O Direito como boas e malas artes - Por Paulo Ferreira da Cunha

19/10/2017

Proferi recentemente (dia 12 de outubro), no V Colóquio Jushumanista Internacional, em Portugal, uma conferência a que dei o título: Direito, Boas e Malas Artes na Sociedade da Informação. Versou a palestra sobre as relações entre Direito e bons e maus usos e interpretações das Artes, sobretudo literárias e plásticas.

Mas (tal como sumariamente indiquei nesse ensejo) há também uma dimensão do Direito, ele mesmo, como Arte. E pode também entender-se a realidade jurídica por essse prisma: divindindo Direito de Boas e Malas Artes. É sobre isso que deixarei aqui hoje um pequeno apontamento.

Em si mesmo, o Direito é essencialmente uma Arte (a que se acrescentam aspetos científicos e técnicos). E está sujeito aos bons e mais usos das artes: Pode haver nele Boas e Malas Artes. Nele mesmo.

Creio sinceramente que o Direito é como aquela adivinha romana em que o Senhor diz ao escravo, certamente um sábio grego submetido, para ir ao mercado e trazer-lhe a melhor e a pior coisa que encontrasse. Ele trouxe-lhe língua, porque ela é o melhor e o pior que o Homem tem. Embora não trouxesse, obviamente, línguas humanas mas animais...

Poderia ter trazido, não da feira, mas do mercado dos conceitos e das ideias, o Direito: ele é, na verdade, do melhor e do pior que a Humanidade inventou.

Boas Artes: Há Direito que liberta, renova, dá e faz Justiça, exalta, faz crer na Natureza Humana. Malas Artes: e há aplicação do direito (agora com minúscula) que oprime, envelhece, denega Justiça e faz injustiça, deprime e provoca a descrença nas Pessoas e no seu Futuro.

Um é um ideal por que muitos lutam e dão as vidas, outro é uma forma de força, de vaidade ou de negócio pela qual se ganham vidas de uns e se fazem perder as de outros. Pelo Direito se redimiram pessoas e povos; com o mero álibi do direito (ignorada a Justiça) se perderam gentes e nações. Como dizia Santo Agostinho, 

“Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt nisi parva regna?” 

Há coisas que nem se traduzem...

Glosando o Professor de Brasília Dr. Inocêncio M. Coelho, há estudantes que terão ido  para o curso de Direito porque julgavam ser o único que permitiria ser rico sem saber matemática, e há outros, como aquela moça dos arredores de Milão que um dia respondeu ao Professor Luigi Lombardi Vallauri, na primeira aula do curso, como quem diz “presente” na parada de uma trincheira: “Estamos aqui para fazer mais Justiça no mundo”. Dizem que eu gosto de citar esta frase e é verdade: porque só ele resume o que os Juristas devem fazer. O resto pode ser muito bonito ou muito prático, mas não sintetiza a nossa função no seu dever-ser mais profundo e mais alto.

Entre o ideal e o material, com todas as suas subtilezas e por vezes hipocrisias vai um abismo... As boas artes são as armas de justiça, é a luta pela atribuição a cada um do que é seu, as malas artes são os mil e um esquemas, enleios, subtilezas, palavreados para levar água ao moinho próprio ou ao de qualquer causa, apenas pro domo, sem sequer pensar nessa coisa “filosófica”, imprestável e incómoda que é a Justiça.

“Que Justiça? Eu só conheço o Código” (hoje nem isso por vezes, apenas um voluntarismo de poder vertido na técnica jurídica, simples forma sem fundo ou sem o fundo correto).... Como antes o Reitor da Sorbonne, Lyard,  terá dito algo como: “eu não sei o que é o Direito Civil, só conheço o código Napoleão”.

Na verdade, nem o Código. Estamos num tempo em que o próprio desrespeito pelas normas, o torcer das mesmas, a começar pelas Constituições, está a converter de novo muitos juristas a um moderado legalismo. Esperemos que seja moderado, porque também conhecemos os excessos da dura lex sed lex.

Imaginem o paradoxo! Ao menos, que se cumpra a Lei. E por vezes nem isso se cumpre. Malas artes estão acima da lei: tanto a invocam como a desprezam, dependendo apenas do interesse próprio. O mundo, assim, perde sentido... E a Justiça perde aquela credibilidade social que tinha, de último reduto, de bastião, de boia de salvação. Quando acabasse já a fé nos demais poderes, o Direito, no seu conjunto, era ainda a solução. Era ainda, ao menos a esperança.

Se os povos perdem esperança no Direito, em que vão acreditar? As possibilidades da guerra de todos contra todos hobbesiana, e a anomia social aumentam. O Direito é tradutor e mediador universal. Se deixa de traduzir e de mediar, se toma o partido de uns ou de outros, ou se é insondável como o capricho de uma ventosa decisão, deixará de o ser. E não se vê no horizonte quem possa ocupar o lugar do Direito.

 

Com boas ou malas artes, a verdade é que a própria existência do Direito ainda é uma certa garantia. É uma espécie de grau zero contra o desconserto do mundo, a anomia, e o caos como regra, que algumas distopias nos apresentam como uma espécie de inferno na Terra: e devem ter razão.

Imagem Ilustrativa do Post: Book (Detail) - "Magdalen" (about 1567) by Titian (Pieve di Cadore 1489/90-Venice 1576) - Naples, Capodimonte Museum // Foto de: Carlo Raso // Sem alterações

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