O CONTRATO DE NAMORO COMO UM INSTRUMENTO DA CONTRATUALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES  

22/12/2020

O Direito de Família, assim como os demais ramos do Direito, está em constante modificação, na tentativa de acompanhar as transformações das relações familiares contemporâneas. A pós-modernidade tem como característica a liquidez das relações, que consequentemente resulta no anseio da sociedade pela autonomia em estabelecer, manter ou dissolver relações, conforme a própria vontade.

Nesse contexto, iniciou-se um movimento de privatização e contratualização das relações familiares, no qual se observa uma autorregulação dos interesses interpessoais no âmbito familiar, a partir de negócios jurídicos considerados “como atos por meio dos quais os particulares dispõem, para o futuro, um regulamento obrigatório de interesses das suas recíprocas relações”[1].

Como exemplo dos instrumentos que fazem existir a contratualização no âmbito do Direito de Família, está o contrato de namoro.

O contrato de namoro consiste em um pacto de declarações de vontades das partes, que buscam determinar a inexistência de uma relação diversa do namoro, qual seja, a união estável.

A união estável é reconhecida pela Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 e pelo Código Civil, para efeitos da proteção do Estado, como entidade familiar, e se concretiza a partir da presença dos elementos da convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com a pretensão dos indivíduos de constituição de uma família.

A vontade de constituir família é o que diferencia a união estável do namoro, e “ausência de contornos mais nítidos da configuração de união estável, fazem com que essa entidade familiar e o namoro apareçam separados por uma linha tênue, quase imperceptível.”[2].

Nesse contexto, um instrumento jurídico que possa definir o status de relacionamento vivenciado pelo casal passa a ser uma alternativa:

Diante de uma possível confusão, nada melhor que facultar às próprias partes a regulamentação jurídica de um assunto tão íntimo. O exercício dessa pactuação garantiria, em última instância, um relacionamento mais sadio, tendo em vista que possíveis desconfianças restariam afastadas. Não há fundamento idôneo que justifique o ato autoritário de impedir que o casal se autoregre.[3]

Questiona-se, entretanto, se o contrato de namoro pode ser compreendido como um negócio jurídico. Para AZEVEDO[4], um negócio jurídico pode ser constatado por meio do exame dos planos da existência, validade e eficácia.

A presença dos elementos formadores da estrutura do ato, como a forma, o objeto, as circunstâncias negociáveis, o agende, o lugar e o tempo, determina que o negócio jurídico existe[5], enquanto os requisitos presentes no artigo 104 do Código Civil (2002), de agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei importam na validade do referido negócio.

O contrato de namoro possui uma forma, em geral escrita, um objeto, que é a determinação do status do relacionamento vivenciado pelo casal, as circunstâncias negociáveis consubstanciada pela liberdade de escolha dos indivíduos, os agentes, um lugar e um tempo.

Ainda, o contrato de namoro é firmado, em regra, por adultos, a lei não proíbe a estipulação de instrumentos que deixem definido o tipo de relação entre indivíduos e a vontade de não constituição de uma família, e a forma não é prescrita em lei, razão pela qual pode ser firmado de maneira particular.

Dessa forma, vislumbra-se que o contrato de namoro pode corresponder a um negócio jurídico existente e válido. A maior discussão reside no plano da eficácia do contrato de namoro.

Para BETTI[6], um negócio jurídico é ineficaz quando existem circunstâncias de fato a ele extrínsecas que obstam sua eficácia, ainda que presentes os elementos essenciais e os pressupostos de validade.

No âmbito do contrato de namoro, entende-se que a sua eficácia, para as partes, se concretizaria simplesmente a partir da compreensão de que o relacionamento por eles vivenciados não tem o objetivo de constituição de uma família, e de que tal relação corresponde a um mero namoro. Já entre as circunstâncias extrínsecas que poderiam obstar a eficácia desse instrumento, estaria a presença dos requisitos caracterizadores da união estável.

Neste sentido, se as condições estabelecidas pelo casal permanecerem e a relação continuar sendo um namoro, sem a intenção de constituir uma família, o contrato de namoro estará produzindo o efeito negativo de não caracterização da união estável, atingindo as partes envolvidas e todos os terceiros que poderiam ser afetados por uma eventual comunhão de patrimônios, por exemplo.

Contudo, GONÇALVES[7], entende que “o denominado “contrato de namoro” tem, todavia, eficácia relativa”, ao considerar que havendo, no contexto fático, estabilidade e objetivo de constituição de uma família, se caracterizará uma união estável e “de nada valerá o contrato dessa espécie que estabeleça o contrário”.

Já TEPEDINO[8], considera essa espécie de contrato como inútil e expõe que a declaração individual de vontade acerca da situação patrimonial não poderia negar futura configuração de união estável.

Conclui-se, portanto, que presentes todas os elementos, requisitos e características dos planos da existência, validade e eficácia do negócio jurídico, não há razão para não reconhecer o contrato de namoro como um negócio jurídico, visto que a legislação não proíbe essa espécie de pactuação.

Contudo, a eficácia plena de um contrato de namoro tem como condição a não colisão deste instrumento com a união estável, visto que a situação fática se sobrepõe ao pactuado e que o contrato de namoro não garante o afastamento da união estável quando presentes os requisitos caracterizadores deste instituto, que corresponde a um direito indisponível.  

 

Notas e Referências

[1] BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Tradução: Servanda. Campinas, SP: Servanda, 2008. p. 74.

[2] XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 127 f. 2011. p. 88.

[3] XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 127 f. 2011. p. 95.

[4] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 24.

[5] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 40.

[6] BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Tradução: Servanda. Campinas, SP: Servanda, 2008. p. 655.

[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 713.

[8] TEPEDINO, Gustavo. Contratos em direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Organizador). Tratado de Direito das Famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015. p. 495.

 

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