O desvendamento da Deusa Themis na sentença Penal

09/02/2016

Por Aramis Nassif - 09/02/2016

Para efeito de entender o pretendido neste texto, tomo  sentença penal como a ‘deusa da justiça’[1] desvendada parcialmente, ou seja, no momento em que Themis, após ter-se mantida imparcial (vendada) durante todo o processo, retira a venda (se parcializa para decidir)[2].

É neste momento que, na decisão judicial, avalia-se o conflito (pois não haverá sentença penal sem conflito) e, conforme o veredicto, ao invés de uma solução – que não haverá – poderá ampliar a discórdia e a perpetuação cultural do conflito que a sociedade tem legitima dificuldade de entender.

O desvendamento da deusa é a revelação da consciência – que não representa necessariamente convicção - do magistrado. Aquele é a visão austera, é o ‘ver’ o fenômeno social sem deixar de ‘ver’ o indivíduo; esta, que pode eventualmente coincidir com a outra, é a abstração mental enquanto a deusa estava vendada, a imparcialidade ‘cega’, tal como é a lei que, vezes mais, confunde-se com o direito, pois, afinal, "...o direito penal existe para cumprir finalidades, para que algo se realiza, não para a simples celebração de valores eternos ou glorificação de paradigmas morais." [3]

Daí a dificuldade do estudo da sentença, pois, por mais que aparente simples exercício da força jurisdicional para a solução do impasse gerado pela quebra da harmonia social, com o singelo confronto de teses e provas, tem ela caráter pluridimensional, com o registro de vários aspectos psico-sócio-jurídico do fenômeno fático, supostamente reconstruído  durante a instrução judicial, muitos deles apenas implicitamente desvelados, mas todos inarredáveis (ainda que alguns possam ser desconsiderados), entre eles obviam-se o conflito (fato) nas relações intersubjetivas como determinante da intervenção do Estado, a lei (principalmente a lex mater), o direito (com ela e mais além da norma), a presença ôntica do magistrado, a sociedade, o Estado, linguagem, ideologias, etc.

No estudo da sentença penal (que na figura metafória adotyada neste texto seria a Themis ‘desvendada’), é inescapável algumas reflexões sobre o criador para melhor entender a criatura. É uma imposição da etiologia e, ainda que, aqui, parcial e desordenadamente, ver-se-á do primeiro, todavia, apenas considerações de passagem, pela força da criação e, portanto, objeto definitivo de qualquer estudo crítico da segunda.

Sentença penal é o ato de reduzir a um espaço documentado, estrito, oficial, praticado por juiz competente[4], toda a gama de circunstâncias e emoções visíveis e descritíveis  informadas com as garantias constitucionais do processo, ocorrentes em um fato praticado com necessária intervenção humana, que a lei traduz como crime, para o efeito de confirmar ou desconstituir, impondo sanções legais, o estado de inocência do cidadão-acusado.

É o conceito que vai sustentado neste texto.

Tem sua estrutura exclusivamente documental (no sistema processual brasileiro a sentença sempre estará representada por escrito), que, mesmo se tratando de peça una, apresenta-se endogenamente  segmentada tal como vem  antecipada no Código de Processo Penal (Art. 381, CPP[5]), segmentos que a doutrina identifica como relatório, fundamentação, disposição e autenticação, cujo estudo específico não atende ao objetivo deste texto.

Mas, presente o objetivo de adotar uma visão crítica da decisão, seja como fato jurídico, com ênfase às suas repercussões, seja como ato jurídico-formal, não pode ser dispensado a observação do caráter ontológico de sua origem, ou seja, deve ser tomada como expressão da atividade do homem e, assim, com suas virtudes e defeitos como ser-julgador, agregados àqueles promanados da deficiência da lei, mas sempre com ela na ênfase do enfrentamento pretendido.

