O «cuidado» do outro: educar na afetividade (Parte 2)

25/03/2016

 Por Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez - 25/03/2016

Leia também a Parte 1.

“Estamos rodeados de piedad sin contenido.

Susan Sontag

O (difícil) cuidado do «outro»

Rememoremos algumas trivialidades[1]. O fenômeno pelo que a distância degrada à banalidade e/ou à insensibilidade os demais não é um juízo de valor sobre o diferente peso ou importância da vida ou da dignidade humana. Tampouco nos diz como deveria ser o mundo. Simplesmente nos diz como é. Não nos definimos discriminando aos demais, senão selecionando aos que sentimos próximos. Onde a empatia realmente importa é nos nossos relacionamentos pessoais, porque não se pode querer e ter em alta estima a todos os seres humanos viventes (o que se pode querer e ter em alta estima é a «ideia» de ter em alta estima a todos os seres humanos).

Não resulta fácil imaginar-se com maior claridade a diferença entre qualquer teoria sobre a dignidade e nosso sentimento moral completamente subjetivo. Provavelmente todos somos da razoável opinião de que toda vida humana vale em princípio o mesmo. Mas só em princípio. Com efeito, fazemos diferenças muito grandes entre o valor da vida de pessoas próximas a nós e o daquelas que não o são. O imperativo categórico de Kant, segundo o qual nossa ação moral há de tender sempre a gozar de validez universal, em realidade é (incessantemente) socavado por nossos instintos sociais, nossas emoções e intuições morais. E por muito correto e convincente que o imperativo categórico seja como ideia, nada ou muito pouco tem que ver com nossa práxis na vida diária: queremos e temos em alta estima a algumas pessoas que conhecemos.[2]

Quando valoramos moralmente a outras pessoas medimos com rasoura diferente; e não é a razão ou a insistência do “cuidado” as que pronunciam nosso juízo, “sino más a menudo la simpatía” (R. D. Precht). Nossa percepção e sensibilidade do mundo são as de animais com componentes defeituosos e uma duração reduzida. Que valoremos de outro modo a pessoas que nos resultam cercanas que a estranhos é um instinto natural. De animais inteligentes, certo, mas o foco de interesse e a natureza dessa inteligência são muito limitados. Apesar da infinita variedade da condição humana e de nossa inigualável capacidade mais ampla de abstração, de planificação a largo prazo e de representação para criar deslumbrantes fantasias e discursos de tipo «Miss Universo» («moral universal», «dignidade humana», «ética do cuidado», «igualdade plena», «justiça global» e um longo etcétera), isto não está em relação direta com o que em nosso dia a dia experimentamos, compreendemos, elegemos, decidimos e podemos, portanto, pôr em prática. Somos uma espécie que em cada momento de vigília — e inclusive em sonhos — luta para dirigir o fluxo de sensação, emoção e cognição a estados de consciência que valoramos, especialmente quando se trata de nossas relações e vínculos afetivos. (S. Harris)

A seleção natural desenhou nossa espécie para a sobrevivência, a autopreservação, o bem-estar próprio e o cuidado continuado destinado à nossa descendência. E uma vez que nossos cérebros estão organizados para investir muita atenção nos seres mais achegados, indispensáveis para perceber e sentir quem somos, os sentimentos implicados nas táticas de “«protegerse a uno mismo» también se hallan en las tácticas de «proteger a los míos»” (P. Churchland). A neurobiologia do apego, da afetividade e da empatia, responsável pela geração e intensidade da diligência e atenção para valorar, apreciar, cuidar e preocupar-se pelos indivíduos que não são de nossa própria descendência, não começa ou se ativa com uma explosão de boa vontade ou de solidariedade, senão como um frágil sussurro causado e estimulado pela sensação de afinidade.

Daí que o entorno natural social em que o ser humano plasma seus vínculos de afeto e apego é sua horda: ela é nosso mundo emocional, o lugar do amor, do ódio, da compreensão, da ajuda, da cooperação, do câmbio e o intercâmbio, da preocupação pelos demais e do cuidado. “Lo que queda fuera de ese alcance solo lo percibimos como lejano” (R.D. Precht). Para os seres humanos normais e com personalidade própria, os outros somente importam através das situações nas quais podemos cruzar-nos com eles. Porque o natural, o instintivo, é que o despertar da empatia, da simpatia ou da compaixão se dirija sempre a um ser singular e próximo: o «outro» há de ser separado da massa, individualizado, íntimo, com um rosto identificável e cujo destino podemos seguir.

A compaixão, ensina Martha Nussbaum, “tiene tres elementos cognitivos: el juicio de la  magnitud (a alguien le ha ocurrido algo malo y grave); el juicio del inmerecimiento (esa persona no ha provocado su propio sufrimiento); y un juicio eudaimonista (esa persona o esa criatura es un elemento valioso en mi esquema de objetivos y planes, y un fin en sí mismo cuyo bien debe ser promovido)”. Todos se ativam evidentemente ante a contemplação do sofrimento alheio. Agora, sendo inegável a magnitude da desgraça, assim como irrefutável o imerecimento da dor causada, é o «juízo eudaimonista» o que está equivocado a maior parte das vezes  – “y casi siempre de forma dramática”, adverte a autora. A imaginação empática se quebra ante a percepção sobre até que ponto outros seres humanos devem ser incluídos dentro do círculo daqueles que merecem nosso interesse e cuidado, e nossa atitude respeito do que lhes passe.

