O conto macabro da bela adormecida do Processo Penal

13/01/2016

Por Carla Mari Robaina Marcondes - 13/01/2016

Era uma vez, não faz tanto tempo assim, em um reino distante chamado Processo Penal Inquisitório um rei e uma rainha que queriam muito ter um filho, o rei se chamava Sentido Comum Teórico dos Juristas e a rainha se chamava Dogmática Jurídica Tradicional.

Depois de muito tentarem finalmente a rainha engravidou e teve uma criança, ela era muito bonita para os olhos dos pais, que decidiram dar o nome de Verdade Real para a primogênita.

No dia do batizado vieram voando três fadas madrinhas para presentear a criança com os mais belos dons, a primeira fada deu a criança o dom da neutralidade, a segunda fada deu o talento da validade universal, mas quando a terceira fada ia presentear a Verdade Real, surgiu uma fada maligna das profundezas da crítica processual penal.

A fada maligna deu uma risada espalhafatosa para o espetáculo que se seguia no palácio e perguntou ao rei e a rainha onde estava o seu prato de ouro e os seus talheres cravejados de joias preciosas como os das outras fadas.

O Sentido Comum Teórico dos Juristas e a Dogmática Jurídica não sabiam o que dizer para a Doutrina Crítica, a fada má não tinha sido convidada para a festa de batismo da Verdade Real.

Em um tom muito solene o rei disse para a fada má que o convite dela deve ter sido extraviado no correio de pombos, e que ele como o rei do Processo Penal Inquisitório sentia-se mal por provocar tristeza na Doutrina Crítica.

Muito embora rei e rainha tivessem tentado dissuadir a Doutrina Crítica, ela não se convenceu e quando um sorriso falso foi esboçado nos lábios do rei e da rainha, a fada má lançou uma maldição sobre a criança, ela disse:

“O discurso da Verdade Real vai crescer, muitos vão acreditar em neutralidade e na validade universal, vão pensar que ela pode realmente ser absoluta e no final feliz, mas vai surgir um dia em que a Verdade Real vai espetar o dedo no fuso de uma roca de fiar crítica e vai morrer. Todos vão desacreditar na Verdade Real e vão surgir doutrinadores que irão tomar o reino do Processo Penal Inquisitório e vão transformá-lo com magia democrática. No lugar da Verdade Real outras crianças vão tomar partido, o duelo entre acusação e defesa que hoje é quase proibido será esporte praticado por todos os cantos do novo reino, e o paradigma da linguagem e a hermenêutica irão tomar o lugar da Verdade.”

Em um grande estrondo a fada má deixou o palácio e a rainha e o rei colocaram-se a chorar, a rainha lamentou-se para o rei: “O que será da Verdade Real? Não consigo mais imaginar o reino do Processo Penal Inquisitório sem ela... Pobre criança!”.

A terceira fada boa tinha permanecido calada quando viu a fada má entrar no palácio e guardou o seu presente para o final:

“O feitiço da Doutrina Crítica é muito forte, não poderei quebrá-lo mas posso abrandá-lo. No dia em que a Verdade Real estiver crescida e que ela furar seu dedo numa roca de fiar crítica ela não irá morrer, mas caíra em um sono profundo até que finalmente o beijo de um Juiz verdadeiro desperte a Verdade Real”.

O rei e a rainha proibiram rocas de fiar no reino inteiro e toda crítica que era encontrada era queimada pelo Autoritarismo, preocupados com a segurança da princesa, o rei e a rainha tomaram conta dela de longe e a princesa foi morar nos ideais das fadas boas.

O discurso da Verdade Real foi crescendo e conforme ele crescia, a jovem já não tão jovem assim, sonhava com o seu juiz encantado, imaginava como ele seria corajoso, ele traria para o reino o que achasse importante, sempre armado com a espada da gestão das provas, o juiz encantado fazia como queria, produzia as provas e as prozas de ofício, engenhoso, só deixava a Acusação e a Defesa participarem um pouco e quando elas iam conversar ele gritava em tom autoritário “Silêncio!”, que juiz, que sonho era o juiz do processo penal autoritário.

