Em 20 de março de 2014, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da reclamação nº 4.335/AC[1]. Nesse processo discutiu-se em profundidade um tema muito polêmico e relevante para o constitucionalismo contemporâneo: os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso; e a função do Senado Federal, segundo o artigo 52, X, da Constituição Federal.
A referida reclamação foi ajuizada pela Defensoria Pública em benefício de condenados do Acre que cumpriam pena em regime integralmente fechado, sob a alegação de que o juízo da execução penal descumpriu decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 82.959/SP, onde foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).
Tratando-se de julgamento de habeas corpus, por óbvio que a declaração de inconstitucionalidade da norma ocorreu em sede de controle difuso de constitucionalidade, ou seja, a decisão, pela posição tradicional da doutrina e jurisprudência pátrias, só aproveitaria os beneficiados pela ordem concedida.
Diante disso, a norma declarada inconstitucional – artigo 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 – poderia continuar sendo aplicada pela Administração Pública, bem como pelos juízes e tribunais que discordassem do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, a menos que o Senado Federal - utilizando-se da prerrogativa que lhe outorgou o artigo 52, X, da CF/88 - resolvesse suspender a eficácia do mencionado dispositivo através da edição de resolução.
Antes de adentrar as questões debatidas pelo Supremo, é preciso destacar que o instituto da suspensão da lei inconstitucional pelo Senado Federal tem raízes na Constituição Federal de 1934, e seu objetivo era suplantar a lacuna deixada no Brasil pela importação do sistema de judicial review americano, desacompanhado da doutrina do stare decisis – típico instituto dos sistemas de common law, que garante estabilidade e racionalidade do controle ao sujeitar os juízes e tribunais de instâncias inferiores às decisões das cortes superiores.[2]
No direito norte-americano as decisões dos tribunais são vinculantes para os demais órgãos judiciais sujeitos à sua competência recursal. Assim, uma decisão de inconstitucionalidade da Suprema Corte, embora relativa a um caso concreto, produz efeitos vinculantes para os demais juízes e tribunais, equivalendo, na prática, a retirada da norma do ordenamento jurídico.
Por aqui, onde sempre vigorou a tradição do civil law, não é natural a atribuição de eficácia vinculante às decisões judiciais, nem mesmo aquelas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, o que ocasiona o problema da permanência da lei declarada inconstitucional em nosso ordenamento jurídico.[3]
Motivado pela suposta obsolência desse cenário, dado o contexto da jurisdição constitucional brasileira atual, o ministro Gilmar Mendes fez proposição inovadora sobre a existência de mutação constitucional no artigo 52, X, da CF/88. Para ele a fórmula relativa à suspensão de execução de lei pelo Senado Federal haveria de ter simples efeito de publicidade, pois, se o Supremo Tribunal Federal chegasse à conclusão, de modo definitivo, que uma lei é inconstitucional, ainda que em controle difuso, essa decisão, por si só, já produziria efeitos gerais e equivalentes à retirada da norma do ordenamento jurídico, fazendo-se, então, comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso.
Explica ele em seu voto, que a competência do Senado só se sustentava no quadro anterior de nosso sistema de controle de constitucionalidade, onde inexistia o controle concentrado ou este era efêmero, dada a competência exclusiva do Procurador-Geral da República para acioná-lo. No cenário pós-CF/88, no entanto, onde se vivenciou uma expressiva proeminência do controle concentrado de normas, não haveria razão para diferenciação entre os efeitos da decisão de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal nos controles difuso e concentrado. Defende, ainda, que a jurisprudência e a legislação tem consolidado fórmulas que retiram da “suspensão da execução de lei pelo Senado Federal” seu significado substancial de atribuição de efeitos gerais à decisão proferida no caso concreto, sendo possível falar-se em uma autêntica mutação constitucional, em razão da completa reformulação do sistema e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do artigo 52, X, da CF/88.
O ministro Eros Grau, também em voto proferido na reclamação, aderiu à tese da mutação constitucional. Como reforço argumentativo, sustentou que na mutação constitucional não se caminha de um texto a uma norma – tarefa da interpretação – mas sim de um texto a outro, que substitui o primeiro. A mutação constitucional, então, não se daria simplesmente pelo fato de um intérprete extrair do texto norma diversa da produzida por outro intérprete. Isso acontece diuturnamente. Na mutação constitucional haveria mais, não apenas a norma é outra como o próprio enunciado normativo é alterado. O limite que, segundo ele, importaria observar era se o novo texto resultante da mutação mantém-se adequado à tradição (coerência) do ordenamento jurídico como um todo.
