O Direito Administrativo como conceito interpretativo: Cidadania e efetividade no Estado Democrático de Direito

31/01/2016

Por Leonel Pires Ohlweiler - 31/01/2016

Introdução

O filósofo Martin Heidegger, em sua obra Holzwege, assim explicitou a escolha do título:

Holz[madeira, lenha] é um nome antigo para Wald[floresta]. Na floresta[Holz] há caminhos que, o mais das vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não-trilhado. Chamam-se caminhos de floresta[Holzwege]. Cada um segue separado, mas na mesma floresta[Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Lenhadores e guardas florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta.” (HEIDEGGER, 2002, p. 3).

A presente investigação pretende trilhar caminhos, por certo, muitos dos quais não costumeiramente percorridos por aqueles que lidam com o Direito Administrativo, mas nem por isso, tais sendas não existem, tão-somente perderam-se no não trilhado. O Direito Administrativo, conforme concepção mais aceita pela dogmática jurídica, desvelou-se no seu caminhar como modo-de-ser da Administração Pública fundado nos princípios do Estado Liberal, assumindo capital importância a Revolução Francesa. O valor segurança jurídica, com efeito, apresentou-se em elemento de abertura dos entes administrativos, cunhando as pautas de compreensão de variados institutos. No entanto, as complexidades do modelo de Estado Social e do horizonte de sentido do Estado Democrático de Direito não tardaram em evidenciar as insuficiências do projeto que estava na sua base, pois cada vez mais se exigia a construção de elementos normativos capazes de dar conta dos novos fenômenos administrativos.

Muitas das dificuldades enfrentadas pelo Direito Administrativo resultam de alguns princípios epocais que alimentam o modo de ser deste ramo do direito, em especial aqueles construídos por ocasião do Estado Moderno e que foram coroados com o movimento revolucionário de 1789. Alguns, inclusive, por mais paradoxal que possa ser foram releituras do antigo regime. É possível dizer, como será visto, haver uma inexorável necessidade de compreensão do Direito Administrativo em bases hermenêuticas, sendo que o presente estudo pretende, exatamente, (re)significar algumas questões importantes, colocando em pauta temas por vezes esquecidos.

O fio condutor desta breve pesquisa é que o Direito Administrativo é um conceito interpretativo, na esteira do contributo de Ronald Dworkin para a teoria do direito. Tal assertiva pretende evidenciar a necessidade de abrir a compreensão do fenômeno jurídico-administrativo para outros âmbitos, como a história institucional construída intersubjetivamente pela comunidade política, destacando a importância de evitar decisões arbitrárias. Trata-se de trabalho que precisa evidenciar as bases de compreensão das relações entre cidadãos e Administração Pública construídas do dogmatismo, o que será examinado na primeira parte desta investigação. A importância de questionar a historicidade do Direito Administrativo, considerando o trabalho filosófico de um dos grandes filósofos do século XX, Hans-Georg Gadamer, será destacada na segunda parte, pois não há como compreender fora das condições de possibilidade que nos chegam da tradição.

Cada vez mais é crucial explicitar as pré-compreensões que alimentam o imaginário dos operadores do Direito, no tratamento dispensado aos diversos institutos jurídico-administrativos. Adota-se como premissa de estudo a seguinte assertiva: se há grandes dificuldades em materializar um Direito Administrativo Constitucional, significado pelo conjunto de direitos e garantias fundamentais, tal é fruto também da incapacidade de dar-se conta que na base de expectativas de sentido da dogmática tradicional há um paradigma liberal-individualista.

O constitucionalismo foi determinante para inserir no conjunto de limites e prerrogativas administrativas uma complexidade compreensiva para a qual as construções dogmáticas tradicionais não estavam preparadas, daí emergindo a incessante busca de novos instrumentos para aplicação do Direito. O Direito Administrativo, como conceito interpretativo, a partir da matriz teórica aqui assumida, é modo-de-ser constitucional, quer dizer, não depende de um fundamento último(entificado), mas do modo como estrutura-se a compreensão enquanto determinada por um conjunto de práticas sociais

O questionamento hermenêutico possibilita explicitar a relação circular que predomina no conhecimento, bem como vislumbrar a dimensão argumentativa dos institutos jurídicos, exigindo uma atitude interpretativa dos conceitos e princípios que constituem o propósito normativo do Direito. No âmbito do Direito Administrativo, atendo-se ao tema desta breve pesquisa, é importante repensar a questão do sentido, compreendendo-se as relações entre cidadãos e a Administração Pública no horizonte de sentido da proximidade com a práxis humana, como existência, como faticidade. A relevância da concepção hermenêutica, deste modo, reside em criar as condições de possibilidade para o desvelamento da consciência histórica do Direito Administrativo, analisando a linguagem dogmática no nível de sua historicidade. Este suporte teórico é primordial para compreender que o método fenomenológico “não se desliga da existência concreta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada.” (STEIN, 1979, p.88).  Aqui reside o caráter circular da compreensão hermenêutica e, portanto, quando se questiona o sentido dos entes jurídico-administrativo, é importante dar-se conta de que o sentido somente se desvela sob o ente num retorno sobre a própria compreensão. Neste aspecto, é lapidar a frase de Martin Heidegger, para quem todo o acesso aos entes intramundanos funda-se, ontologicamente, na constituição fundamental do Dasein e este, por sua vez, encontra a sua constituição ontológica mais originária no Cuidado (HEIDEGGER, p.92).

Como refere Ernildo Stein, o método somente pode ser determinado a partir da coisa mesma e “a escada, para penetrar nas estruturas existenciais do ser-aí é manejada pelo próprio ser-aí e não pode ser preparada fora para depois penetrar no objeto.” (STEIN, 1979, p. 92).  Tal entendimento é crucial para entender que o Direito Administrativo não é mera questão de fato ou apenas um conjunto de textos normativos, pois sua aplicação ao caso exige o debate sobre um propósito que é imposto a uma prática, a um instituto jurídico, especialmente a partir do sentido constitucional construído em uma dada comunidade política. A questão da relação complexa entre Constituição e Direito Administrativo é tratada na última parte da pesquisa, cujos resultados aqui apresentados decorrem de projeto de pesquisa desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Unilasalle, com a colaboração dos colegas e alunos do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Administração Pública e Sociedade.

1. Dogmatismo Jurídico e a Influência das Ideias Racionalistas para a Construção do Direito Administrativo.

1.1. Estado Moderno, Razão e Administração Pública.

O Estado Moderno, surgido a partir do final do século XV, início do século XVI, foi corolário do próprio imaginário racionalista do período. Descabe aqui estabelecer a discussão sobre a ocorrência efetiva de descontinuidade ou não entre esta forma de organização político-social e aquela do período medieval[1]. No entanto, não se pode desconhecer que as transformações ocorridas são fruto da insatisfação com o mundo medieval, assumindo crucial importância o surgimento do humanismo como nova mentalidade, considerando a incapacidade da Igreja em fornecer elementos de organização para um mundo tomado por problemas de ordem social e econômica (CALVO GARCIA, 1994, p. 32). Assim, a razão surge como grande modus operandi para garantir as demandas capitalistas da época. Como refere Manuel Calvo Garcia, a razão passa a ser o fio condutor da progressiva secularização do pensamento prático e a segurança, a luz que guia e ilumina este processo (CALVO GARCIA, 1994, p.32).

Na gênese do Estado Moderno está a necessidade de racionalizar o exercício do poder, aliada à crescente exigência de segurança, possibilitando um agir calculado e previsível. Além da concentração de poder, fundada no critério territorial, buscava-se a criação de um aparato administrativo, dotando o Poder Público de diversas prerrogativas para alcançar finalidades específicas. Dando continuidade ao processo de despatrimonialização do poder, determinante para o enfraquecimento do feudalismo, no Estado Moderno ocorreu a despersonalização deste poder, passando a sua titularidade para o Estado.

Portanto, questionar a modernidade, necessariamente, envolve dar-se conta das concepções culturais que engendraram a ideia de homem moderno, influenciando a estruturação do conhecimento jurídico. Não se pode, por exemplo, desconhecer a importância do renascimento, deixando marcas profundas nos planos político e social, como o estabelecimento de grandes Estados absolutistas. O período da ilustração foi primordial para a ascensão da classe burguesa e que forjou um direito capaz de garantir a liberdade e a propriedade. O Direito natural nesta época moderna desempenhou um papel de combatividade aos abusos do poder e fundamentou a necessidade de uma racionalização.

O renascimento proporcionou ao homem um senso comum ocupado pela razão, acreditando-se na possibilidade da independência absoluta da razão humana, objetivando-se, nas Ciências Jurídicas, a formulação de preceitos jurídicos detalhadamente. O locus privilegiado para a concretização do Direito Natural seria o estado de natureza, permeado pela teoria do nominalismo. Junto com o racionalismo típico da época o objetivo da racionalidade adquiriu os ares de um fanatismo, calcado sempre na metodologia dedutivista (CALVO GARCIA, 1994, p.33). Com efeito, os sistemas deveriam ser elaborados com base em tais postulados e sistematizar em detalhes as instituições jurídicas, pois nisto residiria o caráter de científico. Aqui são extremamente valiosas as críticas levadas a cabo por Martin Heidegger, relativamente ao modo-de-ser da metafísica, determinantes para a compreensão dos fenômenos jurídicos de modo a-histórico e abstracionista. Mais uma vez, sempre é válido repetir a seguinte passagem do filósofo da Floresta Negra: “a metafísica constitui-se no pensamento que não soube manter-se no nível da transcendência constitutiva do Dasein.” (HEIDEGGER, 1995)[2]. Portanto, pode-se dizer, o pensamento jurídico moderno, com relação à pergunta pelo fundamento, manteve-se no âmbito restrito da lógica formal.

É claro, é preciso compreender, a ânsia de um pensamento racional, em última análise, tinha por objetivo a substituição de uma forma de pensar medieval. Na base do pensamento renascentista encontrava-se a tentativa de resgatar a dimensão do homem a partir da natureza, o que, comparado com as anteriores formulações teocêntricas, representou um progresso sensível. No entendimento de Juan Ramón Capella “durante algum tempo o cometa da razão calculista que promete um mundo feliz recorrerá ao firmamento das ideias: um mundo crescentemente próspero e iluminado, um mundo de progresso (...) um mundo que se supõe organizado racionalmente.” (CAPELLA, 1997, p.103)[3]. Como decorrência, formar-se-á um conjunto de conceitos secularizados como soberania, cidadania, revolução, etc. A concepção de ciência, como já mencionado, valoriza a abstração, não desenvolvendo a forma de pensar calcada em coisas particulares.

O conhecimento poderia adquirir este status somente quando teorizasse com categorias gerais, o que, em última análise, importava adotar um determinado ponto de vista para estabelecer explicações, bem como criar uma seletividade da realidade. (CAPELLA, 1997, P. 104)[4]. No entanto, um dos graves problemas gerados pela vivência moderna para a construção das ciências, foi aquilo que Hans-Georg Gadamer denominou ao longo de toda sua obra: a recusa dos pré-juízos. Para este filósofo “desde logo é certo que tanto o movimento da ilustração na Idade Moderna, como sua consciência científica repousam sobre a negação dos pré-juízos, e isto implica não aceitar também a mera apelação à autoridade.” (GADAMER, 2002, p. 60). Assim, a Ciência Jurídica construída a partir do edifício de experiências da modernidade, no intuito de dotar-se de objetividade, deixou de questionar os próprios juízos prévios determinantes de toda a compreensão dos entes jurídicos.

Dentro desta tendência para a racionalização, deve ser feito o exame do Direito Administrativo, não se podendo olvidar, no período inicial do Estado moderno houve a consolidação do chamado poder real, com as teorizações absolutistas. O rei seria a fonte de todo o poder, desencadeando a reação da burguesia e, por consequência, a elaboração de um conjunto de ideias antiabsolutistas. É claro, a sua estruturação não ocorreu abruptamente, pois durante algum tempo houve a convivência entre uma burocracia do Estado, característica desta época, e alguns resquícios dos poderes estamentais. Logo, a estrutura administrativa do Estado é pensada a partir de um modelo que busca concentrar o conjunto de atividades e poderes, interferindo em diversos setores da vida social. Segundo menciona António Francisco de Sousa, o absolutismo, como teorização política, assume a característica de reação às circunstâncias políticas de espartilhamento do poder, em decorrência das constantes guerras que marcaram o período, especialmente no século XVII (SOUSA, 1995, p.110). As tentativas de unificação dos territórios e a imposição de certa segurança exigiram a formação de exércitos, havendo neste período o aumento considerável da burocracia estatal para a manutenção destas forças de guerra, especialmente nos períodos de paz.

No entanto, se a atuação interventiva do Estado constituiu-se mesmo em exigência militar, também, a própria ideologia econômica do período proclamava a necessidade de um órgão superior, capaz de conferir segurança às relações de trocas comerciais e fomentar a produção. Trata-se da política do mercantilismo dominando a Europa, especialmente nos séculos XVI e XVII (SOUSA, 1995, p. 111), e que passou a ser o horizonte de sentido do período. A estrutura administrativa portuguesa desta época, por exemplo, fundamentalmente, caracterizava-se pela existência de conselhos, ora com competência funcional, ora com competência para atuar sobre um determinado território, cuja função basilar era o assessoramento do rei, além da atuação jurisdicional como tribunal de apelação. No âmbito das organizações locais preponderava a confusão entre atividades administrativas e jurisdicionais, sendo que a administração central portuguesa sofre importante reestruturação em 1736 com a criação de Secretarias de Estado, ocupadas por um político nomeado pelo rei e responsável por uma parcela das funções administrativas do Estado (SOUSA, 1995, p. 115).

As práticas políticas do período absolutista estavam ligadas com as teorizações da época com relação à soberania e a grande capacidade de poderes conferida ao rei. Mas, ao menos no plano formal, deve ser mencionada a existência de um conjunto de limitações, como a subordinação ao Direito Natural, ao Direito Divino e ao Direito das Gentes. Outrossim, alude António Francisco de Sousa,

o rei absoluto estava limitado pelo princípio da inalienabilidade dos bens e direitos do Reino e pelas ‘leis fundamentais’ (reconhecidas como tais especialmente em França). Finalmente, constituíam também limites ao poder absoluto do Rei as resoluções privadas dos súbditos, especialmente as resultantes da propriedade e dos contratos, conhecidas geralmente por ‘direitos adquiridos’ (iura quaesita, wohlerworbene Rechete). (SOUSA, 1995, p. 119).

