O desenrolar de um crime real: conspiração do silêncio – a saga do norte - americano Steve Avery

05/03/2016

 Por Danielle Mariel Heil - 05/03/2016

“Estou indignado com as injustiças no caso de Steven Avery. É uma abominação esse processo”, lê-se na petição no Change.org.

Na sinopse de Making a Murderer, a Netflix diz que a série trata da história de “um inocentado de um caso por meio de exame de DNA que, ao expor a corrupção policial, se torna suspeito de um crime macabro”.

Steven Avery, um rapaz norte-americano de pouco mais de 20 anos, faz parte de uma família de pessoas não muito integradas à comunidade: têm um negócio de desmanche de carros, não são muito cultos e educados, e volta e meia alguém vai parar na delegacia por algum incidente.

O jovem Avery tinha barba, se dizia estúpido e andava com as pessoas erradas. Quando cresceu, se envolveu em assaltos e um ato de crueldade contra animais. Será que isso fez dele um assassino?

Tudo começou ainda no ano de 1985, quando uma mulher chamada Penny Bernstein foi brutalmente atacada por um homem numa praia junto a Manitowoc, uma pequena cidade junto ao lago Michigan, no Estado de Wisconsin. Tratando-se de uma figura proeminente na terra – ela e o marido eram comerciantes respeitados, proprietários de uma loja de qualidade e empenhados em atividades cívicas - a polícia tinha fortes motivos para querer resolver o caso rapidamente.

Não tardou por isso a descobrir-se um suspeito, por acaso pertencente a uma família que não era estimada por boa parte da população.

Steven tinha problemas e inimizades com várias pessoas, incluindo algumas com laços pessoais à polícia e aos procuradores. Uma dessas pessoas era uma prima que teria andado a espalhar histórias sobre ele. Histórias suficientemente caluniosas para ele um dia lhe apontar uma arma. Segundo explicou mais tarde, só queria assustá-la para ela parar de o difamar. Mas esse gesto imprudente valeu-lhe a fama de agressor de mulheres, que seria um fator determinante no rumo que o seu destino tomou a seguir.

Importante lembrar, portanto, que Avery tivera meses antes uma rixa com sua prima - esposa de um dos policiais da região. Coincidências ou não, logo depois ele foi preso.

Steven foi acusado e condenado a 32 anos de cadeia, essencialmente com base no testemunho de Penny. Ainda em choque, ela identificou-o e o resto tornou-se inevitável.

Preso, seu casamento entrou em crise. Houve o divórcio e o afastamento dos filhos.

Avery, portanto, tinha passagens pela polícia, mas sempre admitia os seus erros. Confessava e cumpria suas penas.

Desta vez, contudo, jurava inocência.

Uma agente policial, e coincidentemente amiga da prima de Steven, estava a trabalhar no caso de Penny e decidiu que Steven corrrespondia à descrição feita pela vitima do seu atacante.

Outro funcionário produziu um retrato-robô que, soube-se mais tarde, correspondia a uma foto de Steven tirada anteriormente pela polícia. O artista diz que não tinha esta foto presente quando fez o desenho, mas a semelhança é demasiado flagrante para ser coincidência. Ainda por cima, a polícia recebu informações sobre um predador sexual de nome Gregory Allen, que estaria nas proximidades do local do fato na data em que Peggy fora atacada, o que a polícia ignorou completamente.

Durante anos, Steven insistiu que era inocente e foi interpondo recursos, mas todos falharam. Finalmente, um grupo chamado The Innocence Project, que investiga erros judiciários, interessou-se pelo seu caso. Após várias tentativas, conseguiram obter 13 cabelos recolhidos no corpo de Penny. Quando os resultados chegaram, foi o choque total. Steven Avery era inocente.

O DNA correspondia ao de Gregory Allen, já conhecido predador sexual cujo nome fora aventado logo no começo das investigações. Contudo, o xerife e o promotor de justiça preferiram ignorá-lo por completo e montar um caso contra Avery, especificamente.