A sentença criminal, tal como deve ser percebida, apropriando uma visão simplista e ingênua, é ato de aplicação do direito ao caso concreto, e, conforme as hipóteses de convencimento, a necessária confirmação do estado de inocência pela ofensa à dignidade do indivíduo enquanto réu[6], da perspectiva política da decisão como fator de exercício do poder e, por fim, da possibilidade legal e constitucional de suspensão ou cassação de direitos fundamentais do cidadão, se penalmente responsável pelo ato incriminado.

Dite-se o óbvio: a sentença é o ato jurídico -  de todos quantos compõe o elenco dos praticados pelo magistrado - o mais importante. Seu estudo é o próprio estudo do direito processual penal e, conforme sustentam renomados autores, “los problemas que el estúdio de la sentencia plantea dificilmente pueden examinarse em su totalidad.”[7]

Aparentemente, trata-se de tema esgotado enquanto estudo técnico e dogmático na doutrina brasileira ou estrangeira, mas que - ouso dizer - na realidade apresenta aspectos mal examinados ou não anteriormente examinados.

Na verdade, à leitura da matéria como colocada nos textos disponíveis traz-nos a idéia de que, pela habitualidade de seus lançamentos, trata-se sempre de ato rotineiro, estratificado na jurisprudência na sua essência como algo banal e, normalmente, preso ao desenho meramente formal de sua existência, importando uma visão dialética, desprendida de frivolidade ou superficialidade para o efeito de prestigiar a questão fundamental, identificável e inédita do tema.

No sistema processual brasileiro, com a iniciativa da ação penal,  manifesta o agente ministerial a pretensão de alcançar veredicto condenatório por ter o denunciado, à sua visão, incurso no tipo penal correspondente ao fato que descreve na peça inicial, com a respectiva capitulação jurídica. Tal decorre que, em virtude da indisponibilidade da ação penal pública, prevalece como vontade do Estado - jamais pessoal do parquet[8] - e por isto mesmo irrenunciável[9], até a sentença ser prolatada, quando poderá ou não ser acolhido o objetivo condenatório.

Assim, mantida a venda de Themis, projeta-se a sentença conforme a situação ou pretensão dos atores no processo penal.

Assim, como faz com a denúncia o Promotor de Justiça, manifestando sua pretensão condenatória, a defesa no momento preliminar e/ou no decorrer da dinâmica processual, já estão dirigindo os antagonistas toda sua atividade para a sentença final, seja para a condenação (acusação), seja para absolvição (defesa)

O próprio magistrado no recebimento da denúncia, projeta mentalmente uma sentença, antecipando o que será obrigatório e cogente após encerrada a instrução.

Sejam quais forem os envolvidos a)nessa dialética processual, todos buscam  ou imaginam uma sentença de mérito, ainda que incidentalmente possa defluir decisões interlocutórias com eficácia para extinguir o processo, algumas denominadas também (indevidamente), de sentença.

Não há como refugir, hoje, da realidade desafiadora e ao mesmo tempo desanimadora – o desafio pela necessidade da crítica ao status quo doutrinário como fator de aperfeiçoamento e, o desânimo, pela reação nitidamente conservadora e preservacionista – mas que resulta, de qualquer maneira, na certeza de que algo precisa ser feito para que os magistrados possam, elaborar sentença – desvendando Themis - conscientes da necessidade de justiça.

Mesmo que o estudioso deste ato processual tenha pretensão limitada a examinar apenas a decisão de mérito, não será surpresa encontrar imposta apreciações dos demais atos decisórios ou de mero impulso processual (despachos e interlocuções), como reforço à pretensão de tal estudo. Neste tanto, impositiva a incursão ao sistema jurídico positivo, especialmente do Código de Processo Penal, necessariamente feita através da filtragem constitucional e à luz dos princípios fundantes, bem como da necessária investigação da mitológica neutralidade e da necessária imparcialidade do juiz que, adjudicadas no convencimento do julgador após a inevitável exploração probatória, exerce notável influência no resultado final.