A atividade de intervenção do Estado, no plano da teoria jurídica, encontrava-se relacionado com o conceito de polícia e que, inicialmente, englobou toda a atividade da Administração Pública, funcionalizada pela ideia de garantir a boa ordem da cidade. Tal concepção, no entanto, foi paulatinamente sendo reduzida, deixando de abarcar, por exemplo, as questões de justiça, como decorrência da criação dos tribunais, além dos assuntos militares, política externa e questões financeiras. Uma das notas peculiares deste regime administrativo foi a ausência da concepção de contraditório em matéria de atuação dos órgãos administrativos.

Outro aspecto a ser salientado, como elemento que contribuiu para a estrutura racional da administração, obviamente, dentro dos parâmetros da época, foi o desenvolvimento de um ramo do Direito especialmente pensado para questionar os assuntos do Estado, o Direito Público e que, muito embora haja alguma divergência teórica com relação ao locus do seu surgimento, Alemanha, Inglaterra ou França, foram extremamente importantes para a época as teorizações de Thomas Hobbes, John Locke e Barão de la Brède et de Montesquieu(SOUSA, 1995, p. 60)[5]. Tais modos de compreensão do fenômeno jurídico foram cruciais para a caminhada de construção do agir racional no âmbito das relações com a Administração Pública, como a seguir será examinado. É claro, a postura de lançar perguntas capazes de abrir os horizontes de sentido das teorizações da época não pretende cair na fé ingênua de partir-se de uma espécie de grau zero da compreensão, até porque, a pergunta é sempre a resposta para outra pergunta previamente dada (GADAMER, 1993).

1.2. Aportes do pensamento exegético do Direito Administrativo Francês.

O Direito Administrativo Francês contribuiu sobremaneira para a teorização racional-dogmática do regime da Administração Pública, absorvendo as concepções até então existentes, em especial oriundas do jusprivatismo sobre o caráter normativo dos princípios jurídicos. Aliás, a ideia de regime administrativo está diretamente relacionada com a concepção de submeter o Estado, enquanto poder, ao Direito, mas, não à lei civil e sim a um conjunto de disposições que conferem a este Direito uma caracterização diferente, a fim de dar conta da pressuposta superioridade da atividade administrativa. É claro que este ideal de submeter-se ao Direito constituiu-se muito mais em pretexto para dotar a Administração de um material normativo diferenciado e capaz de legitimar sua atuação, conforme será examinado posteriormente.

A França foi o exemplo mais bem acabado de regime administrativo, exercendo papel importantíssimo o Conseil d’Etat, responsável pelo desenvolvimento do próprio Direito Administrativo, de base dogmática[6], que acabou por influenciar diversos países da Europa. Como menciona Fernando Garrido Falla o regime administrativo francês possui como características a existencia de um conjunto de normas aplicáveis à Administração que se constituem como um Direito especial, autônomo e independente do Direito comum ou civil, bem como uma jurisdição administrativa distinta e separada dos tribunais ordinários, além da noção de serviço público, pois o regime administrativo somente poderia ser aplicável às atividades que constituem serviço público. (GARRIDO FALLA, 1994, p. 81).

Não se pode olvidar, esta necessidade de sistematizar e regular o exercício da atividade da Administração Pública, também, é fruto do ideal revolucionário calcado na concepção natural-racionalista. O século XVIII institucionalizou uma nova mentalidade utópica, acreditando ser possível descobrir por meio da razão os princípios básicos de uma legislação perfeita, bem como supor que o intérprete pode chegar a concretizar hermeneuticamente esta legislação calcada em procedimentos lógico-formais. A compreensão de princípios jurídicos, por exemplo, encontrava-se permeada pela ideia de construção de princípios universais e imutáveis, inerentes à própria natureza humana, que serviriam como instrumento de limitação do poder régio, constituindo-se, em última análise, emanações de um tipo abstrato de homem[7].

A esta forma de compreender o Direito, alia-se a concepção democrática fundada na soberania nacional e que será responsável pela manutenção da autoridade da lei, ou seja, como fruto dos representantes do povo, é considerada fonte exclusiva do Direito, constituindo-se em elemento capaz de racionalizar a própria sociedade. Mas, há uma espécie de retórica embutida neste discurso, pois assim como se defendeu a submissão à lei, em contrapartida, construiu-se toda uma concepção teórica que cristalizava a fuga das decisões administrativas do controle jurisdicional, na medida em que uma Justiça Executiva era responsável pelo controle dos atos emanados da Administração.

De qualquer sorte, a lei é vislumbrada por intermédio de uma ideia abstrata, cujo sentido objetivo seria capaz, no âmbito do Direito Administrativo, de fornecer as soluções dos casos concretos surgidos em razão da atuação do Estado. Ademais, a solução adotada seria exatamente aquela previamente fixada pela legislação. No entendimento de Manuel Calvo Garcia dois são os fatores determinantes da nova ideologia lógico-dedutiva que irá caracterizar a partir deste momento o método jurídico: a matematização dos jogos de verdade e a ideia de sistema. (CALVO GARCIA, 1994, p. 40)[8].

A incorporação da forma matemática de raciocinar e construir o conhecimento influenciou o Direito, impondo como objetivo científico a necessidade de construir um sistema perfeito e capaz de atender os ideais de segurança e certeza. Os princípios jurídicos, assim como diversos institutos do Direito Administrativo, seriam pensados pela dogmática jurídica como elementos axiomáticos e conceituais de uma racionalidade formal, rompendo com o anterior paradigma autoritário do ancien régime. Tais princípios, a partir da metodologia apropriada, seriam extraídos de um conjunto legislativo perfeito, de modo a fornecer imediatamente a solução para o caso concreto.

Mais uma vez cumpre ressaltar que aqui são encontradas as raízes do método dedutivo, pois a necessidade de buscar uma decisão coerente com o sistema jurídico faz pressupor que toda decisão jurídica pode consistir na aplicação de um preceito geral e abstrato a um fato concreto[9]. Não se pode olvidar que no discurso oficial da época, o dedutivismo seria um sinal de isenção na tomada de decisões, mesmo as administrativas. A metodologia racionalista, e que tanto influenciou a formação do conjunto dos diversos institutos do Direito Administrativo, permite tornar plausíveis metodologicamente os postulados da plenitude, harmonia, universalidade e intemporalidade da lei positiva, determinando a simbiose moderna entre poder e razão. Tais formulações, no entendimento de Manoel Calvo Garcia são propícias para acolher os ideais da classe burguesa. (CALVO GARCIA, 1994, p. 60).

Com efeito, no bojo desta sistemática estava a concepção de racionalidade formal, o que foi determinante, como se verá, para as construções teóricas sobre o próprio conceito de Direito Administrativo. A exigência de tal espécie de racionalidade, por outro lado, estava ligada diretamente ao princípio da igualdade formal que consagra o novo Estado de direito, e a generalidade que possibilita superar as contingências inerentes ao casuísmo, viabilizando a exata aplicação da lei. Tal forma de concretizar o Direito estabelecia a aparência de isenção na regulação das situações típicas, bem como contribuiu para dotar o direito burguês de seu caráter ideológico, ou seja, o converteu em um sistema capaz de desmascarar a realidade social, apresentando-a como o reino juridicizado e carente de conflitos ou compromisso materiais, a instância neutra que garantiria o livre jogo das leis naturais da vida social. (CALVO GARCIA, 1994, p. 70)[10].

Fundamentado em tais postulados racionalistas, aliado ao método lógico-dedutivo[11], o Direito Administrativo é construído como um conjunto de regras especiais. No entendimento de André de Laubadère, toda a atividade da administração não está uniformemente submetida às regras especiais do Direito Administrativo, sendo a concorrência destas regras e das regras de direito privado que conduz à necessidade de delimitar seus campos de aplicação respectivos. Assim, esta demarcação constitui a questão fundamental do sistema francês e que, concernente à aplicação do Direito Administrativo, chama-se regime administrativo ou regime exorbitante de direito público. (LAUBADÈRE, 1973, p. 38). Mas, não seria apenas este o objetivo a orientar a estruturação de um regime administrativo, buscando-se, também, a construção de uma Teoria do Direito Administrativo, capaz de fornecer critérios para aplicação deste ramo do Direito, bem como delimitar a competência da jurisdição administrativa. (LAUBADÈRE, 1973, p.38). Tais objetivos, mais uma vez é importante destacar, estavam profundamente marcados por uma espécie de ideal não dito, qual seja, revestir a atuação da Administração do caráter de racionalidade e imune a eventuais controles, com grande potencialidade, desta forma, para albergar certos interesses da época. Este imaginário social influenciará decisivamente na construção dos diversos critérios para definir o Direito Administrativo.

1.3. Uma Análise Crítica dos Critérios Semânticos para Definir o Direito Administrativo: (ou) a necessária compreensão hermenêutica. 

No âmbito do modo de ser cotidiano das diversas produções dogmáticas, são encontrados variados critérios para definir o que poderia ser considerado como Direito Administrativo. De plano, já se evidencia um grande equívoco pretender erigir uma definição perfeita e acabada, não se dando conta do caráter existencial em todo o processo de compreensão. Em tal diversidade, pode-se destacar, por exemplo, o critério do serviço público, tendo como grandes expoentes Leon Duguit, Jèze e Bonnard, preponderando como elemento delimitador o instituto de serviço público. No intuito de ultrapassar a vetusta concepção até então predominante de identificar o Direito Administrativo com a ideia de pussance public, este ramo do direito seria o conjunto de regras que regula a prestação de serviços públicos pelo Estado, normatizando ainda os direitos dos usuários e deveres dos prestadores[12]. Uma das criticas que têm sido realizadas no que tange a este conceito, reside na redução do campo de incidência à prestação de serviços públicos. Não há dúvida, o Direito Administrativo estuda o tema referente aos serviços públicos, mas sem que tal possa constituir-se como o universo abarcado por sua normatização.

De outra banda, deve-se mencionar o critério do Poder Executivo[13], constituindo-se no estudo das relações entre este poder e os cidadãos, além de problematizar sua estruturação e funcionamento. Igualmente, detecta-se as insuficiências desta concepção ao reduzir o Direito Administrativo ao estudo do Poder Executivo. Nos demais poderes – Legislativo e Judiciário – também há o exercício de atividade administrativa, não sendo crível reduzir sua problematização ao primeiro.

Além destes critérios, encontra-se na dogmática administrativista uma multiplicidade de outros elementos determinantes da definição, como os critérios das relações jurídicas, teleológico, etc[14]. No entendimento de Eduardo García de Enterría, o Direito Administrativo constitui-se em “un Derecho de naturaleza estatutária, en cuanto se dirige a la regulación de las singulares especies de sujetos que se agrupan bajo el nombre de Administraciones Públicas, sustrayendo a estos sujetos singulares del Derecho común.”(GARCIA DE ENTERRÍA, 1995, p. 39). Este autor faz questão de ressaltar a importância de vislumbrar no Direito Administrativo a difícil tarefa de proceder ao equilíbrio entre privilégios e garantias, com a finalidade última de salvaguardar o interesse geral da comunidade, mas sem desconsiderar os cidadãos.  Já, no âmbito da visão de Otto Mayer (1982, p. 17 e ss.), o Direito Administrativo deveria ser compreendido como o direito relativo à Administração, o direito que lhe é aplicável, opondo-se ao direito constitucional, subsistindo como um ramo especial do direito público, dotado de um método próprio, da mesma maneira que o direito civil (MAYER, 1982, p. 17). Na órbita das preocupações de alguns administrativistas franceses, George Vedel e Pierre Delvolvé refletem a grande preocupação de construir certas concepções teóricas que ressaltem a autonomia do direito administrativo como um conjunto de regras capaz de derrogar a aplicação das leis de direito privado no que concerne à via administrativa (VEDEL e DEVOLVÉ, 1992, p. 76). Outrossim, Diogo Freitas do Amaral vislumbra o Direito Administrativo “como o ramo do direito público constituído pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização e funcionamento da Administração Pública, bem como as relações por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito no exercício da actividade administrativa de gestão pública.” (AMARAL, 1998, p. 130).

Portanto, qualquer conceito que se tenha sobre o Direito Administrativo, a partir de uma perspectiva hermenêutica, não pode deixar de vislumbrar que há sempre uma determinada pré-compreensão a ordená-lo, uma espécie de a priori fundante. Os conceitos não podem ser compreendidos como repertórios metafísicos, capazes de abarcar a totalidade de sentido. Estabelecer um conceito é uma relação de aproximação com a coisa, buscando-se descrever como ela acontece em seus diversos âmbitos (STEIN, 2002, p. 156)[15]. Qualquer tentativa de conceituação não passará de um destaque, um colocar entre parênteses algumas manifestações, no caso, do fenômeno jurídico-administrativo, até porque sempre deverá ser considerada a temporalidade e que impede o homem de abarcar em definitivo as formas de expressão.

Uma crítica interessante sobre o ideal de conceituar o Direito Administrativo, no campo dogmático, foi realizada por Juan Alfonso Santamaría Pastor quando menciona a ausência de utilidade prática das disposições conceituais, pois refere:

“hablar del Derecho administrativo como de un sistema o subsistema de normas, delimitado en el interior del total ordenamiento jurídico, no pasa de ser una convención terminológica sin significado preciso(...); por otra parte intentar hallar una noción nuclear en torno a la cual construir la ‘ciencia’ del Derecho administrativo, no deja de ser una inversión de los términos lógicos de la investigación científica(...), y, por último, resulta notorio que algo tan convencional como el contenido de las enseñanzas académicas no puede definirse abstractamente mediante noción teórica de ningún tipo...” (SANTAMARIA PASTOR, 2000, p.83-84).

Corolário do que acima foi explicitado, no campo das construções conceituais do Direito Administrativo, há grande propensão em destacar no fenômeno jurídico-administrativo basicamente o aspecto da norma (a norma não no sentido adotado pela hermenêutica jurídica). Certamente, tal dimensão também fará parte das problematizações a serem desenvolvidas, mas não reduz o conjunto de possibilidades de tratamento da matéria. Hodiernamente um dos elementos interessantes para abarcar uma gama considerável de manifestações administrativas é a partir da construção de uma Teoria da Decisão Administrativa[16], entendida como o agir da Administração Pública, seja por meio de seus órgãos específicos ou de pessoas jurídicas criadas para determinadas finalidades e em coordenação com particulares, com o propósito de materializar determinados objetivos constitucionais, sempre com a preocupação de evitar decisões arbitrárias.