Esse juiz sim a entenderia, ele conseguiria encontrar a Verdade Real onde quer que fosse, além de boa aparência e físico ele também tinha dotes artísticos, gostava de pintar quadros mentais paranoicos, era muito esperto esse juiz porque mesmo antes de alguém abrir a boca ele já sabia o que iriam dizer, empunhava a sua espada da gestão das provas de lâmina afiada e num ato dilacerava o dragão da imparcialidade, que sonho, que autoritário, que amor esse juiz justiceiro.

Muitos anos se passaram e como foi dito pelas fadas boas, diversos doutrinadores da Dogmática Jurídica tradicional e do Sentido Comum Teórico dos Juristas acreditaram na Verdade Real com validade universal e neutralidade, até que em um dia o discurso da Verdade Real tinha decidido caminhar pelo castelo, estava passeando pelas salas do palácio e em uma torre alta entrou e viu uma roca de fiar.

Parecia que o metal da agulha chamava ela para a vida gélida e adormecida, a Doutrina Crítica estava a fiar e convidou a princesa insensata a experimentar, ao se aproximar um pouco mais a agulha encontrou o dedo da Verdade Real e a furou.

Quando o discurso da Verdade Real furou o dedo, ela caiu em um sono profundo foi deixada em seu quarto, o rei e a rainha ficaram muito tristes porque não conseguiam acordar o discurso da Verdade Real.

Era venenosa surgiu ao redor do reino do Processo Penal Inquisitório e durante muito tempo ninguém conseguia entrar ou sair do reino, por isso para passar o tempo as pessoas do palácio iam para as igrejas se confessar, lembrando da antiga Rainha das Provas, e para  rezar pelo bem da Verdade Real.

Muito tempo se passou até que chegou um Juiz encantado na fronteira do reino, com muito esforço e com sua espada da gestão das provas viu quais galhos tinham de ser aparados e cortados, com vários golpes foi gerindo as provas e procurando culpados para os crimes no Processo Penal Inquisitório, em um de seus bolsos o juiz carregava seu pincel e tintas para pintar o quadro mental paranoico, na outra mão, já que uma segurava a espada, estava um escudo da neutralidade.

Depois de muito esforço o Juiz consegui subir pelo castelo, viu a acusação e a defesa amarradas e com as bocas tapadas, sem fazer nada a respeito, tirou um pouco a fita da boca da acusação e perguntou onde era o quarto da princesa, a acusação disse que ela estava na torre mais alta do castelo, o Juiz escutou a informação e tornou a tapar a boca da acusação.

O rei e a rainha estavam no caminho da torre da Verdade Real e disseram que mostrariam o caminho para o Juiz, o Juiz encantado finalmente chegou na torre em que estava o quarto da Verdade Real e pediu para entrar sozinho.

Ele tinha lido muitos contos de fadas como este e sabia muito bem o que tinha de fazer, dar um beijo de um Juiz verdadeiro na Verdade Real, ele se aproximou lentamente e se sentou na cama onde estava deitada a princesa, se apoiou para beijar a princesa e num lampejo de paixão fechou os seus olhos e encostou os lábios dele nos lábios da princesa.

Quando abriu novamente seus olhos o Juiz esperava ver a Verdade Real acordada, acontece que ela continuava adormecida e olhando mais de perto ela parecia mais uma velha feiticeira do que uma princesa.

A Dogmática Jurídica Tradicional e o Sentido Comum Teórico dos Juristas não se decidem sobre como é a verdade e diversas vezes se confundem e se contradizem, tem horas que a verdade depende do juiz que com a filosofia da consciência e armado com a sua razão chegaria, ele, como sujeito cognoscente a encontrar a verdade, outras vezes, a verdade seria um dado bruto assim como na filosofia ontológica clássica. Fato é que a Verdade Real não acordou com o beijo do Juiz encantado.

Mais uma vez o Juiz tentou beijar a Verdade Real para que ela acordasse, e de novo e de novo e de novo e de novo, o Juiz esgotou os seus beijos, sua boca quase batia e machucava com a da Verdade Real.