No espaço epistemológico, o direito, como ciência autônoma tem a propensão de hermetizar-se enquanto que cada estudo fragmentário das ciências afins tem sólida estrutura teórica a partir de poderosa e coerente argumentação, dispersas, com dificuldade de romper a membrana epidérmica do direito, quer resiste ao enriquecimento pela interdisciplinaridade.

Mas, como estudar, para efeito de sentença justa, a atividade afirmada incriminatória do indivíduo com a dispersão desconjuntiva acima, senão acompanhando os segmentos teóricos especializados dos respectivos ramos científicos paralelos para tentar a reconjuntação necessária? O cuidado maior é evitar qualquer vocação impermeabilização tendenciosa para que não haja perda da qualidade na efetiva abordagem  teórica, nem desperdício pela falta de reflexão, o que exige, na unidade forçada, que seja feita avaliação conjuntural, universal, a partir do posicionamento de alguns autores que enfrentam a questão no plano entendido nodal, ou seja, o da violência ou da incidência criminal recorrente.

Calligaris, ao comentar sobre a criminalidade e a marginalidade, analisando texto de Lacan, interpreta que ´..quando os laços sociais – quer dizer, os laços que deveriam outorgar a um sujeito o seu lugar, por exemplo de filho ou cidadão – são reais, ou seja, simbolicamente pouco consistentes, então os atos do sujeito devem ser simbólicos. Ou seja, o sujeito vai ter que esperar de seus atos que eles ganhem para ele algum lugar simbólico que os laços não lhe garantem. Tomemos um exemplo no quadro familiar, que é o espaço dos laços sociais básicos. Um pai pode se sustentar como pai pela via da violência real (você me obedece porque eu sou mais forte e você apanha) ou então pela via simbólica (você me obedece porque eu sou seu pai). No primeiro, se submeter à violência não significa ganhar  lugar nenhum, a não ser o da espera de poder – crescendo – prevalecer-se um dia pela mesma violência”.[10]

A comunidade jurídica, ênfase à atividade judicante, tem o vício de entender o indivíduo como objeto de julgamento, ou seja, só é possível examiná-lo à ótica de uma acusação, a que se antepõe uma defesa, tudo no plano de satisfação normativa – constitucional ou não – onde interessa investigar como foi a ocorrência material do fato, ouvir as testemunhas do fato, examinar as provas do fato, se o fato realiza o modelo típico legal, etc, destacando a pretensão  punitiva oficial, até mesmo quando se busca no autor do fato, seus antecedentes, personalidade, reincidência, etc, convertendo-se, tão só para efeitos persecutórios, o direito penal em direito penal do autor.[11]

Convence que os defensores de um moderno direito penal do fato, não querem excluir o indivíduo da sua composição executiva, vez que, assim, excluiria a qualificação ontológica, como elemento informativo essencial  na apreciação da conduta humana psico-socialmente incriminada, sempre com o intuito de entendê-la, mas também operar este entendimento em seu favor no momento da sanção (se for o caso).

Se for para ter apreciação tão pobre da história individual criminal, convenço-me que não deveria ter o Estado retirado a gestão julgadora da sociedade ou afastada a vingança privada. Em outras palavras, o Estado está sendo mais cruel e indiferente que o vingador particular; está sendo apenas a justiça da espada, e não a espada da justiça.

O crime é um acontecimento que se entranha na biografia do indivíduo como subversor da harmonia social. Este mesmo acontecimento instala-se em sua personalidade e confere importância que ele dá à reação ou sensibilidade da sociedade, ante o fenômeno estigmatizante do processo criminal. Afinal, já sabemos, o fato-crime vem sempre marcado pela censura que, por sua vez, por estruturada na mais absoluta desinformação provoca grande risco de equívocos e injustiça na conclusão do raciocínio analítico geral, mormente quando alimentado pela mídia.