O Direito Administrativo, assim, poderia ser indicado como o campo de conhecimento que estuda as condições de possibilidade (Streck) da decisão administrativa, seja no que tange ao conjunto de regras e princípios correlacionados ou no aspecto atinente às suas formas de expressão (atos administrativos, poderes, contratos, prestação de serviços, administração de bens, etc.). Na medida em que qualquer decisão situa-se no campo da interpretação, tal perspectiva desloca o foco de atenção para o modo de ser do Direito Administrativo, o questionamento sobre os seus propósitos (Dworkin), hermeneuticamente falando. Destarte, qualquer decisão da Administração Pública devera ser compreendida a partir do horizonte de sentido do Estado Democrático de Direito (arts. 1º e 3ª da Constituição Federal), fundando-se no conjunto de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e a promoção do bem estar da comunidade. Em tal sentido, vale a ideia de Prosper Weil(1977, p. 10) para quem:

o direito administrativo não pode, pois, ser desligado da história, e especialmente da história política; é nela que encontra o seu fundamento, é a ela que deve a sua filosofia e os seus traços mais íntimos. Não se trata de relembrar o passado, mas sim de conhecer o próprio solo do qual o direito administrativo extraiu a seiva que ainda hoje o alimenta.” (WEIL, 1977, p. 10).

No âmbito da referência citada, é interessante ressaltar a chamada crise do direito, e também do Direito Administrativo, e destacar as possibilidades de ultrapassá-la. Neste sentido, Lenio Luiz Streck tem dado um grande contributo ao identificar a nominada crise de dupla face do direito, pois (a) os operadores do direito estão inseridos no paradigma da filosofia da consciência e (b) estão inseridos no paradigma liberal-individualista (STRECK, 2004, p.55).  Em apertada síntese, boa parte dos que lidam com o Direito não se dão conta da necessidade de superar o paradigma liberal que ainda grassa na prática jurídica e compreender o Direito(Administrativo) como condição de possibilidade para fazer acontecer um Estado (pré)ocupado com a sociedade, vocacionado para intervir em prol dos direitos e garantias fundamentais, sejam eles liberais ou sociais, assumindo o Poder Judiciário um papel fundamental, conforme o autor: “Por tudo isso é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, há – ou deveria haver – um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional”(STRECK, 2004, p.55). Ao examinar-se o Direito Administrativo, faz-se mister destacar explicitamente a importância da jurisdição constitucional na construção de uma Administração Pública mais democrática, sendo imperioso, por exemplo, compreender de um modo diferenciado alguns princípios epocais que estruturaram a atividade administrativa como o princípio da separação de poderes.

Ademais, além desta dimensão de filosofia política a orientar a construção do Direito Administrativo, faz-se mister destacar, no âmbito de uma dimensão hermenêutico-filosófica, o problema da filosofia da consciência, ou seja,

...é necessário registrar que, na sustentação desse imaginário jurídico prevalecente, encontra-se disseminado ainda o paradigma epistemológico da filosofia da consciência – calcada na lógica do sujeito cognoscente, onde as formas de vida e relacionamentos são reificadas e funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto(como denuncia Habermas)- carente e/ou refratária à viragem lingüística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida contemporaneamente, no qual a relação ou relações passa(m) a ser sujeito-sujeito.” (STRECK, 2004, p. 61).

Os aspectos aludidos da crise de dupla face do direito, com efeito, deveriam ingressar em qualquer problematização dos diversos institutos do Direito Administrativo e da compreensão de um conceito (hermenêutico) propondo-se melhor destacar neste ramo do direito as potencialidades para provocar mudanças, criando condições de fazer acontecer aquilo que vem indicado nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal, obviamente, sem cair na ingenuidade segundo a qual a instituição de textos legais ou constitucionais é suficiente para alcançar tal desiderato. Destarte, a hermenêutica jurídica, de cariz fenomenológica, irá desempenhar um papel importantíssimo, acompanhada de um modo-de-ser mais social-solidário, uma concepção mais comunitária da atividade desenvolvida pela Administração Pública.

Este, ao que parece, pode ser o grande desafio a orientar a construção de uma nova Teoria do direito Administrativo, certamente, sem pretender inserir um novo dogmatismo, mas apenas temporalizar as diversas possibilidades de sentido deste ramo do direito, privilegiando a compreensão a partir da consciência histórica efeitual, utilizando a referência de Hans-Georg Gadamer. Busca-se, assim pensá-lo hermeneuticamente, fugindo-se da tentação objetificadora de construção de mundo. Quando for lançado o questionamento “o que é isto o direito administrativo?”, é crucial que não se pretenda respondê-la arrolando alguns enunciados lingüísticos, pois no enunciado não está a resposta para tal indagação. A problematização a ser levada a cabo exige dialogar como aquilo que vem sendo transmitido como sentido de Direito Administrativo, ultrapassando-se as evidências lógico-formais do dogmatismo e assumindo a linguagem como locus privilegiado para abrir clareiras, possibilidades antes impensadas de dizer o Direito Administrativo.

A partir da chamada viragem hermenêutica (STRECK, 2004), perguntar o que é o Direito Administrativo importa lançar juristas e operadores do direito para, por exemplo, problematizar a incapacidade das construções tradicionalmente dogmáticas, vocacionadas para aspectos metafísicos, e incapazes de transmitir o sentido, decorrência do ideal de especialização preponderante na sua estruturação teórica, especialização esta calcada na postura formalista do conhecimento jurídico e que desconsiderava outras possibilidades metodológicas senão aquelas suficientes para a aplicação subsuntiva de regras legais. Destarte, uma segunda dimensão de análise relaciona-se à posição ocupada pelo Direito Administrativo no conjunto da existência histórico-social, ou seja, hodiernamente, em um país de modernidade tardia como o Brasil, com um alto índice de exclusão social, qual tem sido a função deste campo do conhecimento jurídico? Finalmente, urge problematizar a questão atinente ao próprio fundamento do Direito Administrativo e a concepção de racionalidade científica que alimenta o imaginário de juristas, operadores do direito e administradores.  Como aduz Martin Heidegger, “tenemos antes que aprender a entender qué significa fundamentos de una ciência y en qué medida la crisis de fundamentos pone de manifesto los limites esenciales de la ciencia como tal.”(HEIDEGGER, 1999, p. 52). Há, portanto, uma tarefa originária de reconhecer que no próprio modo de ser característico do Direito Administrativo há o inacessível e que tal é incontornável e o dar-se conta da crise de fundamentos, em última análise, relaciona-se com a problematização da possibilidade histórica de existir do homem. O sentido não está no campo semântico, seja de um conceito de direito natural, verdade divina ou razão, mas no horizonte (histórico) do modo de ser do próprio homem, de uma dada comunidade política a qual pertence. Dai a importância no próximo item de situar a problematização do conceito do Direito Administrativo naquilo que o funda hermeneuticamente, buscando-se com isto destacá-lo como prática interpretativa. Adotando alguns aspectos da teoria do direito de Ronald Dworkin, é crível sustentar que o Direito Administrativo pode ser compreendido melhor a partir da reflexão dos seus propósitos, por meio de uma interpretação construtiva (DWORKIN, 1999, P. 62)[17].

2. As Pré-Compreensões Históricas do Direito Administrativo: do modo de ser liberal-individualista ao Estado Constitucional de Direito.

2.1. Condições de Possibilidade para a Consciência Histórica do Direito Administrativo.

Conforme já salientado em outra ocasião (OHLWEILER, 2003, p. 147), as condições de possibilidade de uma análise interpretativa (hermenêutica) passa pela interrogação fenomenológica da vida histórica, por intermédio do pensar reflexivo sobre as diversas mudanças sociais e econômicas que engendraram as compreensões do Direito Administrativo a partir de determinados propósitos. Este ramo do direito passou por variadas tentativas tecnicistas, quer dizer, em um primeiro momento apenas poderia ser-lhe atribuído o status de científico caso houvesse a aplicação do método das chamadas ciências naturais, único capaz de possibilitar a compreensão rigorosa dos fenômenos, segundo restou examinado no item anterior. É claro, tal mister não pode ser alcançado, pois, como refere Ernildo Stein, “nas ciências do espírito ou históricas, não se processa uma explicação semelhante à das ciências naturais. Não é possível uma distância que permita a objetividade própria da explicação positiva. Em todo o âmbito das ciências da história o próprio homem que pesquisa está envolto.” (STEIN, 1999, p. 26).

Busca-se, portanto, ao lançar tal interrogação, a investigação de uma consciência histórica do Direito Administrativo, sempre considerando que somente é possível fazer conhecimento compreendendo. O homem é um ser essencialmente histórico e a sua temporalidade radical é historicidade. (STEIN, 1999, p. 28), que brota do passado, presente e futuro, não como etapas sucessivas de uma conjunção linear, mas como totalidade. O questionamento do Direito Administrativo capaz de abrir dimensões de sentido é aquele que tem por objetivo, em última análise, explorar o seu “poder-ser” (STEIN, 1999, p. 28), isto é, a busca de suas possibilidades a serem concretizadas no presente. Não se trata, simplesmente, da tarefa de definir marcos históricos, atividade típica da historiografia, mas de compreensão da história concreta na qual ele acontece. Não se pode olvidar que os entes jurídicos estão imersos na tradição, compreendida como verdadeiro acontecimento. A finalidade, portanto, é problematizar as condições de possibilidade de o Direito Administrativo ser no presente e no futuro, eis que o passado não é mudo, considerando que o homem – e no caso os operadores do direito – estão inseridos em uma tradição que lhes é dada previamente, com um conjunto de propósitos construídos no contexto de uma dada comunidade política. Qual esta tradição que acaba por engendrar uma forma de compreensão dos diversos institutos do Direito Administrativo? Como fazer acontecer o presente deste ramo do Direito se há toda uma tradição, por vezes, limitadora, impedindo o triunfo do novo?

Aqui é importante resgatar o pensamento de Hans-Georg Gadamer, pois já no início de sua obra Verdad y Método menciona a tese segundo a qual em toda compreensão da tradição opera o momento da história efeitual (GADAMER, 1993, p. 16)[18].  Reconhece certa ambigüidade no conceito da consciência da história efeitual: “A ambigüidade do mesmo consiste em que, com isso, tem-se em mente, por um lado, a consciência, ativada no curso da história e determinada pela história, e por outro lado uma consciência do próprio ser ativado e ser determinado.” (GADAMER, 1993, p. 22)[19].  No entanto é categoria fundamental para possibilitar a compreensão autêntica, considerando constituir-se em antítese do pensamento dogmático, objetificante e esquecido da finitude de todo o compreender. A compreensão é um processo histórico-efeitual, quer dizer, o intérprete, em sua relação com a coisa mesma, está determinado pelos fatores históricos, como aduz Gadamer. (DUTT, 1998, p. 37).  Trata-se também de influência do pensamento de Martin Heidegger, pois o filósofo da Floresta Negra, em sua obra Ser e tempo, faz alusão à temporalidade como uma das dimensões do Dasein, o ente compreendedor privilegiado.

Um dos elementos fundamentais para a estruturação da história efeitual é a experiência. É claro, quando se fala em experiência, não se está vislumbrando-a de forma idealizada, como ocorre no âmbito das ciências naturais em que se procura garantir uma objetividade no fato de que as experiências subjacentes só serão válidas na medida em que, uma vez repetidas, podem ser confirmadas, ou seja, reproduzidas. Após fazer uma análise crítica de algumas concepções sobre a experiência, Gadamer alude que a experiência não é a ciência mesma, porém seu pressuposto necessário. Constitui-se, por conseguinte, em aspecto fundamental do conhecimento, um conhecimento não-dogmático, mas calcado na percepção de finitude do homem. A experiência tem lugar como um acontecer do qual ninguém é dono (GADAMER, 1993, p. 428)[20]. No âmbito deste acontecer é que se dão as novas possibilidades de sentido, ou ainda, pode desvelar-se a coisa mesma. Para Gadamer, como a experiência que alguém faz transforma o conjunto de seu saber, quando se fez uma experiência pode-se dizer que a possui e o que experimenta ganha um novo horizonte.

Com efeito, é preciso estar disposto a ganhar novos horizontes, a abrir-se para novas experiências, aspecto este característico do que Gadamer chama de "pessoa experimentada". Utilizar esta expressão não quer fazer referência simplesmente a alguém que já tenha tido experiências, ou vivenciado acontecimentos diversos, mas aquele que se mostra capacitado para estar aberto; a abertura que possibilita ter acesso às coisas mesmas. Desconsiderar o caráter de abertura da experiência traz como consequência, desta forma, retirar a capacidade de compreender novas dimensões de sentido dos entes e achar que já é detentor de todos os sentidos, que já sabe tudo[21]. No entendimento de Gadamer, aquele que efetua uma compreensão hermenêutica deve dar-se conta de que a relação do intérprete com as coisas não é uma relação que ocorra naturalmente, sem criar problemas. Na mensagem que é transmitida há uma tensão entre familiaridade e estranhamento, sendo que “o intérprete encontra-se suspenso entre o seu pertencimento a uma tradição e a sua distância com relação aos objetos que constituem o tema de suas pesquisas.” (GADAMER, 1998, p. 67). Daí, como já afirmado, a importância da consciência histórica, da distância temporal, permitindo estabelecer a distinção entre os preconceitos que cegam daqueles preconceitos que esclarecem, pois estes últimos é que são capazes de possibilitar um sentido autêntico da coisa interpretada. Para Gadamer “denunciar algo como preconceito é suspender a sua presumida validade; com efeito, um preconceito só pode atuar sobre nós, como preconceito no sentido próprio do termo, enquanto não estivermos suficientemente conscientes do mesmo. Mas a descoberta de um preconceito não é possível enquanto ele permanecer simplesmente operante; é preciso de algum modo provocá-lo.” (GADAMER, 1998, p. 68). Neste aspecto reside a importância da ideia de interrogação que deve estar presente em todo labor hermenêutico. Conforme Gadamer, a essência da interrogação é pôr a nu as possibilidades e mantê-las de sobreaviso. (GADAMER, 1998, p. 69). A provocação de que fala o filósofo, com efeito, apenas pode ocorrer por meio de uma profunda reflexão, capaz de suspender os pré-juízos e denunciar a tradição objetificante que por vezes encobre o trabalho hermenêutico e, nos termos da linguagem heideggeriana, vela o ser dos entes, mostrando-se como metafísica. Ir às coisas mesmas importa mergulhar no modo-de-ser da pergunta, pois por meio dela os entes - um texto, uma obra de arte, um poema, um dispositivo legal - são colocados sob uma determinada perspectiva, abrindo-se.