No ano de 2003, após quase duas décadas na cadeia, Steven foi libertado e a sua história fez manchete em todo o país. Envergonhado, o Wisconsin decidiu fazer uma nova lei a estabelecer um novo protocolo para identificações judiciais, muito mais rigoroso.

De repente, a fé que as pessoas têm na idoneidade do sistema caiu por terra. Os ingênuos, ou deliberadamente tolos, que existem por toda parte, foram obrigados a perceber que esse sistema pode ser desonesto, corrupto, vingativo e uma série de outros predicados que deixo ao crivo de sua imaginação.

Entretanto, os responsáveis pela sua condenação tentaram desculpar-se, alegando que o erro fora cometido inteiramente de boa-fé, e por incrível que possa parecer, no caso de Avery, a investigação disciplinar concluiu que não houvera dolo; que as autoridades responsáveis haviam agido "de boa-fé".

Ninguém seria culpado, portanto. Diante desse cenário, Avery e seus advogados decidiram entrar com uma ação contra o Condado de Manitowoc, o xerife e o promotor de justiça da época. A pretensão era de receber uma indenização de 36 milhões de dólares.

O questionamento sobre a conduta das autoridades do sistema de justiça criminal de Manitowoc se tornou público e houve uma investigação formal. A partir daí é iniciada uma série de investigações para levantar todos os furos que haviam sido convenientemente ocultos durante seu julgamento.

Vários indícios apontam não apenas para falhas, mas para um trabalho conjunto das autoridades – policiais, xerife, promotor – para tentar obter o resultado que eles consideravam justo – a prisão de Steven.

Como não foi apenas um caso de erro, tendo ficado claro que houve má fé da polícia e da promotoria, a seguradora não cobriria a quantia pedida por Steven – caso ele ganhasse a ação – e aí, meus caros, começa a sacanagem.

Ora, se a seguradora não cobriria, esse dinheiro sairia do bolso de quem? Dos réus do processo. Os mesmos que armaram para Steve – oficiais da lei, do mais alto escalão da justiça norte-americana. Vergonha para todos!

Como um homem de baixa escala social e intelectual poderia colocar em cheque a credibilidade de ʺhomens de famíliaʺ e “homens da lei”??

Em novembro de 2005, aconteceu a última coisa que se esperaria. Uma jovem fotógrafa de um jornal foi fazer um trabalho na sucata de Steven e desapareceu. Dias depois, o seu jipe foi encontrado na sucata e pedaços de ossos e dentes dela descobertos numa fogueira junto à casa de Steven.

Steven foi novamente preso e desta vez acusado de homicídio. Além dos vestígios materiais, havia o testemunho de um sobrinho dele, Brendam Dassey, um adolescente de 16 anos com limitações mentais.

Existem os ossos calcinados de Teresa Halbach, encontrados a poucos metros do quarto de Steven. Um fragmento de osso aponta danos consistentes com disparo de arma de fogo. Temos o carro da vítima, parcialmente escondido da propriedade de Steven. Temos a chave desse carro no quarto da vítima. Temos uma bala amassada com material genético consistente com a vítima. E temos depois a bombástica confissão altamente detalhada de Brendan.

Cenário montado, a vítima do sistema vira um monstro cruel. A comunidade local substitui a solidariedade pelo ódio. Steven se vê obrigado, para ter dinheiro para contratar bons advogados, a aceitar um acordo na ação civil que movia, acordo esse que lhe rende 400 mil dólares e nenhum reconhecimento de culpa por parte das autoridades públicas. Ninguém jamais foi responsabilizado.

Este era o cenário que a sua família temia: ao permanecerem no condado contra o qual tinha interposto um processo, tinham-se posto em risco de retaliação.

