Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
No corrente 2019, publicou-se na presente coluna Empório do Direito duas reflexões sob os títulos “O Consumo em Tempo de Fascismo Social” e “ Por Onde Anda a Barbárie?”. No primeiro texto abordou-se como a retirada dos direitos trabalhistas refletia o fascismo social paraestatal em sua modalidade contratual e resultaria em recessão econômica, por razão da redução dos índices de consumo mínimos que a engrenagem da estrutura desenvolvimentista necessita. O segundo texto, por sua vez, sintetizou, por meio de falas do Ministro Abraham Weintraub, duas linhas de pensamento político que dão suporte ao Governo Federal, sob um recorte das incompreensões proferidas pelo Ministro frente a ancoragem analítica do Estado de Direito.
No entanto, para não transparecer que se possa ter alguma implicância ou cisma com o atual Poder Executivo Federal, no presente texto objetiva-se abordar temas relacionados ao Poder Legislativo Federal, mais especificamente por meio a Proposta de Emenda à Constituição nº 80 de 2019. A Proposta de Ementa à Constituição nº 80 de 2019, de autoria de Flávio Bolsonaro, foi apresentada ao Senado em Maio de 2019 e endossada por outros 26 senadores.
A PEC 80/2019 visa altera, assim, os artigos nº 182 e nº 186 da Constituição Federal 1988 (CF) que tratam da função social da propriedade urbana e rural, ou seja, busca alterar as normas constitucionais associadas a políticas de acesso as terras urbanas e rurais. Obviamente, não é à toa que referida PEC ataca o acesso à terra no Brasil, pois a obtenção de propriedades sempre foi muito restrita nesse país. Assim, as poucas aberturas para reformas urbanas e rurais, das quais a função social da propriedade foi sempre um dos expoentes, sempre foram combatidas por quem possui o monopólio de acesso ao solo.
Sob essa perspectiva, é possível perceber três grandes modificações propostas pelo projeto. Uma com relação ao artigo nº 182 no Capítulo II – Da Política Urbana, outra com relação ao artigo nº 186 no Capítulo III – Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária e, por fim, uma terceira com relação a indenização pela desapropriação por descumprimento da função social.
Há também relevante debate se a função social da propriedade teria o status e, portanto, a proteção de cláusula pétrea. Assim, não podendo ser alterada nem por meio de Propostas de Emendas Constitucionais. Apesar de esse ser um debate fundamental, não será abordada no presente texto[1].
Dessa forma, com relação ao artigo nº 182 da CF, a alteração versa sobre o seu parágrafo segundo que tem a seguinte redação original:
Art. 182, § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
A nova redação Art. 182, § 2º consistiria:
Art. 182, § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende ao menos uma das seguintes exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor:
I- parcelamento ou edificação adequados;
II- aproveitamento compatível com sua finalidade;
III - preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico.
Dois pontos são relevantes de serem abordas na proposta de nova redação do Art. 182, § 2º da CF. O primeiro ponto de destaque consiste na alteração das exigências fundamentais para o cumprimento da função social da propriedade. A redação do original do Art. 182, § 2º da CF faz referência ao cumprimento das exigências de ordenação da cidade expressas no plano direito. A nova redação, por sua vez, elenca três exigências.
Nesse sentido, a possibilidade de listar as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor até possui um potencial de reduzir a discricionariedade associadas a avaliação da função social do imóvel urbano e, nesse ponto, pode ter até uma avaliação de potencial positivo, visto que promove uma maior garantia e segurança jurídica tanto aos proprietários de imóveis urbanos quanto aos que necessitam de políticas de reforma urbana.
O segundo ponto da nova redação do Art. 182, § 2º da CF, no entanto, versa sobre a demanda de implementar somente uma das três exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Tal redação pode criar situações absurdas, como a possibilidade de um imóvel que tiver o parcelamento ou edificação adequada não precisar respeitar a preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico e, mesmo assim, cumprir com sua função social da propriedade. A implementação de redução a um dos três requisitos fundamentais de ordenação da cidade para o cumprimento da função social da propriedade pode simplesmente acabar com a efetividade mínima do instituto.
