O DIREITO À CIDADE: A PROPÓSITO DO DEBATE SOBRE O PLANO DIRETOR DA PAULICEIA DESVAIRADA

17/06/2023

Coluna Por Supuesto

A maturidade hermenêutica, que constitui um ganho inestimável na aplicação das diretrizes constitucionais na América Latina, permitiu que alguns artigos plasmados nas constituições e que refletem lutas históricas das sociedades, tivessem seus conteúdos e alcances destrinchados e assimilados. No Brasil, muito embora os obstáculos nos caminhos da democracia, a ideia de objetivos fundamentais da República, de eliminação das desigualdades e reconhecimento da dignidade humana como princípio fundamental, tem impactado e fortalecido a luta por direitos como o direito à cidade e à moradia.

E não foi por acaso, senão como resultado da reflexão sobre a cruel exclusão territorial nas grandes urbes e o empenho, esforço coletivo e as justas exigências dos movimentos pela reforma urbana, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no artigo 128 que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

A Carta determinou, igualmente, no parágrafo 1º do mesmo artigo, que O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

Dessarte, as diretrizes gerais dessa política, bem como Plano Diretor, devem ser plasmadas em uma lei municipal. Isso significa, em interpretação ancorada em um regime político democrático - que como tem sido tantas vezes advertido, não se esgota na escolha de representantes senão que implica a deliberação e a participação ampla da cidadania - que tanto as diretrizes como o Plano devem ser desenhados, debatidos e construídos em ambiente público, e que cada decisão deve ser motivada e sustentada pelos objetivos constitucionais.

Ficou, assim, constitucionalmente decantado um panorama de regras do jogo para lutar pela cidade, que como diz David Harvey é muito mais que o direito aos recursos que a cidade tem, porque consiste no direito de muda-la e reinventá-la, um dos direitos humanos mais negligenciados.[1] E acontece que não só hoje, senão que praticamente desde o advento do sistema de acumulação, reinventar a cidade para os menos favorecidos é, desde logo, renovar a perspectiva, entendendo que a cidade é, a olhos vista, um motor de exclusão enquanto cenário de concentração pulsante de um sistema movimentado sobre a base concentração de renda e do mercado.

Pois bem, na cidade de São Paulo, - Paulicéia desvairada ... Luz e bruma ...Forno e inverno morno - a Lei 16.050 de 31 de julho de 2014 determina a política de desenvolvimento urbano e o Plano Diretor Estratégico. O Documento consagra, dentre outros princípios no seu artigo 5º, o da função social da cidade, que (...) compreende o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, ao acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento socioeconômico e ambiental, incluindo o direito à terra urbana, à moradia digna, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho, ao sossego e ao lazer.  

Logo determina o Direito à Cidade, entendido como o processo de universalização do acesso aos benefícios e às comodidades da vida urbana por parte de todos os cidadãos, seja pela oferta e uso dos serviços, equipamentos e infraestruturas públicas.  

É esta lei a que está novamente em debate na Câmara Municipal, tendo em vista a apresentação de um substitutivo de revisão – PL 127 de 2023 – que busca, segundo o relator do projeto e dentre outras questões, “trazer uma série de incentivos para que se possa aproveitar melhor os terrenos e construir mais unidades habitacionais, (...) fiscalizar a correta destinação dos imóveis do HIS (habitações de interesse social) e HMP (habitações de mercado popular) conforme a renda daqueles que o adquirem”. [2] 

Não é esta, entretanto, a visão que se pode extrair exatamente do projeto, especialmente pelas críticas notadamente feitas ao ordenamento territorial e em particular ao adensamento, ou seja, à maneira como se planeja e organizam as concentrações de pessoas nos bairros para poder criar as condições de prestação adequada de serviços e promoção do bem-estar. Na visão constitucional, o direito à cidade é moradia e habitação, mas é algo que também implica reconhecer a interconexão sistémica dos direitos fundamentais. É dizer, inclui o direito à praça, ao parque e o acesso à escola, às condições de segurança, dentro de uma interação e integralidade de direitos que se complementam no cenário urbano – fenômeno da complementariedade de direitos fundamentais - e no dia a dia das pessoas.  

Vale a pena, também, observar as críticas feitas pela Central de Movimentos Populares – CMP – com relação à necessidade de que as construtoras não sejam isentas do pagamento ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) prestando serviços. E  chama a atenção a maneira como fica escancarada a persistência da luta pela moradia e os interesses das grandes construtoras, numa cidade de mais de 52 mil pessoas em situação de rua. No conflito negativo de direitos entre propriedade e moradia, que supõe escolhas constitucionais e legais que devem ser naturalmente fundadas na dignidade humana, o administrador público deve resistir pressões da especulação imobiliária fundado na moralidade, a eficiência e os objetivos fundamentais do artigo 3º da Carta republicana.  