No que tange ao Direito Administrativo, os operadores do direito não estão livres das influências do passado, assim como absolutamente determinados por uma tradição na qual são jogados. O primordial é ser capaz de apreciar sua verdadeira posição na história e fugir da chamada tentação objetivista: “A tentação do espectador imparcial na história não é nada mais que uma tendência para o objetivismo típico das ciências naturais. Nosso conhecimento do passado sempre vem carregado pelas condições que no presente nos ocupam e limitam. O passado que atingimos vem envolto nos problemas, preconceitos e interesses que nos atarefam no presente.” (STEIN, 1999, p.29). Daí a importância de investigar o modo-de-ser histórico dos diversos institutos jurídico-administrativos, pois a tradição na qual o intérprete está jogado acaba por selecionar seus juízos e este mesmo “já-acontecido” influencia na compreensão do passado, chamando-se de “ação da história” e “esta limita a objetividade total e impede um juízo neutro a cada momento. Somente na medida em que temos consciência da ação da história sobre nós, sabemos de nossa situação na história.” (STEIN, 1999, p. 29). Este dar-se conta da ação da história é o que possibilita ultrapassar a postura de ingenuidade diante do passado e determina a finitude do processo de compreensão da história do direito, compreensão esta limitada pelo nosso próprio acontecer. Uma atitude racionalista somente leva à fuga da própria história, como refere Ernildo Stein. (1999, p. 30).

A reflexão sobre o fio condutor da história, como elemento de pré-compreensão do Direito Administrativo, deve ser permeada por um questionamento dos conflitos sociais, das mudanças de paradigmas e dos referenciais para pensar o fenômeno jurídico, sempre com a finalidade de problematizar os propósitos dos diversos institutos, vislumbrados como práticas sociais, mas construídos com determinado sentido (hermenêutico). Não se pode olvidar que o acontecer destas práticas sociais está inserido em um horizonte temporal, diverso daquele ocupado pelos operadores do direito. Mas, não adianta querer fazer com que os operadores sejam inseridos no horizonte subjetivo do Direito Administrativo da época, transportando-o para o atual. É exatamente uma postura de estranhamento, mantendo a tensão entre a diversidade de lugares, que irá possibilitar a compreensão (STEIN, 1999, p. 32) e o constante questionar das antecipações de sentido que chegam ao horizonte do jurista. O dar-se conta da ação da história importa ultrapassar os postulados do entendimento objetivista do “já-acontecido”, como algo constante, linear e que possui um algo a ser fixado pela compreensão.  Portanto, “é por isso que a compreensão histórica não procede objetivando. Ela avança, antes, refazendo continuamente a unidade entre o sujeito que conhece e a realidade histórica que é conhecida. Nem o sujeito, nem o objeto pairam acima da história.” (STEIN, 1999, p. 33).

Para o fim de compreender o que é o Direito Administrativo fora dos muros da verdade semântica, é fundamental o desenvolvimento da consciência histórica, levando a uma forma diferenciada de entender os institutos jurídicos, relativizando-os e transformando-os em face do fenômeno jurídico. Este ramo do direito possui uma forma de acontecer temporal e historicamente determinada, sendo que a inserção dos operadores na tradição leva a uma diversidade de compreensão com relação ao jurídico.  Logo, cabe assumir, de forma consciente, esta ação da história, desobjetificando-se, assim, a atual visão dos diversos institutos. A historicidade do homem é fundamental para constantemente revisar o conjunto de horizontes históricos. (STEIN, 1999, p. 34). Refletir sobre os horizontes de sentido da história, assim como o próprio horizonte de sentido, leva à abertura das possibilidades.  A consciência histórica é determinante para o ato de refletir, de forma lúcida, os condicionantes da tradição e que acabam por moldar a orientação de sentido dos institutos jurídicos. De outra banda, considerando não haver um direito a-histórico e fixista, esta consciência leva à reformulação contínua das projeções futuras do Direito Administrativo. Para Ernildo Stein, “na medida em que penetramos com lucidez na tradição, libertamos dela possibilidades para nosso projeto histórico no futuro. É por isso que a consciência histórica é tão importante para a descoberta da verdadeira posição diante da história.” (STEIN, 1999, p. 36).

Esta afirmação é fundamental para a construção do Direito Administrativo, calcado em bases hermenêuticas e situado em um Estado Democrático de Direito, como será examinado. A ausência de consciência histórica é um dos fatores determinantes para que os operadores jurídicos não sejam capazes de desvelar os verdadeiros propósitos dos diversos institutos jurídicos. A investigação permeada pela consciência histórica não possui apenas a tarefa de melhor compreender o que se passou, mas abrir possibilidades do futuro, eliminando as posturas que partem de um a priori dogmático para determinar como devem ser produzidos os horizontes de sentido.

Assim, mais uma vez com precisão reflete Ernildo Stein:

“Diante disso todas as previsões, todos os absolutos, todos os determinismos, inventados para dominar o acontecer do futuro da história humana, são impotentes. O único caminho é a consciência histórica, que possibilita a verdadeira compreensão da história como passado, e dele liberta as possibilidades do futuro, como projeto, que deve continuamente ser refeito, na medida em que a história evolui.” (STEIN, 1999, p.37).

Com razão Hans-Georg Gadamer quando refere que a tomada de uma consciência histórica constitui a mais importante revolução pela qual se passou desde o início da época moderna (GADAMER, 1998, p. 17), entendendo-se tal consciência como o “privilégio do homem de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião”. Um dos resultados mais concretos desta forma de entender o Direito Administrativo é dar-se conta da imperiosidade de adquirir uma posição reflexiva, e crítico-filosófica, com relação à tradição do material normativo construído para resolver os casos concretos, bem como sua metodologia. Não se pode mais, de forma ingênua, “escutar beatificamente a voz que lhe chega do passado”, mas é imperioso “refletir sobre ela, recolocando-a no contexto em que se originou, a fim de verificar o significado e o valor relativos que lhe são próprios.” (GADAMER, 1998, p. 18). 

2.2. O Debate sobre os Equívocos da Origem do Direito Administrativo.

Nunca é demasiado afirmar que a consolidação do Direito Administrativo, enquanto disciplina jurídica, não ocorreu de forma abrupta (CHEVALIER, 1998, p. 1.794), mas foi resultado de longo processo de desenvolvimento histórico, marcado por descontinuidades e sustentado por uma gama variada de elementos do antigo regime. Com efeito, vale ressaltar a discussão da dogmática do Direito Administrativo sobre a existência, ou não, de verdadeira ruptura entre este ramo do Direito no período do antigo regime, de cunho absolutista, e o que veio a consolidar-se aos poucos após o movimento da Revolução 1789. Autores como Zanobini, Haouriou, Duguit, Weil, Mayer, Merkl, Santi Romano, E. Garcia de Enterría (MARÍN, 1992, p. 22)[22] e Garrido Falla defendem a tese segundo a qual somente após os acontecimentos de 1789 surgiram condições de possibilidade para a formação do Direito Administrativo, considerando no modelo de Estado Liberal-Burguês a presença dos princípios que acabaram prevalecendo. No entanto, há um conjunto de teóricos defendendo posição diversa, no sentido de haver mesmo antes da Revolução Francesa alguns institutos que foram incorporados no período posterior, caracterizando, assim, mera continuidade.

Vale aludir, os defensores do primeiro entendimento não desconhecem e não negam a existência de diversidade de técnicas administrativas já existentes no antigo regime, mas diferenciam a existência de alguns mecanismos de exercício dos poderes administrativos e o Direito Administrativo. Este último consolidar-se-ia com o princípio da divisão de poderes e o estabelecimento de limites ao poder. Os partidários desta concepção entendem que atividade da Administração, por certo, havia, bem como um conjunto de poderes dos administradores, no entanto, não seria crível sustentar a existência de uma Administração regulada e, por via de conseqüência, submetida a um Direito específico, pois “la primacía de la ley y, con ello, el sometimiento, real e verdadero, del poder ejecutivo a ella fueron precisamente la victoria de los revolucionarios contra algo, la reacción contra un régimen que negaba todo eso.” (MARÍN, 1992, p.53). Obviamente, a existência de alguns limites ao exercício do poder administrativo, por certo, não é suficiente para representar a existência de um Direito Administrativo, pois eles seriam limites fragmentários, muitas vezes não acompanhados de um conjunto de garantias postas à disposição dos indivíduos, constituindo-se em meras figuras retóricas.

No entanto, o período de transição de um regime absolutista, o governo dos homens, para um regime de Estado Liberal, Estado de Direito ou governo das leis, não ocorreu sem alguma resistência do poder institucionalizado na época. Como alude António Francisco de Sousa, a máquina real que exercia o controle sobre o exército, a polícia, as finanças, a burocracia, etc., buscou estabelecer alguns mecanismos compensatórios, como a participação na função legislativa, por meio de institutos como a sanção, promulgação e veto, além da institucionalização de um poder regulamentar autônomo, prescindindo de lei prévia, o que ocorreu por meio da compreensão larga do significado do poder de execução das leis. (SOUSA, 1995, p. 189). A própria garantia de que os conflitos surgidos entre os cidadãos e a Administração seriam resolvidos por um tribunal independente, foi objeto de concepções reducionistas, pois quando tais conflitos foram confiados a órgãos da Administração, permaneceu a confusão entre Administração e Justiça até 1872[23].

Tais contradições do discurso revolucionário podem ser bem percebidas na obra de Paulo Otero, quando menciona o duplo equívoco da origem do Direito Administrativo. Aduz haver um contrasenso no princípio da separação de poderes, pois assim como se constituiu em bandeira do movimento de 1789, assumindo a postura de garantia do cidadão, o protagonismo do Conselho de Estado revela-se desajustado com tal princípio:

“Numa outra perspectiva, aquilo que está em causa na intervenção do Conseil d’ Etat não é um simples desenvolvimento interpretativo da lei, fazendo um prolongamento da sua letra ou do seu espírito, ou mesmo um desenvolvimento integrativo da lei; ao criar o Direito Administrativo, a jurisprudência do Conseil d’Etat aquilo que faz é substituir-se ao legislador, agindo no seu lugar ou em vez do parlamento.” (OTERO, 2003, p. 270).

No entanto, o mais grave reside que como o próprio Executivo resolvia as questões atinentes à competência para julgar os conflitos entre cidadãos e Administração Pública, sua ingerência era considerável, eis que se constrói uma legalidade derrogatória do direito comum. Mais uma vez são lapidares as palavras do administrativista português referido:

“Todavia, a criação de uma jurisdição administrativa própria, subraindo a resolução dos litígios jurídico-administrativos aos tribunais comuns, apesar de alicerçada na idéia de que ‘julgar a Administração ainda é administrar’, não teve qualquer intuito garantístico, antes se baseou na desconfiança dos revolucionários franceses contra tribunais judiciais, pretendendo impedir que o espírito de hostilidade reinante nesses últimos contra a Revolução limitasse a liberdade de acção das autoridades administrativas revolucionárias. A invocação do princípio da separação de poderes foi um simples pretexto para que, visando um objetivo político concreto de garantir efetivo alargamento da esfera de liberdade decisória da Administração Pública, tornando sua actividade imune a qualquer controlo judicial, se construísse um modelo de contencioso em que a Administração se julgaria a ela própria: há aqui uma perfeita continuidade entre o modelo de controlo administrativo adotado pela Revolução Francesa e aquele que viogorava no Ancien Regime...” (OTERO, 2003, p. 275).

No âmbito desta polêmica, não se poderia deixar de fazer referência, ainda que brevemente, ao texto O Antigo Regime e a Revolução de Alex de Tocqueville,  no qual igualmente crítica a posição daqueles que tomam a Revolução Francesa como um processo inovador, ressaltando que algumas das consequências de tal movimento foi o de aumentar o poder e os direitos da autoridade pública, dar continuidade à centralização administrativa já presente no antigo regime[24], manter e até aprofundando a tutela administrativa sobre os cidadãos[25], albergando as instituições do antigo regime como a justiça administrativa e estabilidade dos funcionários[26].

Longe de ser resolvida tal polêmica, o importante é não perder a dimensão crítica sobre as origens do Direito Administrativo, evitando-se discursos de garantia que, até mesmo hodiernamente, são mais utilizados na prática para solapar direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Neste sentido também a conclusão de Gustavo Binenbojm, ao aludir que “nenhum cunho garantístico dos direitos individuais se pode esperar de uma Administração Pública que edita suas próprias normas jurídicas e julga soberanamente seus litígios com os administrados.” (BINENBOJM, 2006, p. 12).

2.3. Administração Pública e Função Administrativa: da dimensão do Estado Liberal à construção do paradigma social-solidário.

O Estado liberal apresenta-se como que marcado pela concepção individualista da sociedade, estando em primeiro lugar o indivíduo com seus interesses e necessidades, adquirindo a natureza de direitos inatos, e depois estaria a sociedade, contrapondo-se a esta ideia a teoria organicista, segundo a qual a sociedade estaria em primeiro lugar em relação aos indivíduos, considerando que o todo precede as partes. No entendimento de Norberto Bobbio, a concepção contratualista modifica a compreensão em relação ao pensamento político e a relação entre o indivíduo e a sociedade, pois “já não faz da sociedade um fato natural que existe independentemente da vontade dos indivíduos, senão um corpo artificial, criado pelos indivíduos a sua imagem e semelhança para a satisfação dos seus interesses e necessidades e o mais amplo exercício dos seus direitos.” (BOBBIO, 1996, p.16). O liberalismo, como modo de pré-compreensão do ente Estado, influenciou de forma significativa o Direito Administrativo a ser estruturado, considerando que dentro de suas teorizações são questionados os próprios limites do Poder Público, bem como suas funções[27]. Com efeito, temos o Estado "Gendarme" ou o Estado Guarda-Noturno, caracterizado por não possuir profunda responsabilidade na promoção do bem comum, considerando que o estado ótimo para a sua realização seria a entrega dos indivíduos à sua plena liberdade, livres de estorvos de natureza estatal (BONAVIDES, 1996, p. 40). Caberia ao Estado a manutenção da ordem e da segurança, propiciando um ambiente tranquilo e seguro para os indivíduos desenvolverem suas iniciativas. Na hipótese de surgirem eventuais conflitos caberia ao Poder Público, por intermédio do aparelhamento burocrático e do juízo imparcial, dissolver tais embates, dentro de um conjunto de regras. O Estado, com efeito, teria funções de caráter negativo, devendo-se mencionar que a partir de 1800 com o surgimento dos Novos Liberais, questionando o modelo individualista proposto, começa-se a discutir a inadequação desta forma de compreensão do ente público[28].