Inclusive, situação semelhante da redução dos requisitos obrigatórios do art. 182, § 2º da CF pode ser observada com a nova proposta de redação do artigo 186 da CF. A redação original do artigo 186 da CF versa:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
No entanto, a PEC 80/2019 propõem que o proprietário rural seja obrigado a cumprir somente um dos incisos supra mencionados para garantir a sua função social da propriedade. Assim, a nova redação do artigo 186 da Constituição Federal, proposta pela famigerada PEC, abre brecha para que, por exemplo, um produtor da monocultura que tenha um aproveitamento racional e adequado do terreno possa, com a maior tranquilidade, fazer uso de mão-de-obra escrava e ainda assim estar cumprindo com a função social da propriedade. Nesse sentido, sob a tutela da PEC 80/2019 também não há mais a necessidade de observar a preservação do meio ambiente, visto que, caso a propriedade estiver respeitando as disposições que regulam as relações de trabalho, já estará automaticamente cumprindo a função social da propriedade.
Mais uma vez, é possível observar que a nova redação do artigo nº 186 da Constituição Federal, bem com a propostas de redação para o parágrafo segundo do artigo nº 182 podem efetivamente inviabilizar o instituto da função social da propriedade. Quem sabe essa não é verdadeiramente o interesse do nosso qualificadíssimo Senador Flávio Bolsonaro.
No entanto, as mudanças não se restringem a esses dois pontos. No terceiro, de acordo com a proposta do parágrafo 2° PEC 80/2019, o proprietário que, ainda assim, não conseguir cumprir com um dos quatro critérios apresentados pelas o artigo nº 186 e pela nova redação do parágrafo segundo do artigo nº 182 da Constituição Federal, será desapropriado por descumprimento da função social e indenizado pelo valor de mercado da propriedade rural. Nesse sentido, não há nenhuma penalização por descumprir a função social da propriedade e, se por acaso, ainda estiver difícil de conseguir vender a sua propriedade, não há o que se preocupar, infrinja as quatro exigências do artigo nº 186 da CF em imóveis rurais ou as exigências do parágrafo segundo do artigo nº 182 da CF e seja desapropriada pelo Estado com indenização em valor de mercado.
Assim sendo, por fim, trago a elucidativa parte final da justificativa a PEC nº 80/2019. Veja-se:
Assim, certo de que as alterações sugeridas contribuirão para evitar a recorrência e a perpetuação de injustiças, aprimorando o arcabouço protetivo do direito fundamental à propriedade, peço o apoio dos nobres Senadores para a aprovação desta importante proposição.
É possível perceber, portanto, que resta evidente que a intenção da PC nº 80/2019 não consiste na proteção do direito a função social da propriedade, mas da proteção do direito irrestrito à propriedade privada, problemática que tanto já perpetuou injustiças no Brasil. É possível perceber, portanto, que realmente as coisas não andam muitos interessantes para os defensores de um acesso plural a terra, bem como da manutenção das formulações básicas de nossa Constituição Federal 1988.
Quem sabe o Queiroz[2] não aparece para nos dar uma força.
Notas e Referências
[1] Mais sobre o tema disponível em https://www.brasildefato.com.br/2019/06/11/pec-de-flavio-bolsonaro-que-altera-funcao-social-da-propriedade-e-inconstitucional/ (data de acesso 10/09/2019)
[2] Referência Fabrício Queiroz acusado de desviar recursos públicos por meio da devolução parcial de salário pelos assessores Flávio Bolsonaro. Mais informações em: https://tudo-sobre.estadao.com.br/fabricio-jose-carlos-de-queiroz (data de acesso 10/09/2019)
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