Com certeza, o momento mais desesperador apresentado, foi o interrogatório (ilegal) do sobrinho de Steven, que foi retirado da escola em que estudava e interrogado sem a presença de um advogado. Brendan Dassey era um adolescente com séria deficiência cognitiva, que não fazia ideia do que estava fazendo ali.

Ele é coagido a confessar um crime que não cometeu: teria, segundo os policiais, ajudado Steven a violentar, matar (com um corte na garganta e tiro na cabeça) e desfazer-se do corpo de Teresa. O interrogatório está no documentário.

O próprio Condado de Manitowoc considera que existe conflito de interesses, por causa da ação civil, e decide que as investigações devem ser realizadas por autoridades de um condado vizinho, Calumet.

Mas os policiais de Manitowoc, indeliberadamente permanecem ativos na investigação por meses. E são justamente eles que "encontram" as provas cruciais.

Menção especial para o discurso do juiz que sentencia Steven, repleto de juízos morais, exatamente como o sistema adora. Fato que não passa despercebido ao defensor de Steven, que em uma contundente manifestação ao final do nono episódio, fala sobre como o sistema faz de tudo para condenar porque não tem a humildade de reconhecer suas falhas.

Ao final do julgamento, Steven é condenado. Posteriormente, em um julgamento sem qualquer evidência física, Brendan também é condenado. Ambos recebem a pena de prisão perpétua, o primeiro sem direito a condicional e o segundo, com possibilidade de condicional em 2048.

Parece mentira, porém, isso não é ficção, nem fantasia, é real e aconteceu. Provas plantadas, apelações negadas sem fundamento, coerção de testemunha menor de idade e a lista de absurdos continua.

Em termos gerais, a polícia e até o tribunal tinham motivos demasiado óbvios para se voltar contra Steven.

O fato de ter havido uma grande conspiração para condená-lo da primeira vez, pelo estupro, somado à questão da indenização que Steven pedia, e que não seria coberta pela seguradora, parecem ser motivos suficientes para uma nova armação.

ATENÇÃO: Avery não foi condenado erroneamente, como infelizmente pode acontecer, há indícios de que houve uma “armadilha contra ele”.

Para o jurista Lênio Streck, esse é um erro básico e comumente praticado na sociedade, a “inversão do ônus da prova”, em que o acusado teria que provar ser inocente, em vez do contrário.

“A gente está falando de ficção, mas está com os pés na realidade”, diz. “A inversão do ônus da prova no Brasil todos os dias acontece”, explica o jurista, que analisou um levantamento em diversos tribunais. “O sujeito é preso com uma coisa furtada. Como ele não sabe dizer de onde tirou, ele é culpado”, exemplifica. 

Porém, quem tem que provar que você é culpado é o Estado.

Streck defende que é preciso “fazer bem a separação” entre a culpabilidade e o devido processo legal, cujos trâmites devem ser respeitados. Ou corre-se o risco de se cair no “pensamento consequencialista”, um dos quais apregoa: “condenar porque é bom, para dar exemplo”. “O Direito não faz raciocínios morais”, explica.

A ordem e a lei são colocadas em práticas por seres humanos, e segundo Jean-Jacques Rousseau, sabemos que nós, seres humanos, somos animais altamente corruptíveis.

Pensando em Steven Avery, vem a mente, o caso de Fabiane Maria de Jesus, espancada até a morte por justiceiros camuflados como cidadãos de bem em um bairro do Guarujá (SP). Um jornal local sensacionalista, sem qualquer compromisso com a ética jornalística, divulgou boato sobre uma mulher que pratica magia negra com crianças na cidade. Apontada como suspeita, apanhou até morrer. A história, claro, era lenda. Fabiana, claro, era inocente.

Steven fora investigado e condenado pelo sistema criminal, mas não sem antes ter sido julgado pelos olhos dos “cidadãos de bem” da pequena cidade Manitowoc County, para quem era um jovem baderneiro, oriundo de uma família caipira e ignorante.

O documentário resultou numa grande comoção social nos Estados Unidos, onde muitas pessoas clamam pela revisão do julgamento de Steven Avery.

A história deu origem a um documentário, que a Netflix lançou no fim do ano passado - “Making a Murderer”, que nos faz pensar em Steven, mas também nos vários Stevens anônimos que não tiveram, ou não têm, a chance de encontrar alguém interessado em sua história para dar a ela visibilidade.

Na série, é contemplada a tese de que as provas usadas contra Avery poderiam ter sido armadas pela polícia. São expostas várias irregularidades no processo judicial, que contribuíram para a condenação de Avery.

A série de grande sucesso, proporcionou à Avery uma nova defensora que assumiu seu caso: Kathleen Zellner, uma importante advogada de Chicago conhecida por conseguir a libertação de 17 homens condenados injustamente. Ela tem trabalhado junto com Tricia Bushnell, a diretora do Projeto Inocência do Meio Oeste dos EUA.

O fato é, que todas as evidências parecem apontar para sua inocência, mas não são provas cabais, e Avery continua até hoje preso, e luta para provar que sua condenação foi baseada em evidências dúbias e em uma confissão supostamente forçada de Brendan Dassey, seu sobrinho, também preso pelo crime. Além, da participação nas investigações dos mesmos policiais que Avery estava processando e claros sinais de evidências forjadas na suposta cena do crime.

Sobre a decisão dos jurados, há indícios de que o filho de um jurado trabalhava para o Departamento do Xerife do Condado de Manitowoc e a a esposa de outro jurado trabalhava para o escritório de escrivãos do Condado de Manitowoc, motivo pelos quais, Avery pede a anulação da condenação.

Oportuno questionar: os jurados levam a sério a tal da dúvida razoável na hora de condenar ou inocentar um réu? Até que ponto a mídia, a aparência do acusado e os boatos influenciam um júri e até uma testemunha?

O fato é que a presunção de inocência, que deveria proteger todo acusado, é esmagada por uma suposta infabilidade das decisões da justiça.

A produção da série desencadeou uma petição online, com cerca de 300 mil assinaturas, enviada à Casa Branca. Espectadores da série chegaram a pedir que Barack Obama perdoasse a prisão de Avery. O presidente dos Estados Unidos, no entanto, não tem esse poder, já que a condenação foi feita em esfera estadual.

Mas independentemente do desfecho do caso Avery, dezenas, talvez centenas, de milhares de pessoas continuam a lotar o sistema carcerário estadunidense sendo inocentes ou estando submetidas a penas desproporcionalmente elevadas em relação aos crimes que cometeram.

O jurista argentino Eugenio Zaffaroni costuma dizer que a sociedade em que vivemos só tem lugar para uns 2/3 viverem com alguma dignidade. O restante não alcançará jamais este patamar e qualquer movimento em direção à busca de uma vida mais digna deve ser contido com violência.

A questão é…Avery está sendo acusado novamente e novamente ele jura inocência.


Leia mais em:

ZAFFARONI, Raúl Eugenio (2013) - “Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter”: www.brasildefato.com.br/node/14487 - acesso em 21/02/16.

http://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/297094181/making-a-murderer-5-topicos-para-pensar-a-justica-criminal

http://blog.jovempan.uol.com.br/radioatividade/2016/02/05/making-a-murderer-vale-corromper-a-justica-para-condenar-um-culpado-jurista-discute/ (entrevista Lênio Streck).

http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-01-29-A-historia-impossivel-do-homem-que-ninguem-sabe-se-e-inocente

http://mosaicando.com.br/quantos-steven-avery-voce-julgou/


Danielle Heil (1)

. Danielle Mariel Heil é advogada, especialista em Direito Constitucional pela Fundação Educacional Damásio de Jesus, em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina e em Direito Ambiental pela Verbo Jurídico. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. .


Imagem Ilustrativa do Post: Sem título // Foto de: Neil Conway // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/neilconway/6347595001

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O texto é de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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