O dilema existente quanto à aceitação da suspensão condicional do processo ou a impetração de habeas corpus para discutir a legitimidade da acusação

07/04/2016

Por Maria Tereza Grassi Novaes e Jorge Coutinho Paschoal - 07/04/2016

A suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei 9.099/95, incidente nos crimes em que a pena mínima é igual ou inferior a um ano (crimes de médio potencial ofensivo)[1], visa a evitar o prosseguimento do processo, com toda a estigmatização decorrente[2].

O sursis processual deve ser apresentado logo com a denúncia, sendo que o magistrado, após recebê-la – e somente depois de apreciado o teor da resposta à acusação, caso seja mantida -, dará ao acusado a oportunidade para aceitar, ou não, o benefício.

A existência de um juízo de admissibilidade da acusação anterior à avaliação da proposta de suspensão serve justamente para evidenciar que a ação proposta deve ser legítima, devendo estar presentes os pressupostos processuais, as condições da ação e a própria justa causa.

Na prática, contudo, apesar da importância do juízo de admissibilidade[3], algumas vezes essa análise é feita de modo pouco satisfatório, podendo ser feita a proposta de suspensão do processo para casos em que o melhor seria a rejeição da acusação.

Em outras palavras, a suspensão condicional do processo, que era para ser um benefício, se aceita indevidamente (ou inadvertidamente), acarretará, na verdade, um malefício.

Imagine-se que uma ação penal seja proposta em desfavor de um indivíduo pela prática de um crime cuja materialidade delitiva seja muito questionável? O acusado, em sua resposta à acusação, discorrerá sobre os argumentos pelos quais careceria de justa causa a ação penal, a qual, não obstante, ainda assim poderá ser mantida pelo Juízo.

Assim, a despeito dos argumentos lançados, e diante da incerteza do desfecho da ação penal (em regra, é sempre uma incógnita qual será o provimento conferido ao caso, se condenatório ou absolutório) e diante de todo o sofrimento e a estigmatização que um processo criminal acarreta por si só[4], o “benefício” ofertado poderá ser aceito para que o acusado se veja, desde logo, livre do processo, lembrando-se que quem dá a última palavra é o réu.

Portanto, o ponto aqui reside no seguinte: o fato de o indivíduo aceitar a suspensão condicional do processo em ação penal proposta sem justa causa impediria a impetração de habeas corpus para que se reconheça da ilegalidade da exordial?

Mais antigamente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, ao julgar casos análogos ao supramencionado, entendia, de modo pacífico, que a aceitação da proposta de suspensão condicional constituía um óbice (até superveniente) à ação constitucional de habeas corpus, por não mais julgar existente o constrangimento ilegal e, consequentemente, o interesse de agir. O argumento consistia nisto: ao aceitar a proposta da suspensão condicional do processo, além de superada a coação, o réu estaria, de certo modo, renunciando ao interesse ao trancamento da ação penal via habeas corpus[5].

O cenário, contudo, vem se modificando; a esse respeito, cita-se o habeas corpus n. 85747/SP[6], em que se argumentou que, para o conhecimento do habeas corpus, “jamais se cogitou do cabimento do habeas corpus contra o recebimento da denúncia”[7]. Ora, pela mesma lógica, em sendo admissível o writ para trancar procedimento antes da dedução da ação penal, por que razão não se admitiria para trancar ação já proposta, embora suspensa?

Ademais, consignou-se que o interesse de agir residiria também no risco de, caso descumpridas as condições impostas no sursis processual, o curso do feito ser retomado, havendo a possibilidade de, ao final, serem impostas sanções restritivas ou privativa de liberdade[8].

A decisão citada deve ser comemorada, pois acabou com o dilema dos acusados entre aceitar o benefício da suspensão condicional ou discutir a tipicidade da conduta no writ[9].

Em que pese o entendimento sedimentado nos Tribunais Superiores, ainda hoje há decisões na contramão, julgando-se prejudicado o habeas corpus quando há a aceitação do benefício.

Nesta senda, podem ser citados diversos julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de que estaria “prejudicado o pedido de ordem de habeas corpus, a teor do que dispõe o art. 659 do CPP”[10] ou então pela “perda, por consequência, do interesse do paciente na obtenção do provimento judicial reclamado, mesmo porque, por enquanto, não mais se discute a situação, podendo, ao final, existir extinção da punibilidade, sem quaisquer consequências, pelo crime, ao paciente”[11].

Contudo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem um posicionamento mais contrário à admissibilidade do habeas corpus quando aceita a suspensão condicional, já conheceu do writ, nessas mesmas circunstâncias, em razão não só do constrangimento ilegal, “do qual não mais se poderia cogitar”, mas em homenagem ao princípio da ampla defesa e, considerando que o paciente poderia ter aceitado o benefício da suspensão condicional do processo para não perder a oportunidade de obtê-lo, pois ainda não julgado este habeas corpus”[12].

A despeito do posicionamento da jurisprudência a respeito do tema, importante ressaltar que o constrangimento ilegal vai muito além da possibilidade de retomada da ação penal em razão de descumprimento das condições estabelecidas.

Tendo-se em vista os diversos casos em que a proposta de suspensão condicional sequer deveria ter sido feita, pois a denúncia deveria ser rejeitada por falta de justa causa (vista em um sentido amplo), as próprias condições da suspensão – tais como a proibição de frequentar determinados lugares (que não são tão determinados assim!), de ausentar-se da comarca sem autorização do juiz e o comparecimento obrigatório a Juízo – implicam patente restrição ILEGÍTIMA à liberdade do acusado, caso a acusação já se mostre ilegítima, ab initio.

Igualmente, haverá constrangimento pelo fato de, caso aceita a suspensão condicional do processo, ter que se aguardar 5 anos para usufruir novamente do benefício.

