O coração do Direito no Positivismo – Por Cristiano Botelho Alves

25/04/2015

Com o surgimento da vida organizada em sociedade, o Estado de Natureza foi sendo gradualmente substituído pelo contrato social entre o Estado e os seus indivíduos. Deste movimento, advieram os regramentos para que todo indivíduo respeitasse os direitos de outro indivíduo, bem como do próprio Estado.

A composição de tais regramentos foi naturalmente concatenada ao longo do tempo até que tal estrutura passou a denominar-se de Ordenamento Jurídico, e, à medida que os indivíduos foram aceitando a submeter-se a tais preceitos jurídicos, gradualmente foram aderindo as diretrizes de um Estado “Soberano” que ameaçava seus componentes através do manuseio coercitivo para furtar-lhes a liberdade. Este é na verdade o conceito de Austin[1] que sustenta que a lei é um comando que propaga obediência através do medo.

Considera o filósofo:

(...) toda ley positiva, o toda ley así llamada simplemente y en sentido estricto, es establecida por una persona o cuerpo soberano a uno o más miembros de la sociedad política independiente en la que tal persona o cuerpo es soberano o superior; o (en otros términos) es establecida por um monarca o cuerpo soberano para una o más personas que se encuentran en um estado de sujeción con respecto a su autor (Austin, 2002, p. 142).

O que se afigura como coerente é pensar que esta visão de comando da lei gera uma sanção a todo aquele que descumprir tais comandos (positivados) pelo corpo soberano. Dessa forma, inevitavelmente, demonstra-se um sistema jurídico alicerçado na obediência.

Austin (2000, p.142) tinha uma grande preocupação quanto à possibilidade da troca do poder soberano, pelo fato de temer que, uma vez substituído, a sociedade não reconheceria em seu substituto o dever de obediência.

Sobre este contexto, Oliveira (2006, p. 51) rebate:

“(...) se a mudança de soberano implica a mudança de sistema jurídico, então a explicação de Austin afasta-se demasiadamente do sentido comum de sistema jurídico (não me parece plausível supor que tenha havido mudança de sistema jurídico, por exemplo, se o sucessor mantém em vigor as normas produzidas pelo antigo soberano, e principalmente se o sucessor dá continuidade aos projetos de seu antecessor e se baseia nos mesmos princípios políticos para orientar sua conduta como governante); se, por outro lado, a mudança de soberano não implica a mudança de sistema jurídico, a teoria de Austin é inconsistente porque, nesse caso, ao contrário do que ele afirma, o direito não é mais o conjunto de comandos emanados por uma única pessoa”.

Deve-se ter em mente como quase obrigatória a observância quando se acata esse tipo preposição, que este é, talvez, o desdobramento mais importante depois de tentar definir o que é o direito, independentemente das correntes jusnaturalistas ou positivistas.

Nesta toada ressoa a luminar lição de Streck (2010, p. 16-17):

Pois o positivismo é, por assim dizer, queiramos ou não, o “coração do direito” (no mínimo no tocante ao estudo da complexidade do fenômeno). O que quero dizer é que há algo na teoria do direito (e na sua operacionalidade) que, historicamente, tem sido a sua condição de possibilidade. Em síntese, é “onde tudo começou[2].

Assim, a visão de Streck se assemelha a de Austin, quando este defende que a lei é um comando, ao passo que o primeiro defende que o positivismo é o coração do direito. Este é o momento raro e nobre onde dois autores separados por algumas décadas, encontram-se no mesmo ponto de reflexão.

Diante da condição clarificada de temeridade por conta de criar um sistema jurídico alicerçado sob a égide da ameaça e do medo, a teoria austiniana de  poder de uma só pessoa ficou combalida por si mesma, dando oportunidade para Hart inaugurar um novo tempo para o positivismo.

Inevitavelmente Hart abre um novo diálogo, e não menos importane é saber que opôs-se a Austin defendendo que as regras podem variar de dois modos: primárias e secundárias. Posteriormente, refuta a teoria de Austin, onde este defende que a regra é na verdade uma ordem; o que Hart defende vigorosamente pela profundidade, procurando distanciar-se da generalidade para distinguir regras e princípios.

Neste ato de distinção entre princípios e regras, Hart defende que:

“há pelo menos, dois aspectos daqueles que os distinguem das regras. O primeiro é uma questão de grau: os princípios são, relativamente às regras, extensos, gerais ou não específicos. [...] O segundo aspecto reside em que os princípios, porque se referem mais ou menos explicitamente a um certo objetivo, finalidade, direito ou valor, são encarados, a partir de certo ponto de vista, como desejáveis de manter ou de ser objeto de adesão, e, por isso, não apenas enquanto capazes de fornecer uma explicação ou fundamento lógico das regras que os exemplificam, mas também, pelo menos, enquanto capazes de contribuir para a justificação destas”. (HART, 2007, p.322).

Hart fundamenta alegando que a origem da obrigação surge quando a sociedade atribui valor e dá validade ao direito, e por consequência rechaça a concepção de um confuso ordenamento restrito a comandos.

Neste plano, percebe-se que o autor se posiciona de forma indireta quanto ao ordenamento jurídico que, por ser deveras complexo, não poderia resumir-se numa percepção de direito condicionada ao jugo de um soberano.

Assim, nada mais lógico perceber que Hart sinaliza que antes de tornar-se norma social, a norma por si só dependeria do constante exercício reflexivo para tornar-se um hábito e só depois ser reconhecida como norma jurídica válida.

Em linhas gerais, nota-se que o autor demonstra taxativamente ser inconcebível um sistema de normas planificado somente por regras primárias, pois remeteria aos tempos do homem rudimentar. Mais ainda, que em dado sistema seria impraticável qualquer que seja a sociedade que dele necessitasse.