Este período da administração pública liberal foi marcado pela tentativa de atribuir funções específicas para órgãos públicos próprios, dividindo-se a organização administrativa entre os níveis central e local. Portanto, como o movimento revolucionário tinha o objetivo de congregar o poder, estabelecendo formas racionais de sua utilização, não tardou em mais uma vez consolidar a ideia de um poder central, com considerável conjunto de prerrogativas, em detrimento dos poderes locais. É claro, o estabelecimento de um regime administrativo central, próprio e específico foi gestado de forma lenta, mas com o “aumento das funções do Estado e a implementação prática dos princípios da Revolução conduziu ao crescimento acentuado da máquina burocrática, que foi adquirindo uma identidade própria à medida que foi crescendo e o seu peso foi aumentado.” (SOUSA, 1995, p. 174). Deste crescimento surgiu a necessidade de aumentar o número de funcionários e reforçar o modelo de organização hierárquica, inicialmente de origem militar. As diversas funções administrativas eram atribuídas a unidades burocráticas especializadas, sendo que o território era dividido em circunscrições uniformes, denominadas de províncias, departamentos, distritos, círculos ou freguesias como em Portugal.

O século XX impôs uma atuação do Estado finalisticamente diferenciada em relação ao período anterior, com um conjunto de interrogações e perplexidades diversas. Muito embora não seja possível defender a tese de que no Estado Liberal o ente público estava completamente ausente da vida dos indivíduos, é imperioso reconhecer a mutação ocorrida no seu papel. O liberalismo, que tanto influenciou a estruturação simbólica do Estado Liberal, determinou como efeito deletério o extremado individualismo, exigindo-se, assim, uma atuação mais contundente por parte do Poder Público, especialmente por meio da atuação interventiva no domínio econômico, ingressando na esfera até então própria da iniciativa privada.

Após a 1ª Guerra Mundial ocorreu a tendência de cada vez mais juridicizar a atuação do Estado, bem como a vida social, generalizando-se o constitucionalismo e positivando-se um catálogo de direitos humanos. No entanto, não houve apenas um processo de expansão da legislação, mas a institucionalização de uma categoria jurídica que irá desempenhar papel primordial como elemento capaz de propiciar a redução das desigualdades. São os direitos sociais, cujo início de implantação ocorreu com a Constituição Mexicana de 1917 e na República de Weimar com a Constituição de 1919. A ideia de Estado Social foi inserida na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha ao definir-se no seu artigo 20 como “Estado federal, democrático e social”, constando no artigo 20 a sua estruturação como um “Estado democrático e social de direito”. Muito embora não exista uniformidade sobre a conceituação dos chamados direitos sociais, Albrecht Weber refere que a menção desta expressão traduz o reconhecimento da ideia de solidariedade, justiça social, igualdade de fato e de complementariedade entre as liberdades individuais e suas condições sociais. (WEBER, 1995, p. 681).

Com efeito, a intervenção do ente público constituiu-se em exigência relativamente à regulação da questão social, e a atividade estatal passou a adquirir roupagem prestacional[29]. Tal modelo pretendeu ultrapassar o liberalismo que na sua formulação clássica não propiciou os elementos capazes de resolver diversos problemas econômicos do proletariado, a grande maioria da população. A liberdade propugnada e institucionalizada dentro de uma forma de regulação estatal não solucionava as gravíssimas contradições sociais, em especial daqueles destituídos de propriedade. Um dos fatores determinantes da inserção na ordem jurídica de um instrumental voltado para a questão social foi a derrocada do voto censitário, pois com o sufrágio universal possibilitava-se o ingresso de uma classe na democracia política e a criação de uma legislação de compromisso. Nestes termos refere Paulo Bonavides, “... aqui ocorre o momento decisivo, em que, abrindo mão compulsoriamente daquela franquia fundamental – da liberdade política como liberdade de classe -, que antes lhe afiançava o controle do Estado, a velha burguesia liberal reparte esse controle com as demais classes, notadamente a classe com a qual se achava envolvida num antagonismo de vida e morte.” (BONAVIDES, 1996, p. 189).

É difícil estabelecer, de forma exaustiva, as causas determinantes desta forma de manifestação do ente estatal, o novo modo-de-ser. O administrativista Juan Afonso Santamaria Pastor as enumera de forma resumida: a) as crises econômicas que teriam ocorrido desde a I Grande Guerra, encontrando-se com a grande depressão dos anos trinta e a crise energética dos anos setenta; b) as não menos constantes crises bélicas e que ocasionaram a direção centralizada dos recursos nacionais; c) a irrupção dos princípios democráticos, caracterizada pelo acesso de classes menos favorecidas ao exercício do poder político, ocasionando o que Giannini chamou de Estado pluriclasse e d) o aumento demográfico e o crescimento acelerado do fenômeno da urbanização, sendo determinante para que o Ocidente deixasse de ser uma civilização agrária para transformar-se em industrializada. (SANTAMARIA PASTOR, 2000, p. 69-70).

Assim como o liberalismo foi uma teorização que orientou a construção do modelo de Estado Liberal, o Estado Social, igualmente foi fruto da tentativa de institucionalização de um novo paradigma. No entendimento de José Afonso da Silva, esta concepção diferenciada de ente estatal é a forma de compatibilizar o capitalismo, como forma de produção, e a realização do bem-estar social, constituindo-se em verdadeira promessa nos regimes ocidentais com relação à definição de direitos econômicos e sociais. (SILVA, 1995, p. 116-117). Vale referir que as teorizações responsáveis pela criação das condições de possibilidade para o surgimento deste tipo de Estado, foram construídas ao longo de mais de um século, desde o século XIX, quando há o fortalecimento dos movimentos sociais, até a segunda metade do século XX.

Dentre tais construções teóricas, é imperioso referir a de Léon Duguit e que, juntamente com Maurice Hauriou, tentou combater as concepções individualistas e normativistas caracterizadoras do Estado de Direito. Como refere José Fernando de Castro Farias, “os enunciados de Duguit e de Hauriou tentaram construir critérios sociojurídicos para fundamentar o Estado de Solidariedade, no qual a subordinação dos atos dos governantes e da administração a um controle jurídico se baseia não mais na lógica subjetivista, mas na lógica do direito de solidariedade.” (FARIAS, 1999, p. 41). Por certo tais autores não desconsideravam a importância do surgimento do Estado de Direito, no entanto, era preciso localizá-lo como modelo estatal necessário para suplantar a antiga ordem absolutista.

A paulatina construção do paradigma do Estado Social de Direito afeta diretamente a estrutura administrativa, especialmente com relação ao crescimento das unidades burocráticas do ente estatal, fenômeno detectável tanto no plano nacional como das localidades, havendo a multiplicação de organismos públicos e empresas estatais. A necessidade de políticas de intervenção na ordem econômica e social, com efeito, exigiu o deslocamento das demandas do legislativo para o executivo, constituindo-se este no centro desta forma de atuação estatal por intermédio da Administração Pública. Quando se fala em “Bem-Estar Social” é preciso compreender tal expressão relacionando-a com uma específica forma de atuação do Estado, exigindo, por sua vez, aparato administrativo e regime jurídico apropriado funcionalmente.

A Administração Pública passa a lidar com a tarefa de correção dos efeitos disfuncionais de uma sociedade competitiva, constituindo-se tal mister ao mesmo tempo em exigência ética, mas também necessidade histórica, como bem refere Manuel García-Pelayo. (GARCÍA-PEAYO, 1996, p. 15). O Estado que se vislumbrava tinha como objetivo a adaptação daquela forma tradicional burguesa – liberal-individualista – às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial com a sua gama de complexos problemas, mas, ao mesmo tempo, com variadas possibilidades técnicas, econômicas e organizativas. (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 18)[30]. Mas este aspecto organizacional é o resultado da mutação na relação entre o Estado e a Sociedade, considerando que no Estado do tipo liberal prevalece não apenas a diferenciação e sim a clara oposição. O liberalismo possui relação peculiar com o racionalismo da época, concebendo-se o Estado como organização racional orientada para determinados objetivos, construída primordialmente sobre relações de subordinação (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 21-22).  A regulação jurídica desta dimensão liberal de Estado seria marcada fundamentalmente pelo conjunto de leis abstratas e sistematizadas, a fim de possibilitar a salvaguarda do ideal de separação de poderes.

A sociedade, por sua vez, apresentava um conjunto de características naturais, sendo considerada como ordem espontânea e possuindo sua própria racionalidade. Não como algo planejado, previsto, mas imanente à sua forma organizacional. Com efeito, caberia ao Poder Público assumir a postura de não intervenção nesta “ordem natural das coisas”, possuindo como função primordial assegurar as condições mínimas para tal desenvolvimento.

O Estado Social, no entanto, possui postulados diversos. A atuação estatal funcionaria como elemento de racionalização da vida em sociedade, pois caso ela fosse deixada para dirigir-se por meio de seus mecanismos autorreguladores prevaleceria a irracionalidade. O organismo estatal desempenharia importante tarefa, por intermédio especialmente de sua ordem administrativa, na correção dos “efeitos disfuncionais de um desenvolvimento econômico e social não controlado”, como expressa Manuel García-Pelayo. (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 23). Estado e Sociedade não são considerados como duas instâncias separadas e autônomas e sim altamente inter-relacionadas, por meio de mecanismos complexos, podendo ser citada a realização de tarefas públicas por empresas com personalidade jurídica de direito privado ou mediante a celebração de contratos.

O Welfare State possibilita, portanto, o surgimento da forma diferenciada de colocar o problema Estado-Sociedade, distanciando-se da postura liberal-individualista. Dentro deste novo modo-de-ser, Eduardo Garcia de Enterria menciona uma sentença do Tribunal Constitucional Espanhol, datada de 7 de fevereiro de 1984, retratando bem a necessidade da atuação mútua do Estado e da Sociedade:

“La consecución de los fines de interés general no es absorbida por el Estado, sino que se armoniza en una acción mutua Estado-sociedad, que difumina la dicotomía Derecho público-privado... El reconocimiento de los denominados derechos de carácter económico y social – reflejado en varios preceptos de la Constitución -, conduce a la intervención del Estado para hacerlos efectivos, a la vez que dota de contenido social al ejercicio de sus derechos por los ciudadanos – especialmente de los de contenido patrimonial como el de propriedad – y al cumplimiento de determinados deberes.” (GARCIA DE ENTERRÍA, 1998, p.31).

A própria racionalidade sobre a qual é configurado o Estado Social é diversa daquela preponderante no período de maturação do Estado Liberal. Dentro do paradigma individualista o princípio da legalidade assumiu capital importância para estabelecer a regulação jurídica sobre os poderes absolutistas, que marcaram o antigo regime. Com efeito, haveria de ser entendida como normatividade geral, abstrata e válida para um número indefinido de casos e durante um tempo indeterminado. Segundo Manuel García Pelayo “la ley creaba un orden para la acción de otros, pero ella misma no era – normalmente – un instrumento de acción o intervención del Estado en el curso de los acontecimientos.”(GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 62). No Welfare State adota-se postura diferenciada com relação à lei, considerando que ela é utilizada não só para criar a ordem geral para a ação, senão também como instrumento de ação e, por consequência, específico e concreto, de acordo com a singularidade e com a temporalidade do caso a regular ou do objetivo a conseguir (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 63).

Destarte, o conjunto de poderes administrativo vai ser estruturado por meio de uma razão instrumental, ou seja, a normatização da ação administrativa do ente público, crescentemente, há de ser concreta e finalística, permeada por elementos de ordem material, deixando de buscar aquela racional sistematização do modelo liberal-individualista. O Direito Administrativo do Estado Social adota critério diverso de temporalidade das regulações jurídicas, na medida em que os diversos institutos possuem caráter funcional, deverão adaptar-se às constantes mutações da ordem econômica e social, não havendo, possibilidade de ser construído um critério certo e permanente de racionalidade, pois não é algo permanentemente dado, senão construído, reproduzido ou transformado pela ação contínua (GARCÍA-PELAYOI, p. 63).

 Portanto, a lógica de sistematização e de codificação que tanto marcou o período do Estado liberal, nesta fase, torna-se desacreditada. Certamente não desaparecem os códigos editados na época, mas, cada vez mais, constata-se a sua insuficiência paradigmática. O Direito do Estado Social, como bem alude Juan Ramón Capella, não é propriamente um direito codificado “es un derecho de colecciones legislativas, de recopilaciones, de prontuarios velozmente obsolescentes cada vez más parecidos a los nuevos productos de usar y tirar.” (CAPELLA, 1997, p. 208). A construção do Direito Administrativo, no âmbito deste paradigma, não haveria de contar com um corpo de regras sistematizadas, codificadas, havendo, por vezes, a edição das chamadas leis-medidas, isto é, instrumentos capazes de possibilitar a atuação concreta e limitada do Estado, funcionalmente determinada para resolver situações específicas.

Vale destacar também a postura de intervenção assumida pela Administração na Alemanha, começando após a Constituição de Weimar a instituição da chamada autorização para a celebração dos negócios jurídicos, cujo objetivo era possibilitar a participação do Estado na conformação de âmbitos sociais necessitados, com o intuito de garantir a integridade da ordem social. Por meio do Decreto contra o abuso de situações econômicas de poder, de 2.11.1923, o Estado submeteu ao seu influxo a conformação dos chamados trusts. A referida legislação criou instrumentos de inspeção muito eficazes por parte do Estado; como alude Ernest Forsthoff, o objetivo da regulação era a proteção da totalidade da economia e do bem comum, assegurando-se, assim, a liberdade econômica aos indivíduos isolados (FORSTHOFF, 1958, p.104).

No entanto, esta forma de atuação da Administração Pública não poderia ser confundida com a tradicional intervenção decorrente do exercício do poder de polícia. O administrativista alemão acima referido preleciona que o poder de polícia levava à imposição de determinados deveres por razões de segurança e ordem pública, enquanto as medidas contra o abuso do poder econômico caracterizavam intervenção na esfera do Direito Privado, isto é, nas relações jurídicas dos cidadãos entre si, e tinham o intento de manter coativamente a economia autônoma (FORSTHOFF, 1958, p. 108).

Esta multiplicidade de atuação do Estado, a fim de garantir o Daseinvorsorge[31] é determinante para o crescimento administrativo do ente público, surgindo paralelamente um conjunto de técnicas orgânicas. Ademais, como lembra António Francisco de Sousa, após a II Guerra Mundial, especialmente na Europa, assistiu-se uma reversão do fenômeno de concentração administrativa, nota característica do período napoleônico, como forma de lutar contra a excessiva burocratização da Administração (SOUSA, 1995, p. 404)[32]. Mas, não bastava apenas a descentralização, na medida em que o Estado necessitava ter ingerência na ordem econômica.

