brasília, DF. 05 abr. 2018. Diário de Justiça Eletrônico n. 65, abr. 2018. 

[2] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, 6ª Ed. São Paulo/SP, Saraiva, 2003. V. 2, pp. 35/37.

[4]  BOEIRA, Alex Perozzo. A Desconsideração da Personalidade Jurídica Noções Gerais e Questões Controvertidas à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. Revista da AGU [S.l.], set. 2017. ISSN 2525-328X. Disponível em: <https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/174>. Acesso em: 08 maio 2018. doi:https://doi.org/10.25109/2525-328X.v.10.n.27.2011.174.

[5] Referimo-nos a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, a exemplo do que ocorrer art. 28, caput, do CDC, onde o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[6] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (STJ), EREsp 1306553/SC, Segunda Seção, Relator (a): Min. Maria Isabel Gallotti, Brasília, DF, 10 dez. 2014, publicado no DJe 12 dez. 2014.

[7] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (STJ), REsp n. 1.259.066/SP, Relator (a): Min. Nancy Andrighi, Brasília/DF, Publicado no DJe 28 jun. 2012.

[8] Enunciado 146: Art. 50: Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial). (Este Enunciado não prejudica o Enunciado n; 7)

[9] Enunciado 282: Art. 50: O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica.

[10]BRASIL, Superior Tribunal de Justiça (STJ), REsp nº 1729554/SP, Quarta Turma, Relator (a): Min. Luis Felipe Salomão, Brasília, DF, 03 mai. 2018. 

[11] STJ.JUS.BR. Coordenadoria de Gestão da Informação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Pedidos da Defesa Concedidos em Recursos Criminais. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/pesquisa_recursos.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2018.

[12] BRASIL, Supremo Tribunal Federal (STF). Tribunal Pleno. Habeas Corpus nº 152.752/PR. Relator (a): Ministro Edson Fachin. Brasília, DF. 05 abr. 2018. Diário de Justiça Eletrônico n. 65, abr. 2018. 

[13] YOUTUBE.COM/STF. Pleno - Negado habeas corpus preventivo ao ex-presidente Lula (2/3). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M2MrkZVpmBg>. Acesso em: 24 abr. 2018.

[14] STJ.JUS.BR. Coordenadoria de Gestão da Informação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Pedidos da Defesa Concedidos em Recursos Criminais. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/pesquisa_recursos.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2018

[15] AGENCIABRASIL.EBC.COM.BR. Inadimplência no comércio do Rio cresceu 0,4% em outubro. Disponível em:  http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-11/inadimplencia-no-comercio-do-rio-cresceu-04-em-outubro. Acesso 08 mai. 2018.

[16] SPS BRASIL, CNDL, Indicador de inadimplência de pessoas jurídicas SPC. Jan. 2018. Disponível em: https://www.spcbrasil.org.br/wpimprensa/.../Análise-Inadimplência-PJ-_-ago-2016.pdf. Acesso em 08 mai. 2018

 

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