O crime de advocacia administrativa - Por Ricardo Antonio Andreucci

24/11/2016

O uso do cargo ou função pública para finalidades particulares, no Brasil, se tornou, infelizmente, quase uma praxe, fazendo com que pareça normal ao funcionário público obter alguma vantagem em proveito próprio ou alheio, patrocinando interesses privados perante a Administração Pública.

O recente episódio, largamente divulgado pelos meios de comunicação, envolvendo o ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima e o ex-ministro da cultura Marcelo Calero, bem ilustra o nosso ponto de vista.

Segundo noticiado pela imprensa, o motivo principal de sua saída de Calero do Ministério da Cultura foi a pressão que sofreu do titular da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, para liberar um empreendimento imobiliário em Salvador, no qual este último teria comprado um apartamento. O prédio em que Geddel comprou o apartamento teria, na planta, 30 andares, mas um parecer técnico do IPHAM (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) proibiu a construção, autorizando apenas a construção de um prédio de 13 andares. O apartamento no 23º andar, comprado por Geddel, ficaria de fora.

Marcelo Calero alegou que teria passado a sofrer pressões, por parte do colega, para a liberação da obra.

No Código Penal brasileiro, o patrocínio, pelo funcionário público, de interesse privado perante a Administração constitui o crime de Advocacia Administrativa, previsto no art. 321, tendo como objetividade jurídica a proteção da Administração Pública, no que diz respeito ao seu funcionamento regular.

Sendo crime próprio, a advocacia administrativa somente pode ter como sujeito ativo o funcionário público. Desnecessário lembrar que Ministro de Estado é considerado funcionário público para os efeitos penais, nos termos do disposto no art. 327 do Código Penal.

A conduta típica vem expressa pelo verbo “patrocinar”, que significa advogar, proteger, beneficiar, favorecer, defender. O agente deve valer-se das facilidades que a qualidade de funcionário público lhe proporciona. O patrocínio pode ser direto, quando o funcionário público pessoalmente advoga os interesses privados perante a Administração Pública, ou indireto, quando o funcionário se vale de interposta pessoa para a defesa dos interesses privados perante a Administração Pública.

“Interesse privado” é qualquer vantagem a ser obtida pelo particular, legítima ou ilegítima, perante a Administração. Se o interesse for ilegítimo, a pena será maior.

Entretanto, prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que somente caracteriza o delito o patrocínio, pelo funcionário público, de interesse “alheio” perante a administração. Caso o interesse seja “próprio” do funcionário, não estará configurado o delito, podendo ocorrer mera infração funcional.

Daí porque, no episódio noticiado pela imprensa, envolvendo o ministro Geddel, a Comissão de Ética Pública da Presidência da República decidiu instaurar um processo administrativo para apurar o caso.

Ainda no âmbito da advocacia administrativa, deve ser excepcionado o disposto no art. 117, XI, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais:

“Art. 117. Ao servidor é proibido:

(...)

XI — atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro”.

Na jurisprudência: “Caracteriza-se a advocacia administrativa pelo patrocínio (valendo-se da qualidade de funcionário) de interesse privado alheio perante a Administração Pública. Patrocinar corresponde a defender, pleitear, advogar junto a companheiros e superiores hierárquicos o interesse particular” (RJTJSP, 13/443).

“O delito de advocacia administrativa configura-se quando o agente patrocina, valendo-se da qualidade de funcionário público, interesse privado alheio perante a administração pública. Desse modo, se a conduta investigada consiste tão somente em sugerir ao segurado que se submete a perícia o agendamento de uma consulta particular, não há falar em fato típico. Afastada a tipicidade da conduta, caracteriza constrangimento ilegal, sanável por intermédio da angusta via do ‘habeas corpus’ o prosseguimento do inquérito policial” (TRF4 — HC 22477/SC — Rel. Paulo Afonso Brum Vaz — 9-8-2006).

Ainda: “Advocacia administrativa. Art. 117, XI, da Lei n. 8.112/90. Atipicidade. Demissão. Princípio da proporcionalidade. 1. Ao servidor é proibido ‘atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro’. 2. Para se configurar a infração administrativa mencionada no art. 117, XI, da Lei n. 8.112/90, a conduta deve ser análoga àquela prevista no âmbito penal (Cód. Penal, art. 321). Isto é, não basta ao agente ser funcionário público, é indispensável tenha ele praticado a ação aproveitando-se das facilidades que essa condição lhe proporciona. 3. Na espécie, o recebimento de benefício em nome de terceiros, tal como praticado pela impetrante, não configura a advocacia administrativa. Pelo que se tem dos autos, não exerceu ela influência sobre servidor para que atendido fosse qualquer pleito dos beneficiários. Quando do procedimento administrativo, não se chegou à conclusão de que tivesse ela usado do próprio cargo com o intuito de intermediar, na repartição pública, vantagens para outrem. 4. Ainda que se considerasse típica a conduta da impetrante para os fins do disposto no art. 117, XI, da Lei n. 8.112/90, a pena que lhe foi aplicada fere o princípio da proporcionalidade. Na hipótese, a prova dos autos revela, de um lado, que a servidora jamais foi punida anteriormente; de outro, que o ato praticado não importou em lesão aos cofres públicos. 5. Segurança concedida a fim de se determinar a reintegração da impetrante” (STJ — MS 7261-DF — Rel. Min. Nilson Naves — DJ 24-11-2009).

Por fim, trata-se de crime doloso, cuja consumação ocorre com o efetivo patrocínio, independentemente da obtenção do resultado pretendido. A tentativa é admissível, dado que o crime é plurissubsistente.


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