No plano da Administração Pública, o Estado começou a utilizar-se da figura dos concessionários, por meio dos quais poderia o Poder Público cumprir determinadas atividades próprias da iniciativa privada, mas sob seu controle. Os institutos do Direito Administrativo, no entanto, eram marcados ainda por um formalismo excessivo, havendo a preponderância do aspecto da autoridade, dificultando a utilização com sucesso pleno do regime de concessão, por exemplo. Como alude Maria João Estorninho, "uma das conseqüências fundamentais deste processo de alargamento das tarefas da Administração Pública, no Estado Social, é o facto de ela passar a utilizar o meio de actuação mais típico do Direito Privado, o contrato." (ESTORNINHO, 1996, p. 42).

Assim, também foi necessário recorrer às chamadas empresas estatais, entidades dotadas de personalidade jurídica própria, com a participação no capital total ou majoritariamente e submetidas a regras de direito privado. Aqui reside um dos elementos paradoxais deste novo modo-de-ser da Administração Pública, pois fica evidente a necessidade de superar o modelo de administração autoritária para a chamada,

"Administração soberana consensual", isto é, “uma forma de administração nova, negociada ou contratual, em que o acordo vem substituir os tradicionais actos unilaterais da autoridade, aparecendo em relação a eles como uma verdadeira alternativa e em que os administrados deixam de ser meros destinatários passivos das decisões unilaterais da Administração Pública” (ESTORNINHO, 1996, p. 44). 

3. O Direito Administrativo como Conceito Hermenêutico: democracia e cidadania no Constitucionalismo Contemporâneo. 

O questionamento da expressão Estado Democrático de Direito, invariavelmente, remete para a própria ideia de democracia. Não há unanimidade com relação ao significado desta última e o problema de suas características é tão antigo quanto a reflexão sobre a política, passando por uma reformulação em todas as épocas, como bem coloca Norberto Bobbio (BOBBIO, 1997, p. 320). Em Platão, na República, são descritas cinco formas de Governo, a aristocracia, timocracia, oligarquia, "democracia" e tirania, aparecendo como uma boa forma apenas a aristocracia. Assim, durante um período considerável, democracia foi tida como palavra negativa, utilizando-se como significado de governo ótimo a expressão República. Por certo não seria cabível aqui a problematização do processo histórico de construção deste conceito, considerando que o objeto destas indagações é outro. As referências acima aludidas apenas objetivam demonstrar o caráter de polissemia adquirido pela expressão de certo modo um desgaste semântico. Com efeito, igual incerteza política e jurídica está por permear a concepção de Estado Democrático de Direito.

Para os fins deste breve estudo, é possível especificar a passagem do Estado Social para esta concepção que, vale dizer, não importa em ruptura abrupta ou estrutural do ente público, mas, muito mais, nova forma de compreensão do fenômeno Estado-Sociedade. O final da década de 60 e início da década de 70 são marcados por um campo de incertezas políticas; as crises econômicas que começam a assolar o Estado Social levam ao questionamento de outras fórmulas de atuação do Estado. Tal processo é ainda hoje mais debatido, a partir dos recentes acontecimentos envolvendo as administrações da Europa. Ademais, já naquele período a sociedade desenvolve-se de modo crescentemente complexo, exigindo a modificação nos processos de regulação social e jurídica, podendo-se salientar a consolidação dos chamados direitos fundamentais de terceira geração, os interesses ou direitos difusos, o meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico e cultural, etc., como novos direitos que necessitam de uma forma de organização estatal diferenciada para serem atendidos.

O Estado Democrático de Direito busca, ainda, agregar alguns elementos ao conceito de Estado de Direito, com o objetivo de oportunizar o aprofundamento da questão da igualdade. No entendimento de José Afonso da Silva, “o Estado Democrático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.” (SILVA, 1999, p. 116). Assim, se no Estado Social um dos objetivos primordiais é melhorar as condições sociais, quer dizer, desenvolver a procura existencial, no Estado Democrático de Direito há um plus em relação ao papel do ente público, pois deverá desempenhar papel transformador da realidade, incidindo este novo ethos sobre a atividade da Administração Pública. Os diversos institutos administrativos do poder público devem ser direcionados para propiciar o desenvolvimento dos cidadãos nos planos social, econômico e cultural.

As características deste tipo de Estado foram muito bem explicitadas por J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 83): a) Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; b) Organização Democrática da Sociedade; c) Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; d) Justiça Social com mecanismos corretivos das desigualdades; e) Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como articulação de uma sociedade justa; f) Divisão de Poderes ou Funções; g) Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; h) Segurança e Certezas Jurídicas.

A Constituição ocupa papel central no Estado Democrático de Direito, sendo mesmo característica do Estado de Direito, pois como menciona J. J. Gomes Canotilho, o Estado de Direito é um Estado Constitucional e pressupõe a existência de uma constituição como "ordem jurídico-normativa fundamental" vinculando os poderes públicos, bem como dotada de caráter de supremacia (CANOTILHO, 1993, p. 360). Estabelece-se, com efeito, a vinculação ao conteúdo formal e material do texto constitucional por parte do legislador: “A constituição é, além disso, um parâmetro material intrínseco dos actos legislativos, motivo pelo qual só serão válidas as leis materialmente conformes à constituição.”(CANOTILHO, 1993, p. 360).

Não apenas o legislador está sujeito à normatividade do texto constitucional, pois todos os demais atos do Estado devem estar em conformidade com a Constituição, prevalecendo o que se convencionou chamar de força normativa da Constituição, como aludido pelo constitucionalista português:

“... o princípio da constitucionalidade postulará a força normativa da constituição contra a dissolução político-jurídica eventualmente resultante: (1) da pretensão de prevalência de ‘fundamentos políticos’, de superiores interesses da nação, da ‘soberania da nação’ sobre a normatividade jurídico-constitucional; (2) da pretensão de, através do apelo ao ‘direito’ ou à ‘idéia de direito’, querer desviar a constituição da sua função normativa e substituir-lhe uma superlegalidade ou legalidade de duplo grau, ancorada em ‘valores’ ou princípios transcendentes.” (CANOTILHO, 1993, p. 362)[33].

Vale mencionar que a Constituição como parâmetro de normatividade no Estado Democrático de Direito apresenta notas diferenciais em relação ao paradigma clássico do Estado Liberal, como, por exemplo, não está estruturada pela racionalidade positivista que vislumbra o Direito dentro de uma pureza axiológica, impedindo a visualização dos conflitos políticos e sociais nas questões atinentes à inconstitucionalidade. A observação de Eduardo Garcia de Enterria merece destaque: “Es cierto que, como indicó TRIEPEL, en su conocido discurso rectoral, el Derecho público no es actuable sin consideración a la política; conceptos como Estado de Derecho, Estado Social, libertad, igualdad, dignidad humana, etc., no pueden interpretarse sin recurrir a las ideias o convicciones sociales y políticas de la comunidad.” (ENTERRÍA, 1991, p.182).

 Outro fator a ser considerado diz respeito ao conjunto normativo dos textos constitucionais contemporâneos, pois são utilizadas fórmulas dotadas de grande amplitude, possuindo, assim, caráter deliberadamente aberto, estruturando-se com princípios jurídicos. A aplicação do texto constitucional irá exigir a tarefa interpretativa fulcrada na amplitude significativa, ultrapassando-se o postulado liberal de meramente pronunciar as palavras da lei.

O Direito Administrativo no Estado Democrático de Direito, no âmbito da constitucionalidade como característica primordial, será concebido como regulação jurídica construída a partir dos parâmetros da Constituição. Aliás, a crescente “constitucionalização da Administração Pública” é fenômeno contemporâneo e começou após a I Guerra Mundial, cristalizando-se nas constituições Italiana de 1947, Portuguesa de 1976 e Espanhola de 1978. Pode-se dizer, com efeito, na órbita do Estado Constitucional, busca-se a constante submissão da Administração Pública ao Direito como um todo, além de uma atividade de controle jurisdicional, pretendendo-se eliminar decisões arbitrárias. A Constituição, como texto normativo de parâmetro, possibilita “oferecer uma imagem unitária dos processos jurídicos que asseguram o seu desenvolvimento conforme um conjunto de valores e princípios vinculantes a todos os poderes do Estado e a redução ou correção das práticas desviantes que se puderem produzir.” (PEÑA FREIRE, 1997, p. 274). O Direito Administrativo, portanto, haverá de estruturar-se a partir dos elementos de validade oriundos do texto constitucional, texto fundamental para a retirada das possibilidades de atuação administrativa, seja no uso de determinadas prerrogativas ou nas limitações impostas à atuação do Poder Público. A Administração Pública estará submetida, inicialmente, à dimensão de sentido do Estado retratado no texto constitucional.

A constitucionalização, portanto, deve ser compreendida como constante transformação do fenômeno jurídico, ocasionando a impregnação total pelas normas constitucionais, conforme destaca Ricardo Gaustini não como ato isolado (GUASTINI, 2003, p. 49). Obviamente, este não é o espaço apropriado para debater as profundas mudanças de paradigmas ocasionadas pela constitucionalização do Direito Administrativo, sendo imperioso referir a observação de Harmut Maurer sobre as relações entre Direito Administrativo e a Constituição: “Ela conduziu a transformações profundas, à recusa de concepções jurídicas tradicionais e ao reconhecimento de novos institutos jurídicos.” (MAURER, 2006, p. 21)[34], salientando, inclusive, o papel importante que a doutrina e jurisprudência assumiram, ora com postura dirigente e, até mesmo, por vezes, de ruptura decisiva. Como bem destacam Hans J. Wolf, Otto Bachof e Rolf Stober, a Constituição tem que ser capaz de regular a estrutura jurídica fundamental e fixar os seus limites no sentido de um genetic code (MAURER, 2006, p.193). De outra banda, a permanente dependência constitucional da Administração surge no fato de toda a decisão administrativa ser potencialmente uma decisão constitucional.

Contributo importante para a construção do Direito Administrativo constitucionalizado, dentre outros importantes autores nacionais, é o trabalho desenvolvido por Juarez Freitas, ao apontar a relevância do controle das práticas administrativas a partir dos objetivos fundamentais da Constituição, previstos no artigo 3º da Constituição Federal (FREITAS, 2009, p.30) e do direito fundamental à boa administração pública. Efetivamente, o horizonte de sentido da tradição dos direitos fundamentais é crucial no curso do processo de democratização substancial das relações entre cidadãos e Administração Pública, pois os agentes públicos devem adotar a postura de “defesa concreta da constitucionalidade”, como menciona o autor acima aludido.

De qualquer modo, é crucial não olvidar que o fenômeno do Constitucionalismo foi determinante para retomar o debate sobre os efeitos da constitucionalização da Administração Pública, fruto também da inserção de princípios relacionados com a atividade administrativa em diversos textos constitucionais, inclusive falando-se em “pós-positivismo”, ou seja, concepção dotada de uma positividade mais aberta e axiológica, calcada nas grandes constituições do século XX[35]. Aliás, algumas críticas têm sido direcionadas em relação a estas concepções teóricas, no modo como recepcionadas pela doutrina e jurisprudência brasileiras, muito mais voltadas para, ao reconhecer a indeterminação do Direito, atribuir o caráter discricionário às decisões judiciais (STRECK, 2012a, p. 58-71). Igual crítica é produzida no Brasil, relativamente à dogmática distinção entre atos administrativos vinculados e discricionários, como bem alude KRELL (2013, p. 19).

Conforme já salientado em outra oportunidade (OHLWEILER, 2004, p. 285-328), o advento do constitucionalismo representou nova forma de viver o Direito, inclusive o Direito Administrativo, compreendendo-o em bases marcadamente democráticas, pois se trata de “teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade” (CANOTILHO, 1999, p. 47). Mais recentemente tem-se falado no chamado neoconstitucionalismo, responsável por mudanças no paradigma do Estado Constitucional, destacando-se dentre tais alterações o modo de vislumbrar o texto constitucional, não mais como mero documento de ordem política, mas dotado de normatividade, assumindo crucial condição normativa de garantia dos cidadãos. Destarte, considerando o conteúdo com alto grau de elementos principiológicos, a Constituição impõe repensar o modo de fazer o Direito Administrativo, evidenciado as insuficiências da vetusta concepção positivista fundada no dedutivismo[36]. Esta expressão, neoconstitucionalismo, tem gerado diversos debates, não apenas por suas ambigüidades, mas por certos exageros e posturas que contribuem para um voluntarismo no processo decisório, como bem destaca Lenio Luiz Streck, embora reconheça a importância inicial do movimento para marcar a necessidade de ultrapassar o vetusto constitucionalismo de feições liberais[37], mas preferindo utilizar a expressão Constitucionalismo Contemporâneo: 

“Assim, é preferível chamar o constitucionalismo instituído a partir do segundo pós-guerra de Constitucionalismo Contemporâneo (com iniciais maiúsculas), para evitar os mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo. Na verdade, refiro-me aos modelos constitucionais que implementam, de fato, o plus normativo democrático.” (STRECK, 2012b, p.61).

De qualquer sorte, a concepção do constitucionalismo, como alude o autor, deve pautar-se pelo debate sobre a teoria do Estado e as consequências do Estado Democrático de Direito, bem como pela necessidade de repensar a teoria das fontes, a teoria da norma e a teoria da interpretação[38]. Tais questões são importantes para problematizar o conceito do Direito Administrativo, considerando não apenas sua dimensão normativa como fonte primordial do Direito, as questões relacionadas com a localização dos princípios constitucionais da Administração Pública no âmbito da teoria da norma jurídica, bem como sua aplicação/compreensão.

Como conceito hermenêutico, portanto, o Direito Administrativo é compreendido como prática social, dotada de um conjunto de objetivos e princípios que lhe conferem sentido, não um sentido abstrato, obtido por meio de conceitos semânticos, mas um propósito construído no âmbito das relações intersubjetivas e projetado no horizonte da história institucional da comunidade política a que pertence. Este propósito, compreendido hermeneuticamente, é condição de possibilidade para a aplicação de regras e resolução de casos nos quais figurem os cidadãos e a Administração Pública.  Quando Ronald Dworkin examina o significado da interpretação construtiva, refere:

“Em linhas gerais a interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou gênero aos quais se imagina que pertençam. Dai não se segue, mesmo depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem.”(DWORKIN, 1999, p. 63-64).

