O Delegado de Polícia como (primeiro) garantidor da inviolabilidade do domicílio

23/12/2017

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.616 (realizado aos 05/11/2015), em sede de repercussão geral, fixou a tese de que a violação do domicílio é legal se amparada em fundadas razões (justa causa). Assim, independentemente da existência de mandado judicial, mas desde que presentes fundadas razões de que no local há a prática de infração penal, pode o morador ter seu domicílio violado, sem que isso importe em ilicitude da prova.

Aludida tese ficou assim assentada:

Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões devidamente justificadas posteriormente que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.

Perceba-se que não ganha relevo o fato de a infração penal ser permanente (v.g. tráfico de drogas), porquanto se o domicílio foi violado sem que houvesse fundadas razões de que havia no local a prática de crime, permanente ou não, o meio de obtenção da prova deve ser considerado ilegal e, por conseguinte, deve a prova ser maculada de ilicitude.

Haure-se do julgado em comento, ademais, que há de ser realizado um controle judicial a posteriori da violação do domicílio procedida sem mandado judicial a fim de se aferir a (i)licitude da prova angariada. Contudo, da cadeia natural de desdobramento de uma prisão em flagrante, há inicialmente a presença da autoridade policial, devendo essa, por sua vez, realizar in continenti um controle jurídico da prisão operada por agentes policiais.

Mais que isso, para uma completa compreensão do fenômeno deve ser vista a prisão em flagrante como um ato complexo. Em um primeiro momento, o agente policial (ou cidadão do povo) dá a chamada “voz de captura” àquele que se encontra em uma das hipóteses de situação flagrancial descrita no art. 302 do Código de Processo Penal.

Em seguida, apresentado o conduzido à autoridade policial, em regra, o Delegado de Polícia deve, nos termos da legislação vigente, realizar a análise técnico-jurídica do composto fático que lhe foi apresentado e, se for o caso, ratificar a “voz de captura” determinando a lavratura do auto de prisão em flagrante. Neste momento temos como concretizado o ato complexo.

Como sabido, a autoridade policial é o primeiro garantidor dos direitos fundamentais e das liberdades individuais, de modo que se torna imperiosa a aplicação dos princípios e regras do ordenamento jurídico nacional e internacional já quando da lavratura do auto de prisão em flagrante.

Quando a Lei nº 12.830/2013 dispôs em seu artigo 3º que “o cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito (..)”, quis, para além de qualquer aparência, assentar a natureza jurídica da função exercida pelo delegado de polícia. A “análise técnico-jurídica do fato” exigida pelo §6º do artigo 2º da referida lei para o ato de indiciamento vem corroborar a importância do papel exercido pela autoridade policial.

A carreira de delegado de polícia é reconhecidamente jurídica, tanto no campo legal, quanto no jurisprudencial e doutrinário, e lhe é assegurada a independência e autonomia no exercício de seu mister. Além disso, a atividade policial ainda exige conhecimento técnico-científico de estratégias e recursos de investigação e procedimento policial, o que confere ao profissional a característica de interdisciplinaridade laboral.

Portanto, se a Constituição Federal tutela o domicílio determinando ser ele asilo inviolável do indivíduo, apresentando taxativamente as exceções à referida regra, e, ao mesmo compasso, vem a corte máxima do judiciário brasileiro assentar o entendimento acima mencionado, razão não remanesce para impedir que a autoridade policial proceda a análise técnico-jurídica da voz de captura, deixando de convertê-la em prisão em flagrante se as circunstâncias assim recomendarem.

Não há lógica, de qualquer sorte, que venha de encontro à possibilidade de a autoridade policial deixar de lavrar auto de prisão em flagrante.

Enveredando, pois, na tese fixada pelo STF no julgamento do RE nº 603.616, certo é que igualmente deve a autoridade policial proceder o controle acerca da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, de modo que a prisão em flagrante deve ser decretada apenas se constatado pela autoridade, após análise técnico-jurídica, ter sido a regra respeitada.

Ao se deparar com uma captura resultante de violação do domicílio sem mandado judicial, a autoridade policial pode e deve proceder à análise técnico-jurídica das circunstâncias para se aferir a (in)existência das fundadas razões preconizadas pelo STF no referido julgamento, ao passo que, caso não logre vislumbrar justa causa para a violação do domicílio, deve, ante a ilegalidade, relaxar a prisão.

Há que se destacar ainda que a partir do momento em que o conduzido é apresentado à autoridade policial, esta dá início à investigação propriamente dita com o consequente apoio de todas as diligências e medidas cautelares cabíveis nesta etapa da persecução penal. O que não impede, em havendo o preenchimento dos requisitos legais, que o Delegado de Polícia, munido do necessário lastro investigatório, represente ao Poder Judiciário pela decretação de outras modalidades de restrição de liberdade do indivíduo, se necessário, como a prisão preventiva ou temporária, além das medidas cautelares diversas da prisão.

Frise-se que o Delegado de Polícia não é mero documentador de um fato típico que lhe foi apresentado. É seu dever analisar o composto fático da condução e, com a devida fundamentação jurídica, converter a voz de captura e determinar a lavratura do auto de prisão em flagrante. Eis a razão pela qual nenhum óbice existe em, considerado o caso concreto, a autoridade policial deixar de converter a voz de captura e determinar a instauração de investigação criminal para apurar eventual fato típico, se for o caso. 

Tem-se, com isso, que o primeiro resguardo jurídico da controvérsia penal em que haja prisão em flagrante recai à autoridade policial, e essa, por sua vez, não pode furtar-se de sua função jurídica, devendo, por esse motivo, deixar de ratificar a voz de captura caso constate transgressão à norma constitucional da inviolabilidade do domicílio.

Óbice jurídico não há, por todo o exposto, quanto à possibilidade de a autoridade policial deixar de ratificar a voz de captura e convertê-la em prisão em flagrante quando operada fora dos limites jurídico relacionados às hipóteses de aceitação da violação à proteção do domicílio, relaxando a privação da liberdade de locomoção do agente.

 

Imagem Ilustrativa do Post: El apartamento // Foto de: Antón Osolev // Sem alterações

 

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