Por esse motivo há concepções éticas, já sejam religiosas ou seculares, que animam às pessoas a ampliar ou transcender suas esferas de interesses mais além dos limites que abarca a moral cálida da proximidade. No entanto, nem tudo é benevolência no reino do Senhor. Nada é o que parece; nem nos tocam indiscriminadamente as simpatias pelo evidente. Em verdade, somente algumas almas cândidas creem que existe algo assim como um gene da bondade universal no DNA dos seres humanos: nossos sentimentos, decisões e disjuntivas morais se condensam no cérebro e o que chamamos «empatia» (ou «altruísmo»[3]) tem uma composição tão eletroquímica como o que chamamos «amor próprio» (ou «egoísmo»). O alcance de nossa simpatia e de nossa incumbência moral requer um sentimento de cercania emocional, de identidade, de ação presente e que esta ameace ou dane um sistema físico cuja antropomorfização seja praticamente adjacente e imediata para gerar um sentimento de dor, angústia ou mal-estar próprio.

O cuidado e a preocupação humana ante o sofrimento, “las necesidades y las motivaciones” do «outro» não é proporcional à intensidade ou quantidade dos mesmos, senão ao grau de confinidade de quem o padece: nossos familiares e amigos pertencem ao âmbito mais estreito de apego, sentimento de afeto compartido e simpatia, no seguinte nível estão as pessoas que conhecemos bem e depois vem as que nos importam mais ou menos igual. E ainda que creiamos que não deveria ser assim, o certo é que nos importa mais o dano que se fez nosso filho no pátio do colégio que a morte de 20.000 pessoas desconhecidas em terremoto ocorrido em algum lugar muito remoto do mundo. Quanto mais interesse, mais empatia, cuidado e afeto; quanto menos, mais indiferença, menosprezo e apatia.

Os patéticos chamamentos ou gritos de alarme para que nos «empatizemos» com “la dependencia y la vulnerabilidad del otro” e/ou que cuidemos dos demais produzem uma espécie de insensibilidade redobrada, lassa, fruto da saturação e não da carência; uma sensibilidade intermitente afetada por algumas rachas de emoção fugaz em que se oculta uma espécie de desprezo disfarçado. O único que nos concerne não é o que nos comove, senão o que nos ameaça ou nos resulta proveitoso. Em consequência, dado que não podemos colocar-nos no lugar do outro indistintamente, nossa preocupação, cuidado ou compaixão pelos demais está cada vez mais submetida à lei mais cambiante: a do capricho. Uma paisagem desoladora da trivialidade contemporânea em que aprendemos a desatender caprichosa e deliberadamente o chamado do «outro». Isso que Ortega y Gasset chamava «el espíritu de nuestro tiempo».

Para que a afetividade não se degrade em uma difusa piedade, para que não olvidemos que o que impede amar a todos é precisamente o que permite cuidar a uns quantos, é necessário entender e abraçar a evidência de que o sentimento de simpatia ou empatia por alguém não depende de como percebamos sua fragilidade, seu sofrimento ou suas carências: sempre faltará ainda esse «algo», esse «quid», que nos estremece a alma[4]. Como seres limitados que somos, não podemos entregar-nos a todos e a empatia não pode responder a todas as expectativas, como tampouco aplacar todos os prantos: “hagamos lo que hagamos, nunca conseguiremos saldar nuestra deuda con la desdicha de los demás. Y seguimos oscilando, como un péndulo, entre el anhelo de la simpatía universal y la encarnación restrictiva” (P. Bruckner). Somos o que somos!


Notas e Referências:

[1] https://www.researchgate.net/publication/291354589_Sobre_o_quilometro_sentimental

[2] Em uma elegante formulação de Peter Sloterdijk: “El valor de uso del imperativo categórico está en su sublimidad, que salvaguarda su inaplicabilidad”.

[3] O desejo de «procurar o bem dos demais», como se define este comportamento, pode estar promovido pela empatia (a capacidade de colocar-se no lugar do outro) ou pela reciprocidade (sentir-se na obligação de devolver um favor). E ao parecer, ambos casos têm uma rubrica diferente no cérebro. (G. Hein et al.)

[4] E não percamos de vista o mal que há na piedade generalizada ou indiferenciada: ser objeto de compaixão geral não é somente uma forma despiedada de amputação ou de morte social, senão também um ato que, frequentemente, só beneficia ao doador, quase sempre em algum tipo de expressão pública interessada, e ofende a humanidade daqueles que se encontram no lado receptor: sua humanidade resulta maltratada pela comiseração compulsória e/ou descuidada de outras pessoas; quer dizer, como uma questão de imagem e sutil forma de perversão da noção de respeito, a indulgência arbitrária "degrada a quien la recibe y enaltece a quien la dispensa". (George Sand)


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


marlyMarly Fernandez é Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: The other side of the Fence series // Foto de: Nick Kenrick // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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