O Direito anticorrupção brasileiro e a regulação estatal em saúde: algumas perguntas de pesquisa

14/08/2018

O direito em um Estado democrático é uma ciência social aplicada e sob a ótica funcionalista deve impactar a sociedade e realizar diferentes objetivos, dentre eles, a promoção da cidadania integral. Na pós-modernidade um dos problemas para a agenda global de consolidação da cidadania em sua inteireza é a corrupção.

Emerge assim a necessidade do olhar jurídico sobre o tema. No plano da técnica, improbidade administrativa, corrupção e má gestão são violações de direitos fundamentais distintas entre si.

Neste trabalho buscamos dispor cada um desses fenômenos em momento próprio e questionar se o direito anticorrupção oferece instrumentos para informar e viabilizar melhores práticas de regulação em saúde.

A temática da corrupção merece disciplina no plano do Direito Internacional e também no sistema interamericano de Direitos Humanos. A Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos possuem regramentos e realizam estudos em diversos países sobre os níveis de corrupção praticados nas ordens soberanas internas, contudo, sem a fixação de um conceito internacional de corrupção.

Por outra banda, a organização não governamental, Transparência Internacional, estabeleceu uma definição, qual seja, “ corrupção é o uso indevido das atribuições públicas para obter benefícios privados.” Tal conceituação, com a devida vênia, é questionável à luz dos nossos princípios constitucionais penais, pois, sofre de amplidão e ambiguidade, permitindo a consunção de atos irrelevantes até as mais sofisticadas armadilhas em detrimento da vontade do povo e do interesse da administração pública.

Podemos afirmar que, à luz do senso comum, a corrupção é um dos mais graves comportamentos que o agente público pode incorrer. Em uma análise técnica, consideramos que o ato de corrupção é um “plus” em relação à improbidade administrativa, que, por sua vez, está contida no gênero má gestão da “res” pública.

Esse singelo estudo ambiciona delinear as demarcações estabelecidas pelo direito anticorrupção brasileiro, seu quadro sancionador e as potencialidades no contexto da regulação em saúde, em essência.

 

Má gestão da coisa pública

A má gestão está no território da ruptura com os princípios constitucionais da administração pública. Todo administrador público está investido do dever de zelo pela coisa pública e deve atuar sempre em conformidade com o bem comum, com a vontade popular. Na hipótese de um equívoco, estaremos perante um ato de má gestão.

Dois planos subjetivos dizem respeito à má gestão. O primeiro é a ineficiência, a inabilidade ou a não produção do resultado esperado pela incompetência. De outra banda, a conduta desonesta importa na falta de valores éticos dos indivíduos.

 

A improbidade administrativa

Os atos de improbidade administrativa estão disciplinados na Lei n. 8429/92 e recebem três classificações. A primeira diz respeito aos atos que importam em enriquecimento ilícito (artigo 9º), o dano ao erário praticado pelos agentes públicos incorpora a segunda espécie ( artigo 10) e, por derradeiro, temos as violações aos princípios da administração pública do artigo 11. A improbidade administrativa e suas espécies alcançam hipóteses de transgressão de princípios e regras. Em síntese, para que a ilicitude dos atos dos agentes públicos seja levada a termo, princípios e regras explícita e implicitamente serão objeto de análise do profissional ou pesquisador.

Nessa esteira, cabe anotar que a ação desonesta e a ineficiência do agente público muito lesivas serão avaliadas como atos da espécie improbidade administrativa. Nessa esteira, na eventual condenação do agente público com fulcro na Lei n. 8429/92, as consequências jurídicas serão de índole civil, baseadas na inteligência do artigo 12 do citado diploma legal: multa civil, suspensão de direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento aos cofres públicos.

A improbidade administrativa nem sempre corresponderá a um ato de corrupção. A configuração da conduta corrupta exige a perfeita consunção com um tipo penal incriminador que tutela a administração pública, uma vez que a legalidade estrita é um princípio constitucional penal e mais, o próprio agente ou terceiro deverá ter recebido benefício ( mesmo que potencialmente mínimo) para que a improbidade seja designada, juridicamente, como corrupção.