A partir desta concepção, três questões importantes devem ser destacadas e merecem estudo próprio: (a)o Direito Administrativo não pode ser vislumbrado como simples questão de fato; (b) como prática social possui um propósito construído intersubjetivamente ao longo de sua história institucional e (c) o intérprete/aplicador não possui liberdade para atribuir qualquer sentido ao Direito Administrativo e os respectivos institutos que lhe são próprios. Como o próprio Dworkin aduz, a historicidade exerce uma espécie de coerção sobre os intérpretes. Tratando-se de um conceito interpretativo, é certo que possui importante dimensão social, no entanto, como menciona o autor, “...sua complexidade, função e consequências dependem de uma característica especial de sua estrutura. Ao contrário de muitos outros fenômenos sociais, a prática do direito é argumentativa.” (DWORKIN, 1999, p. 40).

Conclusão

No entendimento de Rüdiger Safranski, Heidegger possuía verdadeira paixão por indagar, mergulhado em uma espécie de devoção do pensar, pois abria novos horizontes, assumindo especial força a pergunta sobre a qual se debruçou uma vida inteira: a pergunta pelo ser (SAFRANSKI, 2000, p. 496)[39]. Este breve estudo mirou este olhar questionador, ou seja, tratou de compreender o Direito Administrativo deslocando-o para este aberto da historicidade, para a clareira propiciada pelo meditar constitucionalizante. Daí a importância da hermenêutica, pois cria as condições de possibilidade para um conjunto de indagações originárias sobre este campo do Direito.  Parte-se do pressuposto segundo o qual interpretar não depende do método, mas do modo-de-ser no mundo. Em tal caminho filosofante, a historicidade do Direito Administrativo foi de grande relevância, levando a presente investigação para as vivências jurídico-administrativas, assumindo-se que tais vivências não se constituem em meros objetos, prontos e à espera para serem acoplados ao presente, mas devem ser problematizadas como propósitos construídos intersubjetivamente por uma comunidade política, relativamente ao modo-de-ser do administrar a coisa pública e reveladores da própria faticidade da existência humana.

O Direito Administrativo consolidou-se a partir e no modelo de Estado Liberal, marcado pelo ideal revolucionário francês de materializar nas ciências a verdadeira razão humana, caracterizando-se pela exigência de propiciar aos indivíduos o exercício pleno de suas liberdades, livres da ingerência estatal, apresentando-se relevante, por outro lado, a manutenção da ordem e da segurança. Digno de nota como modo-de-ser racionalizador, afigura-se o princípio da separação de poderes, bem como a ideia de legalidade tão importante para resguardar os ideais burgueses preponderantes. O Estado Democrático de Direito, desta forma, funcionou como síntese autêntica entre as dimensões de Estado Liberal e Social, vocacionando-se para o desenvolvimento pleno dos cidadãos nos planos social, econômico e cultural, apresentando também como característica primordial a constitucionalidade. Com efeito, é ultrapassado o caráter autoritário ainda manifesto na dimensão do Estado Social, corolário de sua ação interventiva, pois na esfera do paradigma democrático a transformação do status quo desvela-se com a participação dos cidadãos. Outrossim, assume especial relevância a normatividade dos direitos fundamentais, criando as condições de possibilidade para controlar a atuação mais substancial da Administração Pública e alterar profundamente os parâmetros de legalidade, agora matizados por toda a gama de princípio constitucionais. Pode-se dizer que a linguagem constitucionalizante é o locus privilegiado para o acontecimento do sentido (propósito construído pela história institucional) do Direito Administrativo

Lançar-se neste caminho questionador exige desvelar a crise do Direito Administrativo, como crise, a partir de uma tríplice análise, nos termos do pensamento de Martin Heidegger (HEIDEGGER, 1999, p. 42): (a) a crise na relação dos operadores jurídicos com o Direito Administrativo, sendo imperioso dar-se conta de que o modo-de-ser das ciências somente pode ser compreendido em conexão com a existência humana. Por tal razão, é importante a postura filosofante que prima pela interrogação dos conceitos interpretativos, presente no labor dos operadores do Direito; (b) a crise do Direito Administrativo no tocante a sua posição no conjunto de nossa existência histórico-social. Trata-se de meditar sobre a própria função do Direito Administrativo e a dogmatização dos seus institutos, além do debate sobreas condições de possibilidade para materializar o horizonte de sentido do Constitucionalismo Contemporâneo. Por fim (c) a crise na estrutura essencial interna do Direito Administrativo mesmo. Esta crise manifesta-se como crise de fundamentos, pois é crucial questionar as próprias bases institucionalizadas do Direito Administrativo.

Finalmente, uma última palavra. Por certo, as indagações aqui lançadas destinam-se a provocar o salutar debate sobre Direito Administrativo. De qualquer sorte, trata-se de apenas iniciar uma caminhada, buscando contribuir para construir possibilidades. Martin Heidegger, em seu escrito Meu Caminho para a Fenomenologia interrogou-se sobre o papel da fenomenologia naquela época, julgada como algo do passado, assim respondendo tal questão:

“... a Fenomenologia não é nenhum movimento, naquilo que lhe é mais próprio. Ela é a possibilidade do pensamento – que periodicamente se transforma e somente assim permanece – de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a Fenomenologia for assim compreendida e guardada, então pode desaparecer como expressão, para dar lugar à questão do pensamento, cuja manifestação permanece um mistério. O sentido da última frase já vem expresso em Ser e Tempo (1927), pág. 38: ‘O essencial para ela (a Fenomenologia) não consiste em realizar-se como ‘movimento’ filosófico. Acima da atualidade está a possibilidade. Compreender a Fenomenologia quer unicamente dizer: capta-la como possibilidade.” (HEIDEGGER, 1979, p. 301-302).

Que as interrogações lançadas ao longo deste estudo, igualmente, possam ser captadas como possibilidade.


Notas e Referências:

[1] Sobre a questão ver STRECK e MORAIS (2000, p. 24-25)

[2] A expressão Dasein também é utilizada como “pre-sença”, em que pese ser comum a tradução para línguas latinas a expressão “ser-aí”, cf. LEÃO (1995, p. 309). Segundo esclarece “pré-sença” não é sinônimo de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação natural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem constrói seu modo de ser, a sua existência, a sua história, etc., de acordo com entrevista de Heidegger ao Der Spiegel. Ver Tempo Brasileiro, nº 50.

[3] Portanto, esta concepção de homem e de mundo, por óbvio, influenciará a estruturação do Direito Administrativo, a organização do Estado e o exercício dos poderes públicos. Haverá uma crescente tendência cientificista de racionalização, buscando, assim, sistematizar em detalhes os institutos jurídico-administrativos. Este ideal, no entanto, até hoje parece dominar as práticas dogmatistas do Direito Administrativo.

[4] O autor refere que um dos aspectos criticáveis da razão moderna reside exatamente nesta sua tendência para o abstrato, o que não implica em construir uma análise pobre, pelo contrário. O produto desta forma de pensar durante o período renascentista foi muito rico. Faz-se mister salientar, no entanto, a inadequação deste modo de pensar, em especial, para o mundo atual, cheio de complexidades, na medida em que a generalidade ocasiona uma miopia para as especificidades. O específico, o particular, não pode possuir a pecha de irrelevante e que não deve ser considerado em uma análise científica. Na Ciência Jurídica, em especial no Direito Administrativo pós-revolução francesa, conforme será examinado posteriormente, está presente esta marca.

[5] Deve ser salientado, já a partir do século XV, mesmo que de forma incipiente, começa a surgir uma construção doutrinária do Direito Público, como decorrência dos conflitos políticos da época e que mais consistiam em defesas de uma ou outra parte, sendo que António Francisco de Sousa aduz que a divulgação da chamada jurisprudência dogmático-sistematizadora, corrente surgida no século XVI, colaborou para o surgimento desta disciplina. Constituía-se em continuação dos postulados da escola humanista, com o objetivo de proceder a elaboração científica e sistemática da matéria legal, levando, por exemplo, a discussão da clássica divisão direito público e direito privado(SOUSA, 1995, P. 60).

[6] Quando se fala em dogmática jurídica, é preciso compreender uma especial forma de teorizar o Direito, com base em determinados pressupostos. Neste sentido, vale a referência de Enrique Zuleta Puceiro: “A dogmática é vista assim como um saber esencialmente descritivo, baseado em um conjunto de procedimentos abstratos, capazes de obter, a partir dos materiais do direito positivo, uma rede de instituições que, reagrupadas e ordenadas segundo criterios de coerencia interna, constituem-se em sistema.”(PUCEIRO, 1981, p. 11). No entendimento do autor, considerando a expressão "dogmática" como um conceito histórico, suscetível a um conjunto de variantes sociais, políticas e ideológicas, não se pode expressá-la de um modo universal, como se pudesse ser caracterizada em qualquer época da história. A dogmática é uma forma de ver o Direito dentro de um determinado momento histórico, o que impede a sua compreensão como um corpo doutrinário homogêneo. O paradigma dogmático para Enrique Zuleta Puceiro apresenta os seguintes pressupostos de base: a) a consolidação do conceito moderno de ciência, orientado nem tanto para a verdade ou falsidade de suas conclusões ou resultados como ao caráter sistemático dos mesmos; b) a historificação do objeto do saber, através de uma identificação dos conceitos de direito e lei positiva; c) o abandono da teoria do direito natural, entendida como ontologia social subjacente à análise científica; d) a substituição de uma lógica de problemas pelos métodos da lógica formal e d) a definitiva separação entre teoria e praxis e a afirmação do saber jurídico como saber essencialmente teórico, presidido por uma atitude axiologicamente neutral e tendencialmente descritiva (Idem, p. 15-6). Com efeito, dentro de tais pressupostos, o pensamento dogmático teria dois objetivos básicos: 1º) reduzir como objeto de sua análise as normas positivas de origem estatal e 2º) a construção científica de um sistema conceitual capaz de dar razão rigorosa à totalidade da experiência jurídica, elaborado a partir do material oferecido pelas regras positivas (PUCEIRO, 1981, p. 18).

[7] Conforme menciona Maria da Gloria Ferreira Pinto Dias Garcia: "Constituído por princípios universais sobre as relações humanas, enquanto emanações de um tipo abstracto de Homem, o direito natural racionalista, aliado à soberania nacional, é, em grande medida responsável pela uniformidade da onda política revolucionária que, sobrepondo-se às fronteiras dos diferentes Estados, une os povos num desejo comum de liberdade e igualdade - a concepção liberal repousando sobre a defesa da liberdade, junta-se à concepção democrática apoiada na soberania nacional."(FERREIRA PINTO DIAS GARCIA, 1994, p.264).

[8] O autor menciona que as tentativas de aprofundamento epistemológico nesta época estavam impregnadas pela fé absoluta na ordem matemática do conhecer. A verdade, portanto, seria um valor puramente lógico, constituindo-se na mesma coisa que proposição verdadeira. Vale aqui, por exemplo, referir o pensamento de Thomas Hobbes, para quem a razão seria, por si mesma, a razão exata, como a aritmética é uma arte certa e infalível.

[9] Na base desta forma de pensamento é possível identificar algumas formulações teóricas típicas do Estado Moderno. Por exemplo, para Thomas Hobbes, o autor que rompe definitivamente com o método aristotélico, a lei seria um mandato que expressa a vontade do soberano e recebe a sua autoridade exclusivamente do fato de representar a própria vontade do soberano. Estabelece-se a personificação da ideia do legislador racional, o que possibilita defender a noção de coerência sistemática da lei. Portanto, o Estado seria a expressão absoluta da razão, não podendo surgir facilmente uma contradição nas leis e, mesmo quando tal ocorresse, a mesma razão seria capaz, por meio de interpretação, de eliminar tal incoerência(CALVO GARCIA, 1994, p. 45).

[10] Dentro da concepção racionalista são fundamentais os seguintes princípios orientadores: a) o mundo constitui-se em um sistema ordenado, regido por leis universais e necessárias; b) o homem é um ser racional, dotado, de capacidade para compreender tal legislação objetiva e c) a ciência consiste no descobrimento e formalização de ditas leis, por meio de proposições universais dotadas de idêntica necessariedade e universalidade que seu objeto.(PUCEIRO, 1981, p. 24).

[11] O método lógico-dedutivo, que posteriormente será fundamental para o positivismo jurídico, apresenta-se como estruturante da dogmática jurídica, capaz de conferir segurança ao sistema jurídico, acomodando a nova ideologia liberal relativamente às forças do mercado.

[12] É importante salientar que o critério do serviço público foi de grande importância para o desenvolvimento do Direito Administrativo em França, considerando a existência do Conselho de Estado, órgão encarregado de dirimir os conflitos entre cidadãos e a Administração Pública. Com efeito, determinar a competência do Conselho de Estado ou dos órgãos do Poder Judiciário, incumbidos de solver lides privadas, seria crucial. Como o Brasil não adota o sistema de justiça administrativa ou do contencioso administrativo, este debate não possui similar repercussão.

[13] Conforme Fernando Garrido Falla(1994, p. 114), “definimos el Derecho administrativo como aquella parte del Derecho público que regula la organización y el funcionamiento del Poder ejecutivo y sus relaciones con los administrados, así como la función administrativa de los diversos Poderes y Organos constitucionales del Estado”.

[14] No âmbito da doutrina pátria, Hely Lopes Meirelles (1999, p.29) define o Direito Administrativo como um “conjunto harmônico de princípios que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado”. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro( 2012, p.48), é o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública”. No entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello,(2012, p.29) “o direito administrativo é o ramo do direito público que disciplina a função administrativa, bem como pessoas e os órgãos que a desempenhem”.

[15]A chamada Teoria dos Indícios Formais é fundamental para melhor compreender as condições de possibilidade de ultrapassar um modo de pensar metafísico, formalista e objetificador, ou seja, o pensamento que tudo quer abarcar. Refere expressamente Ernildo Stein: “Onde temos os indícios formais não temos o todo da coisa, temos os elementos formais que remetem a algo que pode estar disperso na condição humana. Dela apanhamos aspectos limitados, mas não o todo da condição humana. Como nunca conseguimos completar a exposição dos indícios formais, nunca acabamos a analítica existencial. Ela é a caminho, sempre um processo em formação”(STEIN, 2002, p.166).

[16] O tema da Teoria da Decisão Jurídica tem sido desenvolvido de forma pioneira por Lenio Luiz Streck, relativamente à decisão judicial, na qual o autor refere a importância de desenvolver um conjunto mínimo de princípios conformadores de um agir concretizador da Constituição(STRECK, 2013, p. 329-330). Trata-se de questão crucial para o Direito Administrativo, pois no âmbito da concepção hermenêutica, é traduzido como agir concretizador da Constituição, relativamente aos objetivos de ações administrativas. Para o autor há cinco princípios no conjunto de uma Teoria da Decisão Judicial: (a)preservar a autonomia do direito; (b)controle hermenêutico da interpretação constitucional; (c)o efetivo respeito à integridade e à coerência do direito; (d)o dever fundamental de justificar as decisões ou de como motivação não é igual à justificação e (e)o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.(STRECK, 2013, p. 330-348).

