O crime de apropriação indébita previdenciária – Por Ricardo Antonio Andreucci

16/02/2017

O crime de apropriação indébita previdenciária vem tipificado no art. 168-A do Código Penal, tendo sido introduzido pela Lei n. 9.983, de 14 de julho de 2000. Anteriormente, já existia dispositivo semelhante no art. 95 da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991.

Esse delito tem como objetividade jurídica o patrimônio da Previdência Social. Trata-se de crime próprio. O sujeito ativo somente pode ser a pessoa responsável pelo repasse à Previdência Social do montante recolhido dos contribuintes a título de contribuição previdenciária. Sujeito passivo é o Estado, responsável pela Previdência Social. A conduta típica vem expressa pelo verbo “deixar”, que denota omissão própria.

Não se deve tratar esse tipo penal, entretanto, como modalidade de apropriação indébita, uma vez que a lei não subordina a ocorrência do crime ao “animus rem sibi habendi” do sujeito ativo, que resolve apropriar-se do montante relativo à contribuição previdenciária, contentando-se, para a consumação, com a simples omissão no repasse à Previdência Social.

Como bem ressalta Alberto Silva Franco (“Código Penal e sua interpretação jurisprudencial”: parte especial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v. 2, p. 2780), “na hipótese da denominada apropriação indébita previdenciária, o empresário não recebe do trabalhador a contribuição social destinada à previdência, posto que o empresário, quando paga o salário, já desconta aquela contribuição, dela não tendo o trabalhador disponibilidade. Isso significa que o importe dessa contribuição social permanece sempre em poder do empresário e, portanto, quando efetua sua transferência para a previdência, o valor da contribuição sai do próprio ativo da empresa. Destarte, se o empresário não perde a propriedade do dinheiro destinado à contribuição previdenciária, não há cogitar da aplicabilidade, no caso, de um delito patrimonial clássico, como a apropriação indébita. Quem efetivamente desconta do salário a contribuição social tem, a partir desse momento, a obrigação, imposta por lei, de transferi-la à previdência e, se não a repassar ou não a recolher, descumpre esse dever legal. Se o descumprimento desse dever legal deve ser sancionado penalmente, diante da ineficácia da proteção meramente administrativa ou da necessidade de tutela da seguridade social, é avaliação própria do legislador penal. E a lei penal optou por proteger a função arrecadadora da seguridade social, impondo sanções, de caráter penal aos protagonistas, que, na fase arrecadatória, poderiam lesioná-la: o repassador ou o recolhedor das contribuições sociais que infringem o dever legal de entregá-las”.

Trata-se de norma penal em branco, uma vez que a consumação do crime está subordinada ao “prazo” e “forma legal ou convencional”, que vêm estabelecidos pela Lei n. 8.212/91. Não é admitida tentativa. A ação penal é pública incondicionada.

O § 1º do artigo descreve outras condutas omissivas sujeitas à mesma reprimenda do “caput”, nos incisos I a III, todas relacionadas ao não-recolhimento ou repasse de importâncias relacionadas à Previdência Social.

Questão interessante, entretanto, vem tratada no § 2º do referido artigo, que estabelece causa especial de extinção da punibilidade do delito, que se subordina ao cumprimento dos seguintes requisitos: a) declaração, confissão e efetivo pagamento, pelo agente, das contribuições, importâncias ou valores devidos à Previdência Social; b) prestação das informações devidas pelo agente à Previdência Social; c) que o agente efetue as condutas acima espontaneamente, e na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

A ação fiscal, mencionada pelo dispositivo penal, não se confunde, obviamente, com a ação penal. Ação fiscal é a ação do fisco como autoridade administrativa, que se concretiza com a instauração do procedimento administrativo fiscal. Pela ação fiscal, então, que se inicia com a notificação do lançamento do tributo, objetiva o Estado a cobrança coercitiva das contribuições, importâncias ou valores devidos, recolhidos dos contribuintes pelo agente, e não repassados à Previdência Social, no prazo e forma legal ou convencional.

Percebe-se nitidamente, nesse aspecto, que o intuito do Estado não é punir, mas arrecadar, utilizando indevidamente o Direito Penal como forma de ameaça ao indébito apropriador, que terá diversas chances de afastar ou abrandar a punição pelo crime já praticado.

Assim é que, inclusive, no que tange à ação penal, poderá o agente beneficiar-se do arrependimento posterior, nos termos do que estabelece o art. 16 do Código Penal.

Não se aplica, portanto, o art. 34 da Lei n. 9.249/95 em razão da nova hipótese criada pela Lei n. 9.983/2000.