No plano fático as condenações de improbidade administrativa são em maior número do que as reprimendas de atos de corrupção na justiça criminal.

 

A corrupção e o seu tratamento penal

A configuração do crime de corrupção segundo o nosso ordenamento jurídico e na visão dos Tribunais é tarefa de fôlego e de tormentosa caracterização. O tipo penal da corrupção exige que o fato além de corresponder a um cenário de improbidade administrativa, simultaneamente, seja enquadrado em um tipo penal que ameace ou agrida o bem jurídico administração pública. A escolha do legislador brasileiro para a tutela da administração pública é difusa. Há dispositivos no Código Penal ( artigos 312, 313, 316, 317, 318, 319, 321 e 337-A, B e C) e na legislação penal extravagante ( Lei de Licitações, Decreto-lei n. 201/67, dentre outros diplomas legais).

A corrupção ganha corpo quando o cenário da improbidade ganha escala de desonestidade e ineficiência. Nessa esteira, a corrupção é um ato de improbidade administrativa maculada pelo crime. E se houve um crime, insuficientes serão as sanções de natureza ética, administrativa ou na esfera civil. O agente público que pratica ato de corrupção pode sim ser condenado à pena privativa de liberdade.

O ato criminoso da corrupção é restrito tanto objetiva quanto subjetivamente, uma vez que os tipos incriminadores do capítulo da administração pública tutelam o bem da “res publica” , o interesse público e responsabilizam apenas pessoas naturais.

 

O direito anticorrupção brasileiro pode contribuir para uma regulação em saúde mais democrática e participativa? Uma pergunta de pesquisa

Que o direito brasileiro incorporou a agenda global no quesito combate à corrupção, conseguimos demonstrar até o momento, contudo, emerge a nossa primeira pergunta de pesquisa: o mosaico jurídico nacional pode servir de instrumental para um melhor desempenho estatal no fazer regulatório e, por via de consequência, um exercício do direito à saúde de natureza democrática e participativa?

Na pós-modernidade precisamos, constantemente, construir e desconstruir conceitos e práticas em matéria de cidadania e direitos. Estes foram conquistados por meio de muitas lutas, muitos embates contra as nossas formas históricas de discriminação e produção constante de desigualdade social.

O direito à saúde no Brasil é extremamente regulado no plano estatal. Desde o texto do constituinte originário aos atos administrativos hodiernos das autoridades municipais nos rincões do nosso território, temos uma série de teorias e políticas públicas para a concretização desse direito social de segunda dimensão.

Ao lado de teorias jurídicas tradicionais que informam o direito à saúde, apresentamos aqui a contribuição do direito anticorrupção com o propósito de estudar a regulação e o próprio exercício dessa prerrogativa.

Partimos do princípio que o direito anticorrupção estaria centrado na tutela da ética e da moralidade em nossas relações com a Administração Pública, logo, surge a necessidade de perquirir se os atos do agente público em matéria de regulação em saúde é mero ato de má gestão, uma transgressão ética não atingida por sanção administrativa, civil ou penal ou se o cenário é de ilícito de grande monta e que merece ser severamente qualificada e punida.

Trazemos também para o debate a metateoria do direito fraterno, qual seja, a perspectiva dessa construção cultural que possibilita a lente jurídica de ver e vivenciar o estado de fraternidade em todas as interações sociais e na participação cidadã nos temas da Administração Pública.

Nessa concepção fraterna de direito, necessitamos dimensionar a nós e aos outros como irmãos, contudo, sem sentimentos confessionais, mas sim na esfera ética. O direito fraterno permite que a sociedade, extremamente complexa e composta por pessoas multifacetadas, construa e desconstrua noções, limites e fronteiras através da redistribuição e do reconhecimento de si e do outro.

O direito fraterno aliado ao sistema anticorrupção pode contribuir para a regulação estatal de saúde pois serve de contraponto das práticas de desvirtuamento de acesso ao direito, por exemplo, no combate ao “compadrio” e distribuição de favores e benesses políticas. A fraternidade no direito minimiza a ingerência do Poder Judiciário nos rumos da política pública de saúde desenhada pelo Legislativo e concretizada pelo Executivo e particulares em colaboração com a Administração Pública.