Tem-se, com a sentença, uma via informativa do direito conquistado ou perdido pelo cidadão: a leitura desta leitura será a notícia da sua conquista ou da perda. Mesmo mínima, a contribuição dela poderá dar ao cidadão melhores condições defensivas e de compreensão do desfalque em seus direitos fundamentais (políticos, liberdade ou ambos), pelo que se lhe exige linguagem inteligível, como reforço para a legitimação democrática da jurisdição.

Na semiologia jurídica, pois, sabidamente, ao promover a interpretação da lei, o magistrado tem que ter presente que, ainda que aparente assim,  não vai trair o sentido das palavras compositoras da norma de direito positivo, mas dar-lhes novos significados ou buscar a revalorização do conteúdo com intuito de promover soluções adequadas de equidade, enfim, justas. Para Luis Alberto Warat,  “se este protagonista não atua, na sua tarefa altamente revivificadora do direito, as novas palavras somente refletirão as velhas significações” [12].

Guardando resquícios de uma estrutura arcaica, sedimentada sobre uma base social com profundas desigualdades, a atual cultura profissional dos juízes forma atores limitados aos espectros legais, dentro de um contexto rigidamente codificado e comprometido cegamente com a manutenção do status quo. Suas decisões são, em grande parte, impregnadas de tecnicismos, sem a irisação política lato sensu, com ou sem envolvimento com as transformações sociais e cada vez mais distantes da construção de uma sociedade livre e justa. Imaginam-se imparciais e neutros com o que pretendem imprimir na sentença.

Como reflexo imediato desta postura, temos um arcabouço jurisprudencial elitista, burocrático, ineficiente e distante de critérios minimamente garantistas.

O Poder Judiciário brasileiro segue tipicamente esta tradição liberal burguesa de ‘justiça’, com magistrados que conduzem a interpretação jurídica através de métodos sistemáticos muito ‘rotinizados’ e pouco flexíveis. E tal postura, por extensão, contamina  todos os ditos ‘operadores’ do direito e o meio jurídico com um todo - da formação básica nas Faculdades de Direito à estrutura jurídica do país -, sem falar em suas origens e condições que formam um grupo oriundo da sociedade nuclear urbana, sendo raros os que têm origem na sociedade periférica urbana ou, mesmo, interiorana e rural.

Para libertar-se desses seculares grilhões sócio-culturais, o juiz deve reconsiderar a ilusão de ser (e de querer ser) superior no seu habitat social. E a responsabilidade deste mito está na formação ´academicista´ das Faculdades de Direito, pois os cursos jurídicos ainda são extremamente dogmáticos, formalistas e despolitizados. Tornaram-se cursos instrumentais, meramente informativos, e objetivando erroneamente a formação de ´técnicos em Direito´, meros operadores jurídicos com baixíssima - ou nenhuma - capacidade de reflexão crítica ou sensibilidade social.

Do período embrionário das velhas escolas jurídicas nacionais, tais cursos guardam, apenas, os malefícios do academicismo, mas afastaram-se da interdisciplinaridade que os marcava. Chamá-los atualmente de cursos de ciências jurídicas e sociais chega a ser uma agressão à inteligência. Em nome de uma ´especialização´ duvidosa, sacrifica-se a base de formação sócio-política cujos afluentes fazem estuário na sentença final.

No entanto, in contrario sensu, a cada dia a dinâmica social aponta-nos para a necessidade de cursos com formação não dogmáticos e com características multi e interdisciplinares, pois os juristas, especialmente os juízes, devem assumir o compromisso ético e político de ajudar na transformação social, buscando a construção da paz social amparada em decisões mais justas, harmônicas, atualizadas e adequadas às novas necessidades do agrupamento comunitário que integram.

O progresso tecnológico e as constantes mutações no sistema político-econômico intensificam a complexidade das relações sociais. Surgem, a cada dia, novos paradigmas, quebram-se velhos conceitos, e espera-se da sentença uma rápida resposta para tantos questionamentos.