Assim, em resumo:

a) se o pagamento ocorrer até o início da ação fiscal: extinção da punibilidade (§ 2º);

b) se o pagamento ocorrer após o início da ação fiscal e até o oferecimento da denúncia: perdão judicial ou multa (§ 3º);

c) se o pagamento ocorrer após o oferecimento, mas antes do recebimento da denúncia: arrependimento posterior (art. 16 do CP);

d) se o pagamento ocorrer após o recebimento da denúncia: atenuante genérica (art. 65, III, “b”, do CP).

A Lei n. 10.684/2003, em seu art. 9.º, § 2.º, permitiu o pagamento integral do débito referente à apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) e à sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP), mesmo depois de iniciada a ação penal, em qualquer fase do processo, como causa de extinção da punibilidade, ficando, portanto, prejudicadas as disposições do § 2.º do art. 168-A e do § 1.º do art. 337-A.

A nosso ver, esse quadro não foi alterado pela Lei n. 12.382/2011, a qual acrescentou o § 4.º ao art. 83 da Lei n. 9.430/96, do seguinte teor: “§ 4.º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”.

A hipótese acima, a nosso ver, somente tem aplicabilidade no caso de pagamento integral, com a consequente extinção da punibilidade, dos débitos oriundos de tributos ou contribuições sociais que tiverem sido objeto de anterior parcelamento, feito antes do recebimento da denúncia criminal.

Em suma, há duas situações diversas, com tratamento legal diverso: a primeira delas envolvendo o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais não parcelados, o que pode ocorrer antes ou em qualquer fase do processo criminal, gerando a extinção da punibilidade, nos termos do § 2.º do art. 9.º da Lei n. 10.684/2003; a segunda, envolvendo o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais anteriormente parcelados, situação que se enquadra no disposto no § 4.º do art. 83 da Lei n. 9.430/96, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 12.382/2011, somente ensejando a extinção da punibilidade se o parcelamento tiver sido feito antes do recebimento da denúncia criminal.

Nesse último caso, de extinção de punibilidade pelo pagamento integral de débitos parcelados, deve ser considerada a irretroatividade da lei mais severa, de modo que o disposto no § 4.º do art. 83 da Lei n. 9.430/96 somente pode ser aplicado aos lançamentos ocorridos a partir de 25 de fevereiro de 2011. Assim, para os lançamentos ocorridos antes desta data é possível o parcelamento antes ou em qualquer fase do processo, podendo ocorrer também o pagamento integral do tributo ou contribuição social, com a consequente extinção de punibilidade.

Com relação ao parcelamento, a Lei n. 11.941/2009 alterou a legislação tributária federal relativa ao parcelamento ordinário de débitos tributários. Com isso, a referida lei permitiu o parcelamento dos débitos relativos à apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) e à sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP).

Nesse sentido, dispõe o art. 67 da referida lei que na hipótese de parcelamento do crédito tributário antes do oferecimento da denúncia, essa somente poderá ser aceita na superveniência de inadimplemento da obrigação objeto da denúncia.

Ressalta, ainda, o art. 68 que fica suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente a esses crimes, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos.

Importante lembrar que, nesse caso, a prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

Outrossim, de acordo com a citada lei, extingue-se a punibilidade desses crimes quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.

Com a edição da Lei n. 12.382/2011, entretanto, a matéria recebeu nova regulamentação, já que foi alterada a redação do art. 83 da Lei n. 9.430/96, ao qual foram acrescentados importantes parágrafos, tratando do parcelamento e da suspensão do curso da prescrição criminal.

Nesse sentido, o § 1.º estabelece que, na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento.

Já no § 2.º, a regra é de que fica suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal. Anote-se que, nesse caso, o parcelamento deve ter sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.

O § 3.º do citado artigo, por fim, estabelece que a prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva;

Portanto, em suma, vislumbra-se o seguinte quadro:

a) em caso de parcelamento, a representação fiscal ao Ministério Público para fins penais fica condicionada à exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento;

b) durante o período em que a pessoa física ou jurídica relacionada aos agentes dos crimes contra a ordem tributária estiver incluída no parcelamento, fica suspensa a pretensão punitiva do Estado, desde que o parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal;

c) a prescrição criminal dos crimes contra a ordem tributária não corre durante o período da suspensão da pretensão punitiva;

d) Deve ser considerada a irretroatividade da lei mais severa, de modo que o disposto nos §§ 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do art. 83 da Lei n. 9.430/96 somente pode ser aplicado aos lançamentos ocorridos a partir de 25 de fevereiro de 2011. Assim, para os lançamentos ocorridos antes desta data, é possível o parcelamento antes ou em qualquer fase do processo, podendo ocorrer também o pagamento integral do tributo ou contribuição social, com a consequente extinção de punibilidade.


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