Hart é incisivo no que diz respeito ao regramento primário, e o faz de forma que as distingue comparando-as na sua efetividade ou falta dela, conforme transcrito abaixo:

Por força de regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, aos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas ações, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a ações que envolvem movimento ou mudanças físicas; as regras do segundo tipo tornam possíveis atos que conduzem não só a movimento ou mudança físicos, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações.[3]

Nesta linha de raciocínio, o autor explica que não pretende associar o termo “direito” com regras, sejam elas primárias ou secundárias, salientando:

Não defenderemos na verdade que onde quer que a palavra “direito” seja utilizada “com propriedade” tenha de encontrar-se esta combinação de regras primárias e secundárias; porque é claro que os diversos conjuntos de casos em que a palavra “direito” é usada não estão ligados por uma tão simples uniformidade, mas por relações menos diretas – frequentemente de analogia de forma ou conteúdo relativamente a um caso central.[4].

Este é sem dúvida o raciocínio que levou o célebre autor a formular sua ideia de obrigação, visto que comprova certos erros da teoria Austiniana, que apesar de sua relevância, não exprimia a sensação do dever de se criar uma situação ou fazer certas coisas em detrimento de sofrer uma sanção.

Claro que, que em meio a esse estado de coisas, deve-se ter em mente que há diferença entre ter que fazer algo e optar por fazer ou não. O próprio pensamento de Hart (2005, p. 92) desvenda-se ao dizer “Há uma diferença, ainda por explicar, entre a asserção de alguém que foi obrigado a fazer algo e a asserção de que essa pessoa tinha a obrigação de o fazer”.

Percebe-se tal condição por intermédio do exemplo de alguém que se vê diante da obrigação de entregar seu dinheiro para o assaltante que armado lhe surpreende.

Outro exemplo de Hart é percebido quando uma pessoa teria o dever de dizer a verdade ou prestar serviço militar, mesmo diante de uma sanção conhecida, mas não imposta pelo risco real e imediato de sua execução, e sim pela possibilidade de sofrer tal reprimenda.

Mais que isso, “[...] enquanto que a afirmação de que tinha esta obrigação é basicamente independente da questão sobre se essa pessoa de fato se apresentou ou não a prestar o serviço, a afirmação de que alguém foi obrigado a fazer algo acarreta normalmente a implicação de que a pessoa efetivamente o fez” (HART, 2005, p. 93).

Diante destes dois exemplos há uma condição comum que dá a ambos o mesmo fundamento. Por óbvio que vista pelo ângulo da decisão, tem-se que é no mínimo essencial saber que o aplicador da lei encontra-se sempre diante da inescapável condição de ter que ter decidir segundo aquilo que lhe motivou a crer ser justo, diferentemente de pensar como ter a obrigação de se fazer justiça, o que nem sempre na prática parece estar esclarecido para o próprio aplicador.

Assim, no mesmo viés Hart define:

A objeção fundamental reside em que a interpretação em termos de previsibilidade deixa na sombra o fato de que, quando existem regras, os desvios delas não são simples fundamentos para a previsão de que se seguirão reações hostis ou de que os tribunais aplicarão sanções aos que violem, mas são também a razão ou justificação para tal reação e para a aplicação de sanções.[5]

Com efeito, soma-se ao anteriormente exposto que o vértice desta questão esteja mais próximo do fato de não ter o compromisso de compreender a ideia de obrigação, mas aplicar o que se sabe como predição a um descumprimento de tal norma.

É por essa razão que o positivismo demonstra-se numa perspectiva mais “austera” por conta de ter como mote principal a certeza de aplicar a sanção e não discutir suas razões ou até mesmo a sua viabilidade enquanto norma de correção.

Sabidamente que o positivismo é efetivamente a face mais objetiva do direito, haja vista ter em sua origem a condição fundamental principalmente representada por Hart, onde este define a base de sua teoria no contexto das fontes sociais do direito (leis e jurisprudências). Em suas palavras, Hart define que “A adesão do juiz é exigida para manter os padrões, mas o juiz não os cria” (HART, 2005, p.159).

Prova é que Dworkin, que vem abalando as estruturas do mundo jurídico desde a década de 70, reconheceu a notória contribuição de Hart e o reconheceu como o representante do moderno positivismo jurídico, distinguindo-o de Bentham e Austin, aos quais também prestou seu reconhecimento frente à imensa colaboração ao direito.


Notas e Referências:

[1] AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined and the uses of the study of jurisprudence.[1832] London: Weindenfeld and Nicolson. Trad: Juan Ramon de Páramo Argüelles, El objecto de la jurisprudencia. Madrid: CEC, 2002.

[2] Streck, Lenio Luiz. Revista de Direito e Garantias Fundamentais, Vitória nº 7, p.16-17, jan./jun 2010. O (pós) positivismo e os propalados modelos de Juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) – dois decálogos necessários.

[3] HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p.91.

[4] HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 91.

[5] HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 94.

AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined and the uses of the study of jurisprudence. [1832] London: Weindenfeld and Nicolson. Trad: Juan Ramon de Páramo Argüelles, El objecto de la jurisprudencia. Madrid: CEC, 2002

HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2005.

OLIVEIRA, Carlos Frederico Delaje Junqueira. Identidade do Direito e razões para ação: Um estudo sobre as contribuições de Joseph Raz para a teoria do direito. 2006. 125p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

STRECK, Lenio Luiz. Revista de Direito e Garantias Fundamentais, Vitória nº 7, p.16-17,jan./ jun 2010  O (pós) positivismo e os propalados modelos de Juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) – dois decálogos necessários.


 

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