[17] A importante imbricação entre as concepções filosóficas de Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin tem sido realizada por Lenio Luiz Streck, com o propósito de resgatar o que o autor denomina de mundo prático do direito: “Resgatar o mundo pratico do direito e no direito significa colocar a interpretação no centro da problemática da aplicação jurídica, explorar o ‘elemento hermenêutico’ da experiência jurídica e enfrentar aquilo que o positivismo desconsiderou: o espaço da discricionariedade do juiz e o que isso representa na confrontação com o direito produzido democraticamente.”(STRECK, 2012, p. 46).

[18] A consciência histórica efeitual desempenha importante papel no pensamento de Gadamer, propiciando o dar-se conta da história não apenas como instância de sentidos passados, previamente dados, mas como condição produtiva do ato de entender e guardião do Ser, conforme refere Custódio Luís S. de Almeida: "Para ele, a história não é um depósito de acontecimentos passados, completados e canonizados e, conseqüentemente, não há sentido autêntico já dado de uma vez para sempre, que precise ser passivamente descoberto. Pelo contrário, a consciência histórica é a dimensão sempre crítica da hermenêutica, que entende a história como processo contínuo e sempre influente, que jamais se cristaliza num passado distante e fechado. A consciência histórica é guardião do Ser que sempre precisa ser compreendido; nela se apreende a própria consciência da finitude." (ALMEIDA, 2002, p. 276). Partindo-se de tal afirmação, há uma nítida influência de Heidegger, que tantas vezes afirmou o caráter de finitude da compreensão. Quando se fala em consciência histórica não se pode adotar a posição objetivista ou coisificadora, pretendendo reduzi-la a algo a ser apreendido; a história é um todo a ser renovado em cada momento do existir do Dasein, um feixe de sentidos que se deu, que possibilita a compreensão no presente e continuará sua marcha temporal no rio de sentido que é a história.

[19] A expressão história efeitual não permite definições breves, mas Gadamer evidencia os seus elementos estruturais: conhecimento da situação hermenêutica especial e do horizonte que a caracteriza; relação dialógica entre intérprete e texto; dialética entre pergunta e resposta e abertura à tradição. (BLEICHER, 1992, p. 157).

[20] A experiência de Gadamer, é essencial para vislumbrar o caráter de finitude do homem e relaciona-se com a teorização heideggeriana de temporalidade do Dasein, pois a temporalidade é o modo de ser do Dasein e a compreensão não pode estar descolada do mundo enquanto possibilidade de experiências. Ter a dimensão da experiência significa também ter mundo. Aliás, as concepções objetificantes e dogmáticas, como não possuem no seu campo de visão a experiência, levam a uma perda de mundo, isto é, como o processo de compreensão é ditado por uma instância abstrata e metafísica, um critério universal, perde-se a condição-de-ser-no-mundo do conhecimento. A historicidade gadameriana reside em um aspecto primordial do homem, que é o fato de estar influenciado pela história como um acontecer. A história é essencialmente experiência. Portanto, conforme será abordado, não há como problematizar o conceito de Direito Administrativo sem refletir sobre a experiência.

[21] Segundo Hans Georg-Gadamer: "La verdad de la experiencia contiene siempre la referencia a nuevas experiencias. En este sentido la persona a la que llamamos experimentada no es sólo alguien que se há hecho el que es a través de experiencias, sino también que está abierto a nuevas experiencias. La consumación de su experiencia, el ser consumado de aquél a quien llamamos experimentado, no consiste en ser alguien que lo sabe ya todo, y que de todo sabe más que nadie. Por el contrario, el hombre experimentado es siempre el más radicalmente no dogmático, que precisamente porque há hecho tantas experiencias y há aprendido de tanta experiencia está particularmente capacitado para volver a hacer experiencias y aprender de ellas."(GADAMER, 1993, p. 431-432).

[22] O administrativista Eduado Garcia de Enterría possui interessante estudo no qual assumi a posição de que a Revolução Francesa teria sido o marco divisor, responsável até mesmo pelo surgimento do Direito Público como um todo (ENTERRÍA, 1995). A seguinte passagem é marcante da posição do autor, tomando o movimento revolucionário como verdadeiro ato fundador de um novo discurso: “La Revolución Francesa há aportado a la historia de la cultura occidental en el terreno del lenguaje jurídico algo mucho más sustancial que un repertorio léxico determinado, que haya que enumerar analíticamente; há aportado un discurso enteramente nuevo para explicar las relaciones entre los hombres y su organización social y política como material del Derecho, discurso que expresa un sistema conceptual original a cuyo servicio há aparecido y se há desarollado a lo largo de dos siglos todo un ‘universo léxico’ complejo y nutrido absolutamente novedoso, que há cortado como un tajo la tradicón histórica” (ENTERRÍA, 1995, p. 37). Portanto, dentro desta concepção, a Revolução Francesa representou novo momento de nomeação das coisas jurídicas, oferecendo um modelo diferente de relação entre os homens, fundando uma nova linguagem e uma nova sociedade, necessitando para tal mister, é claro, de um diferenciado campo lingüístico simbólico. A implantação dos princípios revolucionários necessitavam substituir os do antigo regime, na medida em que para a classe burguesa era imperioso um campo de poder a fim de consolidar a liberdade e a igualdade tal como tinham concebido. Não se pode cair no exagero extremado de que a Revolução Francesa teve por objetivo sincero exercer o poder em nome do povo, como um todo, considerando, como já referido, que o acesso democrático era restrito a alguns, obviamente, proprietários.

[23] Para António Francisco de Sousa: “a garantia jurisdicional nos conflitos entre a Administração e os cidadãos estava declarada na lei. No entanto, era exercida não por tribunais imparciais e independentes, mas por tribunais cujos membros eram funcionários públicos, estavam sujeitos à disciplina da função pública e eram livremente nomeados e destituídos. A Administração era pois juiz em causa própria.”(SOUSA, 1995, p. 190).

[24] Conforme Alex de Tocqueville, de forma expressa: “Outrora no tempo em que tínhamos assembleias políticas na França, ouvi um orador falar na centralização administrativa, ‘esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja.’ Admito que a centralização é uma bela coisa, consinto que a Europa nos inveje, mas sustento que não é uma conquista da Revolução. É ao contrário, uma conquista no antigo regime, aliás a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixar-se no novo estado social criado por esta revolução.”(TOCQUEVILLE, 1989, p. 77).

[25] Sobre a questão da tutela administrativa sobre os cidadãos, menciona o autor: “No antigo regime, como hoje, não havia nenhuma cidade, aldeia, vilarejo ou povoado da França, por menor que fosse, nem hospital, fábrica, convento ou colégio algum com o direito de administrar independentemente seus negócios particulares ou seus bens. Na época, como aliás hoje, a administração tutelava todos os franceses e, se a insolvência da palavra ainda não se produzira, a coisa em si já existia.”(TOCQUEVILLE, 1989, p. 88).

[26] Vale e referência do autor: “Como o rei quase nada podia fazer em relação aos juízes, não tendo o direito de revogá-los nem transferi-los para outro lugar nem mesmo elevá-los a um posto superior; numa palavra, como não podia dominá-los nem pela ambição nem pelo medo, sentiu-se rapidamente tolhido por esta independência. Isto o levou a retirar-lhes o conhecimento dos negócios que interessavam diretamente o poder e criar para seu uso particular uma espécie de tribunal independente, assim oferecendo aos seus súditos uma aparência de justiça sem assustá-los pela realidade.” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 89).

[27] Há divergências não apenas com relação ao que é o liberalismo, bem como qual a sua origem, mas pode adotar-se o entendimento segundo o qual teve origem nas lutas travadas na Inglaterra, culminando com a Revolução Gloriosa de 1688 contra Jaime II, cujos objetivos revolucionários eram a tolerância religiosa e o governo constitucional, buscando-se, portanto, fixar limites para a autoridade, além da divisão da autoridade.

[28] São interessantes as referências de Giannini sobre a absolutização do princípio da livre iniciativa e os reflexos no Estado, mencionando algumas das consequências destrutivas: a) foram liquidados os enormes patrimônios de terrenos apreendidos anteriormente como bens não privados do monarca; b) foram extintas empresas em mãos públicas, sobretudo no setor de defesa, como laboratórios, arsenais militares e navais; c) foi proibido todo tipo de auxílio público a empreendimentos privados como auxílio financeiro direto ou auxílio administrativo indireto (GIANNINI, 1986, p. 40-41).

[29] No entendimento de Paulo Bonavides pode-se falar em Estado Social quando o Estado confere os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata casa própria, controla as profissões, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual...” (BONAVIDES, 1996, p. 186) Já, no entendimento Juan Alfonso Santamaria Pastor o Estado “...asume la responsabilidad de conformar el orden social en el sentido de promover la progresiva igualdad de todas las clases sociales y de asegurar a todos los cidadanos el acceso a un cierto nivel de bienestar económico, el disfrute de los bienes culturales y una cobertura de sus riesgos vitales; en términos jurídicos, equivale a la imposición a todos los poderes públicos de un deber de actuar positivamente sobre la sociedad, en una línea de igualación progresiva de todas las clases sociales y de mejora de sus condiciones de vida.” (SANTAMARIA PASTOR, 2000, p. 108).

[30]Segundo o autor, a partir do final do século XIX, os países mais desenvolvidos começaram a implementar políticas sociais, cujo objetivo era remediar as péssimas condições vitais das camadas mais desamparados da população. A atuação dos entes estatais não buscava incidir somente sobre os aspectos econômicos, mas também sobre a promoção do bem-estar geral, cultura, educação, defesa do meio ambiente, promoção de regiões atrasadas, etc.

[31] Trata-se de expressão cunhada por Ernest Forsthoff, pois o Estado Social caracteriza-se pela “procura existencial”(Daseinvorsorge), ou seja, trata-se de não simplesmente proteger a sociedade do Estado, mas de proteger a sociedade por meio do Estado, constituindo-se o ente público instrumento de correção social. O Estado deve responsabilizar-se pela procura existencial dos cidadãos, quer dizer, levar a cabo as medidas que assegurem ao homem as possibilidades de existência que não pode garantir por si mesmo, conforme refere Manuel García-Pelayo (1996, p.27).

[32] O autor refere de forma expressa “...assistiu-se depois da II Guerra Mundial a um fenómeno de regionalização ou descentralização política, especialmente no centro da Europa, fenómeno esse que se alastrou nos últimos anos a Portugal e Espanha. Essas novas instâncias territoriais entre o Estado e as autarquias tiveram motivações diversas, mas podemos dizer que em geral visaram superar o modelo de Estado centralizado preconizado pela França napoleónica e que se alastrou a muitos países (com excepção dos países germânicos). Por outro lado, a acumulação desmesurada de funções e competências nos organismos da Administração pública levou muitas vezes à sua ruptura funcional, pelo que foi necessário recorrer a entes dotados de autonomia (administrativa e financeira) para a prossecução de fins específicos pertencentes à entidades que os criou”( SOUSA, 1995, p. 404).

[33] Sobre o tema também refere Eduardo Garcia de Enterría: “La Constitución, por una parte, configura y ordena los poderes del Estado por ella construídos; por outra estabelece los limítes del ejercicio del poder y el ámbito de libertades y derechos fundamentales, así como los objetivos positivos y las prestaciones que el poder de cumplir en beneficio de la comunidad. En todos esos contenidos la Constitución se presenta como un sistema preceptivo que emana del pueblo como titular de la soberania, en su función constituyente, preceptos dirigidos tanto a los diversos órganos del poder por la propria Constitución estabelecidos como a los cidadanos.” (ENTERRÍA, 1991, p. 49).

[34]O autor refere alguns princípios e impulsos jurídico-constitucionais que devem repercutir e repercutiram no direito administrativo: 1)com relação aos direitos fundamentais, as restantes prescrições constitucionais e os princípios constitucionais valem para o Estado como um todo, não existindo espaços juridicamente livres; 2) o reconhecimento constitucional das tarefas da administração de prestação e administração de direção exige o cuidado e desenvolvimento dos instrumentos jurídico-administrativos adequados para o cumprimento das tarefas típicas da administração de prestação e administração de direção no sentido estatal-social e estatal-cultural; 3)o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio determina que o indivíduo não pode ser tratado meramente como súdito da administração, mas como cidadão emancipado. Tal status tem como conseqüências, por exemplo, a reconhecimento de direitos subjetivos, de contratos entre cidadãos e administração, além da obrigação de a administração considerar em decisões discricionárias os interesses protegidos jurídico-fundamentalmente do cidadão individual.(MAURER, 2006, p. 21).  

[35] Sobre a expressão "pos-positivismo" e sua significação, ver BONAVIDES (1996, p. 260-265) e ALEXY (1997, p. 74).

[36]Este tema é debatido por SASTRE ARIZA (2003, p.245). O autor destaca que com o neoconstitucionalismo o modelo de ciência jurídica começa a exigir algo que se contrapõe ao defendido pelo positivismo jurídico. Opõe-se um modelo em que as principais características são: a inevitável intervenção dos juízos de valor na análise do Direito e a prioridade do caráter prático da ciência jurídica. De outra banda, destaca que a incorporação de conteúdos materiais supõe que a teoria jurídica não pode ser independente da política. Aqui mais uma vez evidencia-se a correção das críticas de Lenio Luiz Streck sobre o neoconstitucionalismo, pois muito embora procedentes as críticas construídas contra o positivismo jurídicos, em diversos aspectos, manteve os mesmos problemas.

[37] Em virtude deste debate foi editada importante obra intitulada Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli (2012b, p. 61) no qual faz críticas significativas ao movimento neoconstitucionalista, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a relevância das questões colocadas.

[38] No âmbito do Direito Administrativo, ver OHLWEILER(2005, p. 129-164).

[39] No entendimento de Rüdiger Safranski: “o sentido dessa pergunta não é senão esse abrir, esse remover, esse sair para uma clareira onde de reprente é concedido ao evidente (Selbstvertändlicen) o milagre do seu ‘aí’ (Da); onde o ser humano se vivencia como local onde se escancara, onde a natureza abre os olhos e percebe que está ali, onde portanto no meio do ente existe um local aberto, uma clareira, e onde é possível a gratidão por tudo isso existir.” (SAFRANSKI, 2000, p. 496)

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Leonel Pires Ohlweiler. . Leonel Pires Ohlweiler é Mestre e Doutor em Direito (UNISINOS). Professor e pesquisador do UNILASALLE. Desembargador do TJRS. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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