E o perfil de tal profissional, longe do arraigado conceito de operador-jurídico, deve ser flexível, interativo, eminentemente crítico, questionando a ordem social em que está operando e buscando participar da criação de um Estado onde a jurisdição e acesso ao Poder Judiciário sejam a ponte para a justiça social plena e contribuinte para a democracia, ou sinteticamente, participar da construção de um estado verdadeiramente social e democrático que possa cumprir a sua missão de tutelar  direitos e interesses, especialmente dos mais oprimidos, sem distorções.

Isolar o pensamento em torno da sentença penal, com tais perspectivas, ontologicamente considerado, para fazer prevalecer em seu estudo, implica em estimular a inquietude que acode quem percebe o novo momento sócio-jurídico, e despertar razoável senso crítico, com vigor para canalizar esta força de transformação em favor da sociedade, mas sempre com respeito ao indivíduo.

Como instrumento operacional para esta mudança, além da reformulação e atualização constante do sistema legislativo, para sua adequação à realidade e necessidades modernas, é de ver que a sentença expõe responsabilidades tão extraordinárias que vai refletir-se em produção cultural e, assim sendo, abastecer de informações futuro estudo antropológico.

Para que se possa almejar tal resultado, imperativa a investida na investigação da tutela jurídica e princípios processuais, tendo por matriz a análise e questionamento das relações entre a justiça (pretensamente consagrada na sentença), e a sociedade.

A sentença penal deve seguir as determinações normativas, seja pela sua qualidade de ato jurídico processual, seja pela necessidade de aplicar o direito penal em sua face material. Mas as leis não são mais que ideias estratificadas pela criação humana e reflexiva da classe legislativa eleita por um segmento popular que, na concorrência possível em eleições democráticas, representa a coletividade, ainda que, tantas vezes, seja minoritária. O magistrado, na investigação do elemento volitivo da sentença, deverá atentar para as que se lhes correspondem, às leis ou ao Estado. Ou seja, a vontade (da lei? do juiz? do Estado?) internalizada na sentença, como adjacência influente, pelas exclusões possíveis, e externalizada como veredicto, o conseqüente fundamentado.Por isto que tal estudo deve dirigir-se a fazer uma exploração nos  elementos contribuintes para a formação e estruturação da sentença, subjacente - ou querendo que o seja -, a normas de direito positivo que a regulamentam ou justificam.

Volta-se, fundamentalmente, para a repercussão cultural da sentença, ou seja, a atividade influente no meio social como produtora de cultura e do efeito transformador do meio jurídico estabelecido em determinado momento histórico que escapa à simples análise do acervo legislativo construído naquele período, para examinar o direito concreto e dinâmico posto na decisão.

O conjunto normativo  penal em abstrato, que não diz mais que a história sócio-política da classe dominante de sua época e estratificada no sistema, vai manifestar-se como força propulsora na inércia legal apenas pela sentença que, conforme tudo que possa influenciar no ânimo do juiz, expressa o retrato sócio-jurídico da sociedade, inclusive no tanto que possa referir-se à ruptura com o tecido legal, contrariando a norma para o efeito de alcançar a decisão mais justa. Assim, decorreria dela importante contribuição para o estudo antropológico do direito interpretado, dinamizado, concretizado e seus reflexos no meio social.

É possível escapar à metafísica quando se trata de ´justiça´? Rossana Bisol esclarece que “não há valor absoluto de justiça, mas, sim, valores historicamente determinados e, por vezes, coexistindo nas contradições intrínsecas às relações sociais de uma determinada época histórica”[13].