Sem embargo das bem fundadas razões expostas pelos ministros, a proposta de mutação constitucional do artigo 52, X, da CF/88 não coaduna com nosso arcabouço constitucional.
Em primeiro lugar, não se discute que nosso sistema de controle de constitucionalidade vem sofrendo grande transformação ao longo da segunda metade do século XX, em especial após a promulgação da Constituição Federal de 1988. De um sistema que era preponderantemente difuso – cuja decisão sobre a inconstitucionalidade ficava fragmentada, dividida entre todos os juízes e tribunais do país –, onde o único instrumento apto para atribuir efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade era a suspensão da execução de lei pelo Senado Federal, passamos a um sistema misto de controle de constitucionalidade, com induvidosa ênfase no controle concentrado – cuja decisão, por si só, mostra-se plena e suficiente para extirpar a norma inconstitucional do ordenamento jurídico.
Diante dessa atual proeminência do controle concentrado, que sem sombra de dúvidas prestigia os princípios da isonomia e da segurança jurídica, proporcionando maior coerência às manifestações do Poder Judiciário, é até natural a progressiva atribuição de efeitos transcendentes às decisões do Supremo Tribunal Federal também no controle difuso de constitucionalidade.
Todavia, a atribuição desses efeitos deve ocorrer através de alterações no plano normativo, como fez o novo Código de Processo Civil ao criar mecanismos de valorização dos precedentes, e dotar algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal de eficácia expansiva – a dispensa da cláusula de reserva de plenário quando a norma já tenha sido declarada inconstitucional pelo STF, por exemplo.
Além disso, a atribuição de efeitos vinculantes às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade já tem instrumento que a implementa: a Súmula Vinculante. A equiparação pura e simples dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade nos controles difuso e concentrado é tão estranha ao sistema, que precisou ser criada através de Emenda Constitucional, ou seja, foi necessária a intervenção do legislador constituinte derivado para munir o Supremo Tribunal Federal de mecanismo que equiparasse os efeitos de suas decisões nas duas formas de controle, com a dispensa da intervenção do Senado Federal. Percebe-se, ainda, que a Emenda Constitucional 45/04 exigiu quórum qualificado (2/3 dos membros) e a reiteração das decisões para viabilizar a edição da Súmula.[4]
Analisada sob o prisma doutrinário da mutação constitucional a proposição também não se sustenta. Isso porque, segundo sua moldura doutrinária, a mutação constitucional há de estancar diante de dois limites bem definidos: a) as possibilidades semânticas do relato da norma, vale dizer, os sentidos possíveis do texto que está sendo interpretado ou afetado; b) a preservação dos princípios fundamentais que dão identidade àquela específica Constituição. Se o sentido novo que se quer dar não couber no texto, será necessária a convocação do poder constituinte reformador. E se não couber nos princípios fundamentais, será preciso tirar do estado de latência o poder constituinte originário.[5]
A releitura do artigo 52, X, da CF/88 feita pelo ministro Gilmar Mendes, portanto, viola ambos.
O conteúdo semântico do artigo 52, X, não comporta, sob pena de deturpação da própria linguagem, a leitura de que o papel atual do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade seria o de mero publicador da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. O texto é claro em lhe atribuir uma competência decisória e discricionária.
Ainda que assim não fosse, a proposta ofende o princípio da separação dos poderes – cláusula pétrea em nossa ordem constitucional – na medida em que priva o Senado Federal de competência que o Constituinte originário expressamente lhe outorgou, embutindo-a nas atribuições do Supremo Tribunal Federal.
Assim, ainda que paulatinamente esse procedimento venha perdendo seu protagonismo no sistema, inviável juridicamente a proposta de mutação constitucional. Fica claro que a construção elaborada pelos ministros Gilmar e Eros visava manobrar hermeneuticamente o texto constitucional, proporcionando um alargamento do poder de decisão do Supremo Tribunal Federal em detrimento de competência que o constituinte originário clara e induvidosamente outorgou a outro poder da República.
Notas e Referências:
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 4.335/AC, Rel. Ministro Gilmar Mendes. Publicado em 22.10.2014. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%284335%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/h8vg7we. Acesso em: 25 jan. 2017.
[2] MACHADO, Marcelo Passamai. Controle de constitucionalidade das leis: efeitos de suas decisões. São Paulo: Letras Jurídicas, 2014. p. 160.
[3] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7. Ed. São Paulo: Saraiva 2016. p. 166.
[4] Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006).
[5] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos e a construção do novo modelo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 128-129.
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