É dizer, em casos de acusações ilegítimas, abre-se mão de um benefício que não deveria ser utilizado, o que poderá acarretar prejuízos ao imputado caso seja acusado novamente por um crime de médio potencial ofensivo. Assim, na hipótese de ser processado por outro crime que também autorize a concessão do benefício, o acusado terá que amargar o curso do processo, com o risco de ser condenado, sem possibilidade de ser proposta de suspensão.

Outrossim, cabe ressaltar que a maioria das empresas busca certidões criminais em face de seus colaboradores[13], as quais nem sempre são suprimidas com a aceitação ou mesmo com o cumprimento da suspensão condicional.

O constrangimento ilegal decorrerá também do fato de - por ter um apontamento criminal em seu nome, ainda que sem o trânsito em julgado - o acusado poder perder o seu emprego ou ser preterido em uma entrevista de emprego.

Em outros termos, nos casos em que é aceita a suspensão condicional do processo - e não obstante a falta de legitimidade da acusação – o constrangimento ilegal existirá não só por um, mas por vários motivos; havendo constrangimento ilegal, haverá, consequentemente, interesse de agir, mostrando-se incorreto que não se conheçam dos habeas corpus deduzidos.

Do exposto, é de se concluir que a aceitação da suspensão condicional do processo em nada prejudica a discussão quanto à ilegitimidade da acusação, seja pautada na atipicidade dos fatos, seja na falta de justa causa ou de pressuposto/condição da ação penal, sob pena de negativa de Acesso à Justiça


Notas e Referências:

[1] Os delitos em que cabível a suspensão condicional do processo são denominados de “médio potencial ofensivo”, cf. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. “Necessidade de ampliação da suspensão condicional do processo”. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2003, p. 327-329.

[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à lei dos Juizados Especiais Criminais. 8ªed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 226. No mesmo sentido: ANDRADA, Doorgal Gustavo Borges de. A suspensão condicional do processo penal: nos tribunais, juizados especiais criminais e nas justiças comum e especializadas. 2.ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1996 , p. 138.

[3]A respeito da importância do ato de recebimento da denúncia e a necessária mudança de mentalidade a seu respeito, ver ZILLI, Marcos. A admissibilidade da acusação e o fio de Ariadne. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 23, n. 267, p.4-6, fev. 2015. No mesmo sentido, ver também MORENO, Rafael Alvarez. Da inadequação da teoria da asserção para o processo penal: possibilidade de rejeição da ação penal por ausência de justa causa após o oferecimento da resposta à acusação. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 24, n. 279, p.09-10, fev. 2016

[4]A propósito do sofrimento que o processo penal causa ao acusado, ver CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Edicamp, 2002.

[5]Neste sentido, conferir: STJ, HC 35.203/SP, rel. Laurita Vaz, DJe 01.08.2006; RHC 14.245/SP, 5ª T., rel. Laurita Vaz, DJ 30.08.2014; RHC 12.416/SP, 6ªT., rel. Hamilton Carvalhido, DJ 26.03.2003; RHC 11.773/MS, 5ªT., rel. Edson Vidigal, DJ 02.09.2002; RHC 9753/SP, 6ªT., rel. Paulo Gallotti, DJ 01.10.2001.

[6] STF, HC nº85747, rel. Marco Aurélio, DJ 14.10.2005.

[7] Frase utilizada durante o julgamento pelo presidente do STF à época, Min. Sepúlveda Pertence.

[8]STJ, RHC Nº41527/ RJ 2013/0340956-7, rel. Jorge Mussi, 5ªT., DJe 11/03/2015; STJ, HC nº298763/SC 2014/0168353-6, rel. Jorge Mussi, 5ªT., dJe 14/10/2014; STJ, HC nº245677/RJ 2012/0121804-0, rel. Jorge Mussi, DJe 18/09/2013 e STJ - AgRg no RHC nº24689/RS 2008/0231643-7, rel. Marco Aurélio Belizze, 5ªT., DJe 10/02/2012. No STF: HC nº89179/RS, rel. Carlos Britto, 1ªT., DJe 13.04.2007 e RHC nº82365/SP, rel. Cezar Peluso, 2ªT., DJe 26.06.2008.

[9] FILHO, Euro Bento Maciel. Suspensão condicional do processo e atipicidade da conduta – um dilema enfrentado pelo STF. Bol. IBCCRIM nº157, dezembro/2005.

[10]TJSP, rel. Willian Campos, 15ª Câmara de Direito Criminal, D.j.  24/09/2015.

[11]TJSP, rel.Alcides Malossi Junior, 8ª Câmara de Direito Criminal, D.j. 30/07/2015. Também neste sentido, dentre outros, os seguintes julgados: TJSP, rel. Grassi Neto, 8ª Câmara de Direito Criminal, D.j. 16/10/2014; TJSP, rel. Amaro Thomé, 7ª Câmara de Direito Criminal, D.j. 03/07/2014; TJSP, rel. Willian Campos, 4ª Câmara de Direito Criminal, D.j. 27/05/2014; TJSP, rel. Ruy Alberto Leme Cavalheiro, 3ª Câmara de Direito Criminal, D.j. 16/04/2013.

[12] TJSP, rel. Mário Devienne Ferraz, 1ª Câmara Criminal, D.j. 29.02.2016.

[13] Neste sentido, ver http://www.conjur.com.br/2015-mar-19/empregador-exigir-antecedentes-criminais-antes-contratar> Acesso em 01.04.2016.


Jorge Coutinho Paschoal

. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


Maria Tereza Grassi Novaes. Maria Tereza Grassi Novaes é Advogada Criminalista. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-Graduada em Crimes Financeiros pela Fundação Getúlio Vargas e Pós Graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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