Em sua expressão semanticamente multifacetada pode ser confundida alguma inclinação neste sentido, mesmo mantendo a estrutura concretamente axiológica e sua virtude principiológica, de incursionar no plano crítico, o que poderia ser interpretado como pensamento metafísico. Mas, para estudo da decisão judicial penal considera-se justiça não como valor absoluto, mas diante da existência de sentimento do justo pelo ente social, consolidado na harmonia sem a qual a vida social se torna intolerável.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior, cuidando para que não se olvide da ambiguidade que o estudo da justiça promove, defende que é possível realizá-la em  modelo horizontal (aristotélico, na valorização da igualdade) ou vertical, “conforme prepondere o parâmetro do equilíbrio dos pratos na balança ou a utilização da espada“. A ambiguidade converte o valor justiça na mistura dos aspectos racional e emocional. Preleciona:

 “No centro das disputas sobre o seu conceito está, porém, um princípio de reconciliação com o outro, com todos, com os deuses, consigo mesmo. Por isso a perda do sentido da justiça é também perda do sentido da existência. Porém, se a reconciliação tem por base a restauração de uma ordem ou a retribuição dos pesos e contrapesos, emoção ou razão, eis um dilema que parece submeter o homem inapelavelmente”. [14]

Iniludivelmente, é na Constituição que se encontra a concepção processual de justiça, pois é ela que traz os princípios de igualdade que integra a sua concepção, continente da razoabilidade e proporcionalidade. Por isto que Capelleti registra:

“...se se trata así del  fascinante, genial esfuerzo de las sociedades modernas dirigidas a positivar ciertos valores relativamente inmutables, relativamente absolutas, incorporadas em constituciones escritas que reflejan la voluntad permanente, más que los reclamos temporales del pueblo.” [15]

A Constituição de 1988 traz especial proteção aos direitos e garantias do indivíduo, elegendo-os como sua preponderância teleológica. Relembra-se o artigo 5º da Carta, em sua vasta incisografia  erige a dignidade, a justiça e a solidariedade  como valores imutáveis, pétreos.

Ainda que a comunidade, pelo instinto gregário do ser humano, dos interesses e direitos coletivos, fosse importante para o constituinte (atente-se à redação do artigo 7º, CF), elencando os direitos sociais, é o indivíduo que está reservada maior tutela, é ele que deve ser protegido pelo Estado (e contra próprio Estado), mormente quando se trata da Justiça penal. Ou seja, protege-se o sistema orgânico, protegendo o seu imprescindível elemento molecular.

Não há que preocupar, assim, eventual vínculo de concepção metafísica de justiça, pois bem pregados os princípios constitucionais do processo, o que leva às palavras de Luigi Ferrajoli:

"...a crítica pública das atividades judiciais - não a genérica dos males da justiça, mas a argumentada e documentada dirigida aos juízes em particular e às suas decisões concretas - expressa, com efeito, o ponto de vista dos cidadãos, externo à ordem judicial e legitimado pelo fato de a sua força não se basear no poder, mas apenas na razão; e é tanto mais eficaz se provém também de outros magistrados pela ruptura que provoca na solidariedade corporativa e nas aparências técnico-jurídicas que envolvem sempre as decisões. É por esta via, muito melhor do que através de sanções jurídicas ou políticas, que se exerce o controle popular sobre a justiça, se rompe a separação do poder judicial, se emancipam os juízes dos vínculos políticos, burocráticos e corporativos, se deslegitimam os maus magistrados e a má jurisprudência e se elabora e se dá continuamente novo fundamento à deontologia judicial." [16]

Visualiza-se alguns ângulos da riqueza do pensamento jurídico que não despreza a relação epistemológica, ontológica e deontológica da sentença, marcada pelo caráter político-social, desvendando o instrumental necessário para  uma completa reflexão em torno deste ato jurídico que, de tão importante, é o único capaz de ´revogar´ a Constituição com a cassação dos direitos políticos do cidadão ou de seu direito de ir e vir, de condenar a vida como bem juridicamente tutelado à sua morte[17] , como de resgatar parte da dignidade perdida pelo simples instaurar do processo penal.


Notas e Referências

[1] Ao introduzir o estudo sobre aspectos da sentença penal, esclareço uma liberdade metafórica tomada no texto: Segundo lições mitológicas, Themis era filha de Urano e Gaia, identificada como a divindade responsável pela ordem e Direito divinos , percebidos nos costumes e transformados em Lei. Mas, a par de ser conselheira de Zeus, também suscitou discórdias, tendo sido que, inclusive, desencadeou guerras, entre elas a guerra de Tróia. Mas mantém o prestígio, ainda atual, de ser a ‘deusa da Justiça’, cega, mas sempre prudente e veraz.

[2] Vale lembrar que na Grécia Clássica a deusa não era representada com a venda que podemos observar em suas representações modernas. A faixa que lhe cobre os olhos foi introduzida no século XVI por artistas alemães, com o fim de que se atribuísse à Justiça a ideia de imparcialidade.

[3] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro. Ed. Revan. 1990 - Pág. 20.

[4] Interessa ao estudo apenas a sentença judicial

[5]         CPP: Art. 381.  A sentença conterá:

        I - os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;

        II - a exposição sucinta da acusação e da defesa;

        III - a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

        IV - a indicação dos artigos de lei aplicados;

        V - o dispositivo;

        VI - a data e a assinatura do juiz.

[6] Carnelutti, proclamava: “Se, ao revés, ao seu final for proferida uma sentença absolutória, o processo terá sido inútil. Em casos assim, a máquina judiciária trabalha com perda, pois, além do trabalho realizado, existe o sofrimento daquele a quem se colocou a culpa, cuja vida é arruinada. Por isso, para Carnelutti, a absolvição do acusado é a falência do processo penal”.(CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal/ Francesco Carnellute; Tradução de Ricardo Rodrigues Gama – 1.ª ed. – 3ª tiragem. Campinas: Russell Editores, 2008.

[7] RODRIGUEZ-AGUILLERA, Cesáreo. La sentencia. Bosch, Casa editorial S/A, p. 8. Madrid, 1974.

[8] Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada (art. 385, CPP).

[9] A ação penal privada pode ser objeto de renúncia, via, v.g.. perdão judicial, ou, mesmo, pela perempção.

[10] CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil ! – Notas de um psicanalista europeu viajando pelo Brasil. Ed. Escuta Ltda, p. 109/110. São Paulo. 1992.

[11] Justifica-se o sacrifício do estilo literário com a repetição de vocábulo (´fato´), como necessário  para transmitir a intenção (idéia) do autor.

[12] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito; epistemologia jurídica e modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995.

[13] BISOL, Rosana. Dialética social do direito. In Direito achado na rua. Ed. Universidade de Brasília, 1987, p. 40.

[14]FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio - Justiça como retribuição da razão e da emoção na construção do conceito de justiça. Em Revista Brasileira de Filosofia, vol. XLIV, out-nov-dez 1998, p. 369-389.

[15] CAPPELLETI, Mauro. Apuntes para uma fenomenologia de la justicia em el siglo XX. , Revista de Processo nº 71, jul-set 1993, Revista dos Tribunais. São Paulo,  p. 84-120.

[16]  FERRAJOLI,  Luigi, "Derecho y razón. Teoría del garantismo penal". Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco, y Rocío Cantarero Bandrés (trad.), Trotta, Madrid, 1995.

[17]  V.g. aborto moral ou terapêutico (Arts. 128, I e II, CP.


Aramis Nassif

. . Aramis Nassif é Mestre em direito (AJURIS-UNISINOS). Desembargador aposentado. Professor pós-graduação UNIRITTER Porto Alegre; UNISINOS Porto Alegre; UPF Passo Fundo RS. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Statue of the goodess Themis, found at Rhamnous, Attica. ca. 300 BC.  // Foto de: Dimitris Kamaras // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/127226743@N02/21923206651/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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