O Despejo das lembranças  

02/01/2019

 

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

São 6:00 horas e mal o dia se ilumina entre a bruma do inverno Sofia é despertada pelo soar insistente do interfone alarmante ao longe. Tonta pelo súbito acordar percorre claudicante o assoalho frio com seus pés descalços e o peito a galopar. Assustada imagina: “Quem seria tão cedo?”

Ela atende ao chamado do porteiro num “bom dia” metálico pelo longo silêncio onírico da fala e é surpreendida com a notícia do oficial de justiça a caminho. Atordoada retorna ao quarto e veste seu longo robe de veludo vermelho, enquanto a campainha anuncia a chegada da intimação.

Mais um cumprimento de “bom dia” agora embargado, quase inaudível. Diante do documento suas lágrimas percorrem o rosto marcando a decepção inesperada até borrar a ordem de despejo estampada no papel timbrado. Assina-o perante a frieza do funcionário judicial acostumado aos tristes episódios sem se abater e recebe a cópia do seu desalento numa despedida protocolar.

Trêmula pelo nervosismo da notícia tem dificuldade em trancar a porta ressoando ao tilintar das chaves em dissonância com a sinfonia dos soluços ressentidos. Pois, havia pouco mais de um ano que se separara de Miguel e este ficara responsável pelo pagamento do aluguel. Agora, surpreendida pela quebra do pacto era novamente golpeada.

Alí, naquele apartamento, ela viveu muitos anos felizes até seu casamento ruir pela concorrência da amante. Olhou vagarosamente cada canto da sala como se revivesse momentos, os porta-retratos ainda estampavam a figura dele jovem nos eventos festivos, os quadros pintados em suas emoções, a mesa de tantos jantares, a cadeira cativa da cabeceira que ele costumava sentar, o sofá já moldado pelos seus corpos de tantos filmes assistidos juntos e a estante sob medida com os seus livros misturados aos dele.

Nada foi mudado de lugar, nem mesmo a insígnia de posse dele lhe foi requerida como se ela esperasse a sua volta. Tanto que, todos os dias ao anoitecer em seus devaneios escutava o barulho de rotação do ferrolho da porta como se ele viesse arrependido da aventureira partida para súplica do perdão. Porém, doravante restou claramente notório que ele jamais retornaria.

Quedou-se inerte sentada no vão do corredor sem coragem de chegar ao quarto. Aquele aposento guardava os ruídos dos orgasmos abafados nos travesseiros para não acordar as crianças, da cumplicidade da divisão da cama, do adormecer abraçados de cansaço depois dos longos diálogos, da sombra dele admirada na penumbra da luminária quando lia um romance e do seu cheiro que ainda permanecia entranhado nas cortinas estampadas já desbotadas pelo tempo.

Desfazer-se de tantas lembranças lhe era insuportável.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Memory // Foto de: Trevor Marron // Sem alterações

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