Entretanto, afirmar que o direito pode ser visto sob o signo da fraternidade não reduz a nossa ciência à uma espécie da moral. Direito e moral são campos teóricos e práticos distintos. Observamos sim separação, a despeito da origem comum.

O direito anticorrupção assim como a metateoria do direito fraterno possuem aspectos morais, uma vez que defendem uma esfera mais densa de moralidade no manejo do bem comum, da vontade do povo, entretanto, há um espaço da moral e dos erros na condução dos negócios estatais que exige o respeito a certo grau de falibilidade, de tolerância à natureza humana. É, no mínimo, injusto aproximar qualquer ínfimo ato de má gestão com os tipos reprimidos pela Lei de Improbidade Administrativa e da Lei Anticorrupção, objetos de sanções nas três esferas de responsabilidade: a administrativa, a cívil e a penal.

Tanto o direito quanto a organização estatal estão em processo acelerado de transformação, não há mais como sustentar antigas teorias e práticas sobre o exercício dos direitos sociais, da gestão do bem comum e do dever regulatório do Estado no plano interno e em nível transnacional.

 

Conclusão: algumas perguntas de pesquisa

Neste texto, procuramos focar o direito anticorrupção brasileiro como contributo à efetivação do direito à saúde no plano da regulação estatal, incorporando conceitos de má gestão, de improbidade administrativa e de corrupção e com isso vislumbramos que temos novas ferramentas teóricas e práticas para realizar concretamente o direito à saúde mais democrático e participativo.

O questionamento sobre a compatibilidade do direito anticorrupção e a regulação em saúde e o seu potencial transformador em termos de efetivação do direito fundamental à saúde para todos os cidadãos, pois é incabível a mitigação da cidadania, passará, necessariamente, pela apreensão dos parâmetros desse novo ramo da ciência jurídica assim como pela nossa forma de vivenciar a democracia participativa em uma sociedade com muitas leis e atos normativos e impactada pela globalização. Quais os fundamentos para a aplicação do direito anticorrupção no orçamento do Sistema Único de Saúde? Quais as relações entre os organismos internacionais, a soberania e os conglomerados da indústria farmacêutica quando o tema é o combate à corrupção? Como os agentes públicos interpretam a globalização da agenda jurídica e o seu impacto na legislação doméstica? Que democracia participativa ética queremos?

O questionamento sobre a capacidade do direito anticorrupção de viabilizar mais justiça no exercício do dever do agente público com o fito de efetivar o direito fundamental à saúde, de nossa parte, ainda não possui uma resposta pronta, entretanto, sustentamos que passa necessariamente pelas escolhas que fazemos ao lidar com as noções tradicionais do direito( na academia e em nossa prática profissional)  e a sua inadequação diante das emergências da contemporaneidade, com destaque para novas espécies de exclusão ( a digital, por exemplo).

 

 

Notas e Referências

BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites.Título original: II Malato Immaginato; tradução Mônica Gonçalves.1ª ed.-São Paulo: Bamboo Editorial, 2014.284p.

BUERGUENTHAL, Thomas. Las Convenciones Europea y Americana: algumas similitudes y diferencias. La Convención Americana sobre Derechos Humanos. Washington. Secretaria General de la OAE, 1980, p.182.

SALAMA, Bruno Meyerhof, Líderes improváveis: a batalha dos países em desenvolvimento pelo acesso a medicamentos patenteados/Bruno Meyerhof Salama, Daniel Benoliel; prefácios de Sérgio Lazzarini e Ronaldo Lemos.- Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.196 p.

PEREIRA, Alexandre Araujo Pereira e SOARES, Marcos José Porto, Distinção entre corrupção, improbidade administrativa e a má gestão da coisa pública. Revista dos Tribunais 2015 RT VOL.959 (SETEMBRO 2015).
          

PIOVESAN, Flavia. Código de Direito Internacional dos Direitos Humanos Anotado.  São Paulo. DPJ. 2008.

 

 

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