Certamente, não é raro observar, não só no Brasil, mas no conjunto das grandes metrópoles de América Latina, como a imensa maioria dos bairros populares nascem em regiões periféricas, em terrenos que em princípio não tem nenhum interesse para o mercado imobiliário, mas que transcorridos anos são valorizados pela própria expansão da cidade ou a realização de obras que contribuem à sua reconfiguração sem que existam necessariamente as devidas regularizações fundiárias. Com o renovado interesse imobiliário a ameaça de despejos, desocupações e expulsões de famílias de baixa renda se tornam constantes.   

Igualmente, em cidades como Lima, Bogotá ou Buenos Aires, grandes proprietários mantem imóveis desocupados, ao aguardo de serem valorizados em detrimento da efetividade do direito à moradia. Aqui lembramos das aulas de teoria dos direitos fundamentais nas quais temos sustentado que o grande engodo do revolucionarismo burguês foi fazer passar a parte como se fosse o todo, é dizer, proclamar o direito de propriedade como uma expansão da liberdade sem tocar as necessidades humanas. A especulação imobiliária resiste à compreensão dos direitos sociais porque o sistema está arquitetado para não efetivar as condições mínimas de vida digna. Isso não justifica às grandes construtoras, apenas demonstra seu atraso civilizatório como protagonistas do sistema.

No meio da leitura sobre o tema, lembramos de Henri Lefevbre, que publicou seu conhecido Le Droit à la Ville em 1968, deflagrando um amplo debate. A partir dessa reflexão a urbe se tornou uma categoria de análises em vários campos do conhecimento, que hoje encontra respaldo nas Conferencias e Programas da ONU para os Assentamentos Humanos, mas também e especialmente nos movimentos sociais dos mais diversos cantos do planeta que discutem formas de participação para aceder ao Direito à Cidade.

É preciso reforçar como todas as letras que o Direito à Cidade é um direito fundamental, histórico, que precisa de aplicabilidade direta e que quando se analisa no seu conteúdo jurídico, inevitavelmente se contrapõe à maneira como se edificou a cidade como centro gravitacional do capitalismo. Ainda que preexistentes ao próprio sistema, as cidades são cenário funcional de acumulação do capital industrial, comercial e financeiro. Isto é o que se evidencia em cada debate em São Paulo nesta conjuntura com relação ao PL que pretende alterar a lei de 2014.     

Como afirma Lefevbre: “(...) a cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor de uso e o produto é valor de troca”. [3]

No Constitucionalismo latino-americano vale a pena a leitura da Constituição Equatoriana de 2008 que no seu artigo 31 consagra o Direito à Cidade, entre os chamados “Direitos do Bom Viver”:

“Las personas tienen derecho al disfrute pleno de la ciudad y de sus espacios públicos, bajo los principios de sustentabilidad, justicia social, respeto a las diferentes culturas urbanas y equilibrio entre lo urbano y lo rural. El ejercicio del derecho a la ciudad se basa en la gestión democrática de ésta, en la función social y ambiental de la propiedad y de la ciudad, y en el ejercicio pleno de la ciudadanía.”     

Para os habitantes de Paulicéia Desvairada, a dimensão do debate sobre o Plano Diretor é fulcral. Para quem olha desde fora, se está a falar do Plano Diretor da maior cidade de América do Sul e uma das 5 mais populosas do planeta. Não é pouco. As implicações jurídicas e políticas têm um alcance prolongado e impactos no mundo ao redor. Especialmente porque, em sintonia como Lefevbre, e em perfeita concordância com a imagem que hoje oferecem as cidades, insistimos, por um lado estas são uma máquina portentosa de efetivação de serviços, de imaginários de liberdades públicas, de múltiplos ambientes e heterogeneidades culturais, mas pelo outro são uma máquina de exclusão, de desigualdades, resultado de um sistema que não as poupa, por exemplo, do impacto da materialização cruel da propriedade trasvestida de direito fundamental em detrimento do autêntico e singelo direito humano à moradia. São Paulo não é uma exceção. É, pelo contrário, uma espécie de regra dentro dessa análise. Haveremos de voltar ao tema, por supuesto.  

 

Notas e referências

[1] 17 Contradições e o Fim do Capitalismo. São Paulo., Boitempo. 2016. P. 261.

[2] Ver “Revisão do Plano Diretor traz visão ampla de políticas públicas” In Folha de São Paulo, 16.06.2023. P. B2.

[3] Lefevbre. O Direito à Cidade. São Paulo. Centauro. 2001. P. 12.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Projeto VII // Foto de:  // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/nadiaelara/3509519566

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura