Por Eduardo Januário Newton - 11/03/2015
A crise da modernidade demonstrou que o conhecimento científico, além de salvar a humanidade, pode também destruí-la. Apesar de todos os significativos avanços tecnológicos, problemas antigos ainda restam sem a devida solução para a parcela mais miserável da população. A análise da questão alimentar desnuda a desigualdade promovida pela modernidade. Vergonhosamente, ainda, existem os bolsões de miséria, cujos seres humanos se deparam com dieta diária inferior ao recomendado para uma vida sadia. Ao mesmo tempo, é rotineiro aferir campanhas contra a obesidade e problemas médicos decorrentes de uma alimentação equivocada. Daí, se consegue concluir que não é a produção de gêneros alimentícios o desafio a ser superado, mas sim a distribuição dos mesmos. Ao contrário do que se poderia ter imaginado, a busca pelo saber produzir mais não representou automaticamente em melhoria das condições de vida de todos[ii].
A ciência jurídica não passou imune a esse verdadeiro processo de desilusão do conhecimento, sendo certo que, como consequência disso, necessitou adotar uma postura de humildade, no sentido de reconhecer os seus limites. Para tanto, o diálogo com outros ramos do conhecimento se mostrou imprescindível, até mesmo como forma de romper com uma tendência de manutenção do status quo. Para a realidade brasileira, existe ainda uma especificidade que não pode ser desconsiderada, qual seja, as leis, tal como os medicamentos ou vacinas, podem, ou não, “pegar”, ou seja, a vigência e validade do comando legal não implicam necessariamente na efetividade. Quando realizada essa confabulação do direito com o desigual processo histórico nacional, pode-se relacionar a ausência de efetividade de determinados preceitos como puro e perverso mecanismo de manutenção do estado das artes[iii].
No entanto, a apontada necessidade de o direito comunicar-se com outras ciências não retira a sua parcial autonomia tampouco permite que os argumentos metajurídicos – e eis aqui a fonte de uma prática típica do ativismo judicial – possam ser invocados no ato decisório. Não é papel do hermeneuta se valer de argumentos morais, religiosos, econômicos ou de qualquer outro gênero distinto do jurídico, para fundamentar seus posicionamentos.
Adotada a premissa de que o conhecimento jurídico não pode dispensar os demais ramos do conhecimento, mas que não pode se valer desse diálogo como fundamento decisório, até mesmo como forma de colocar em xeque as instituições democráticas, é, enfim, chegado o momento de discorrer seriamente sobre um aspecto específico do direito processual penal: o testemunho do agente público responsável pela investigação ou prisão do acusado.
O citado objeto não constitui uma escolha aleatória, pois, na verdade, o direito processual penal ainda convive com uma crise de identidade, isto é, o seu principal instrumento foi concebido em período autoritário e sob a influência da realidade da Itália fascista, o que aliado a um pensamento hegemônico de nítida dificuldade com a convivência democrática, impede que as garantias constitucionais se façam presentes no cotidiano forense. Os exemplos da incrível da supremacia legal frente ao Texto Constitucional são inúmeros e, quiçá, o mais significativo seja a necessidade de alterar as normas do CPP sobre o interrogatório para somente impedir que condenações viessem a ser pautados pelo legítimo exercício do direito ao silêncio. Inserido no direito processual penal, a temática probatória adquire relevância ímpar, pois é por meio, e somente por ela nos quadrantes do devido processo legal, que o estado de incerteza poderá ser afastado e, assim, justificar a prolação de uma sentença condenatória.
Apesar do fascínio cinematográfico pelas investigações policiais com o manejo de recursos técnicos de ponta, a realidade demonstra que, salvo os casos que obtêm alguma repercussão nos veículos da mídia, o acervo probatório é constituído basicamente pelas provas testemunhais, mais especificamente os depoimentos dos agentes públicos responsáveis pela investigação ou mesmo a captura do acusado. Esse cenário, por si só, permite questionar o trabalho investigativo, já que não poderia prevalecer uma seletividade de meios investigativos[iv]; contudo, o enfoque a ser abordado nesse breve texto é outro: esses depoimentos gozam de presunção de validade e veracidade? Há, a priori, a possibilidade de afirmar que esses depoimentos são suficientes para a condenação de alguém?
No estado do Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça sumulou entendimento, que se encontra materializado no verbete nº 70 – “O fato de restringir-se a prova oral a depoimento de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação - no sentido de que a presença exclusiva dos depoimentos de policiais não impede a prolação de uma sentença condenatória.
A partir de uma lógica republicana não mais se mostra possível realizar qualquer diferenciação simplesmente a partir do exercício de um cargo ou profissão, das condições existentes ao tempo do seu nascimento (classe social ou econômica) ou de qualquer outro privilégio que denote a coloração odiosa. Não é demais frisar que, desde o advento da república, fato ocorrido na já distante quartelada do dia 15 de Novembro de 1889, não se mostra mais possível adotar os óbices para a implementação de uma sociedade verdadeiramente igualitária[v]. A advertência realizada por George Orwell, que foi direcionada para a realidade totalitária soviética, deve servir de alerta para a atuação estatal; logo, não se pode(ria) imaginar alguns personagens mais iguais que outros.
Em assim sendo, toda e qualquer condenação lastreada em depoimentos policiais pode ser questionada, desde que, e esse dado não pode ser diminuído até mesmo como forma de impedir qualquer pecha de preconceituosa, o julgador adote como postura decisória a validade e a veracidade a priori dessa específica prova testemunhal.
Há, ainda, um outro aspecto que não pode(ria) ser desconsiderado na tomada de posição apriorística da validade e veracidade dos depoimentos dos agentes responsáveis pela investigação e captura daquele que responde um processo penal, qual seja, o fato de existir entendimento sumulado pelo TJRJ não elide o intérprete, mas especificamente o julgador, de aferir a possibilidade de o caso sub judice se enquadrar na realidade descrita pela citada súmula. Dito de outra maneira: não se mostra possível recorrer automaticamente ao entendimento sumulado de maneira abstrata. É necessário, nesse instante, realizar o devido questionamento sobre a “técnica de aplicação de precedentes à brasileira”[vi], que desconsidera, e por completo, a facticidade, isto é, a realidade fática que levou a apreciação e posterior consagração do verbete sumular. Somente com o cotejamento entre as realidades, é que se deve(ria) mostrar possível a correta utilização do precedente[vii]. Caso contrário, trata-se de mero uso performático[viii] e que somente servirá de auxílio para as consciências de magistrados que se veem pressionados por prazos, metas e preenchimento de questionários aos órgãos correcionais.
O fato de as presunções de validade e veracidade dos depoimentos de policiais serem adotadas como verdadeiro alívio decisório permite, e quem sabe em um outro texto essa questão venha a ser objeto de aprofundamento, a análise crítica sobre o aspecto cênico estabelecido nas diversas audiências criminais. Como se fosse um “jogo de cartas marcadas”, naturaliza-se a leitura memorizada dos registros de ocorrência, o que é colocado à prova diante do magistrado, a medonha situação existente nas periferias justificar a falta de testemunhas presenciais e se recorre à assertiva de que a defesa não conseguiu demonstrar o interesse dos agentes públicos no julgamento favorável da pretensão deduzida em juízo.
Por outro lado, os noticiários poderiam servir de fonte para o total descrédito dos depoimentos dos agentes públicos em questão. Porém, esse agir representaria a adoção do extremo oposto do conforto decisório ocasionado pelo manejo da citada súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro. O descrédito a priori dos depoimentos policiais ou demais responsáveis pela investigação ou prisão do investigado denotaria postura preconceituosa e, por essa razão, deve ser evitada a todo custo.
Na verdade, o controle da prova testemunhal, independente de quem foi ao juízo depor, somente se mostrará legítimo com a sua realização após a sua produção, não devendo, portanto, existir qualquer predisposição favorável ou contrária a quem quer que seja ouvido no curso da instrução criminal. A única presunção vigente no processo penal decorre do estado de incerteza sobre a culpabilidade do acusado, o que não se relaciona com a figura da testemunha. As eventuais contradições entre os depoimentos somente poderão militar em favor daquele que iniciou o processo na condição de inocente.
Por fim, alvissareira se mostra a recente decisão proferida pelo Juiz de Direito fluminense Marcos Augusto Ramos Peixoto (http://emporiododireito.com.br/juiz-reconhece-incoerencia-no-depoimento-de-policiais-e-absolve-acusado-de-trafico-no-tjrj/) que, ante as incoerências existentes nos depoimentos prestados pelos policiais ouvidos em juízo, materializou a única decisão possível: a absolvição, o que poderia ser inimaginável com a automática aplicação de um abstrato verbete sumulado, que poderia, ou não, ter adequação ao caso examinado. Diante do risco do erro judicial, o que representaria a condenação de alguém, acertadamente foi julgada improcedente a pretensão acusatória. Oxalá, seja essa decisão tão-somente a pioneira de tantas outras que refutam o comodismo jurisprudencial.
Notas e Referências:
[ii] As considerações apresentadas por Ulrich Beck se mostram pertinentes nesse instante: “Nos Estados de Bem-Estar altamente desenvolvidos do Ocidente, ocorre um processo duplo: de um lado, a luta pelo ‘pão de cada dia’ – em comparação com a subsistência material até a primeira metade do século XX e com o Terceiro Mundo, ameaçado pela forme – deixa de ter a urgência de um problema básico que lança sombra sobre tudo o mais. Em lugar da fome, surgem, para muitas pessoas, os ‘problemas’ do ‘excesso de peso’. Desse modo, porém, o processo de modernização é privado de seu fundamento de legitimidade até então vigente: o combate à miséria gritante, em razão do qual se dispunha a arcar com certos efeitos colaterais (já não inteiramente) imprevistos”. (BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Ruma a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 25)
[iii] Dentre das possibilidades que poderiam ilustrar a resistência de setores hegemônicos em conferir um caráter transformador do direito, são destacadas as seguintes situações: a omissão legislativa em instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas, a letargia na institucionalização das Defensorias Públicas e a ausência de norma específica que regulamente o direito à greve dos servidores públicos
[iv] Eis a crítica de Alexandre Morais da Rosa quanto aos “franciscanos” meios probatórios empregados no curso da persecução penal: “Estamos em 2014, tempos em que a tecnologia facilita as filmagens — aliás, os policiais depois das jornadas de protestos de 2013 receberam câmeras para serem colocadas nas fardas — e não se justifica a manutenção do modelo medieval de produção probatória testemunhal. Há possibilidade de tal proceder e não se faz. Logo, enfraquecida resta a prova. E é o que se faz quando se confere alto valor probatório aos testemunhos de policiais, dando-lhes capacidade de, ‘per se’, embasarem uma condenação: o próprio agente público finda por ‘se transformar na prova’ quando, na realidade, sua função precípua é a de angariar elementos probatórios.” (ROSA, Alexandre Morais. Teoria da perda da chance probatória pode ser aplicada ao processo penal. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal)
[v] O Texto Constitucional de 1891 se mostrou simbólico nesse aspecto, pois previu a igualdade de todos e o mais completo repúdio aos privilégios, conforme se verifica no seu artigo 72, § 2º - Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho (grafia atualizada).
[vi] Rosivaldo Toscano Santos Júnior apresenta dura censura ao modo de decidir pautado na mera repetição de ementários: “As súmulas (vinculantes ou não), as repercussões gerais e as ementas dos julgados, inautenticamente chamadas de ‘precedentes’, pois não guardam similitude com o precedente da tradição da ‘common law’, tornaram-se verdadeiros fetiches na práxis judiciária, sem os quais o senso comum teórico não consegue obter uma resposta para as questões que surgem, em razão da abordagem da questão de maneira dogmática, repetitiva, maquinal e acrítica.” (SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano. Controle remoto e decisão judicial. Quando se decide sem decidir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 134)
[vii] A crítica apresentada por Maurício Ramires se mostra adequada para esse uso instrumental de um verbete sumular: “O caminho mais curto para o esquecimento do mundo concreto e para o encobrimento dos fatos da vida é a busca de lições jurídicas em meros verbetes ou ementários jurisprudenciais, em vez de acórdãos ou decisões judiciais completas (que ao menos são dotados obrigatoriamente de um relatório do processo, com um resumo do caso decidido). É sabido que dentre as mais consultadas obras jurídicas na prática forense estão os códigos comentados, que apresentam inúmeros verbetes à guisa de ilustrar a ‘interpretação jurisprudencial’, de cada artigo. Tais verbetes são enunciados de, quando muito, duas ou três linhas, que ganham ali total independência do contexto para o qual foram originalmente redigidos.” (RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 49.)
[viii] Lenio Streck e Georges Abboud, com base na filosofia da linguagem, criticam a forma como pode ser utilizada a súmula vinculante, o que também se mostra válido para os enunciados desprovidos da referida força: “A visão tradicional sobre a súmula vinculante é refratária ao acesso hermenêutico, porque ignora que o direito deve ser concretizado em cada caso concreto, e não apenas através da subsunção de fatos a previsões normativas, dessa maneira, passa-se a acreditar que a súmula vinculante, uma vez editada, resolveria diversos casos idênticos, mediante um simples silogismo, invocando a favor da utilização da súmula sempre a necessidade de tratar de maneira igualitária os jurisdicionados, ou seja, de que a súmula vinculante é um instrumento que privilegia a isonomia, ignorando que ‘o caso concreto, com as suas circunstâncias particulares e com a individualizada perspectivação histórico-social que impõe, exige uma autônoma ponderação também concreta que os critérios normativos invocados – os princípios, os institutos dogmáticos, as normas – só podem fundamentar pela mediação de um específico enriquecimento normativo’. A hermenêutica (filosófica) já permitiu que ficasse esclarecido que a norma não se confunde com o texto lega (enunciado), dado que a norma surge somente diante da problematização do caso concreto, seja real ou fictício, e consiste em equívoco do positivismo legalista entender que a norma já está acabada e presente no texto da lei ou em um enunciado da súmula vinculante. A lei e a súmula vinculante são ‘ante casum’ com o objetivo de solucionar casos ‘pro futuro’”. (STRECK, Lenio & ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 51-52)
Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público no estado de São Paulo (2007-2010). Mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela UNESA. Email: newton.eduardo@gmail.com
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