Não teve jeito, não teve contra feitiço, não teve solução, o juiz não despertou a Verdade Real no final do seu processo. O que ele poderia fazer que fosse uma resposta satisfatória para todos?

O juiz teve uma ideia súbita, os súditos, todos, enfim, precisavam da resposta de alguém para ter fé e para rezarem, então, ele conversou com o rei e com a rainha e explicou o  seu plano.

Pegou o corpo adormecido da Verdade Real, abriu os seus olhos e costurou as pálpebras dela abertas com fio cor da pele e agulha, deu um ponto nos cantos da boca da verdade de modo que ela parecesse uma boneca de ventríloquo, maquiou a Verdade com base, pó, blush e batom, para que ela parecesse mais despertada, depois trocou a roupa dela por um vestido de festa, as mãos, braços, pernas e pés da Verdade foram amarrados separadamente para que pudessem ser mexidos.

Era isso, a Verdade Real adormecida tinha virado uma boneca de ventríloquo, ao invés de ser honesto e afirmar que o juiz não conseguiria buscar e despertar a verdade, a Dogmática Jurídica Tradicional e o Sentido Comum Teórico dos Juristas preferiram transformar o discurso da verdade real em um show mórbido de ventriloquismo em que o juiz é o comandante do ventríloquo e a Verdade Real é a boneca manipulada.

Para tranquilizar o reino do Processo Penal Inquisitório o rei, a rainha e o Juiz decidiram levar a Verdade Real como boneca de ventríloquo para uma plataforma, uma espécie de sacada muito alta que dá para as partes externas do castelo.

Havia um caso penal para resolver e tudo seria feito dessa maneira, sobre a sacada mais alta do castelo em que o Juiz fica bem distante das partes, o réu também fica longe, perto da defesa.

Tem quem faça pouco caso do processo penal, gente que fala que ele não tem caso, devendo se contentar com a lide, a Dogmática Jurídica Tradicional e o Sentido Comum Teórico dos Juristas acham isso, mas a história da gata borralheiras é outra história, Cenerentola é de outro autor, nessa história vamos trabalhar com o caso penal.

Começa o espetáculo, a acusação e a defesa permanecem com as suas bocas tapadas, lá do alto o juiz faz uma exibição com a sua espada gestora de provas, ele sente o poder, sente seu lugar de superioridade, a acusação e a defesa olham para cima para enxergar o Juiz e saber quais são as suas feições, quais os seus valores mas eles não conseguem ver nada, o sol está muito forte e bate no escudo bem desgastado e um tanto enferrujado da neutralidade, Acusação e Defesa não sabem como é o Juiz.

O julgamento do caso penal vai acontecendo, o Juiz seguiu julgando, em certo ponto do processo, desceu-lhe a inspiração e no reino do Processo Penal Inquisitório a arte de quadros mentais paranoicos é permitida e incentivada, o Juiz pintou uma cena de natureza morta de defesa e contraditório, estampando um culpado muito parecido com o réu, enquanto Acusação e Defesa tentavam tirar as fitas das bocas.

De vez em quando o Juiz deixava que as partes tirassem de suas bocas o que as impedia de falar, mas quando a voz delas cansava o Juiz logo pedia para taparem as bocas novamente.

No final do julgamento o Juiz disse que apresentaria a sua amada, a Verdade Real, ele botou a Verdade Real no colo e a segurou pelos fios, fazendo a sua boca e o seu corpo se moverem de uma forma doente, o Juiz iria apresentar ao reino a Verdade Real e olhem que coincidência a voz dela era igual a do juiz!

Isso passou a ser o cotidiano do Processo Penal Inquisitório, todo dia ele fazia tudo sempre igual, assim como queria o Sentido Comum Teórico dos Juristas, a confusão filosófica permanecia igual a rainha, a Dogmática Jurídica, também vivia se confundindo e esquecendo das coisas, nem sabia como era a princesa Verdade Real, se ruiva e como na filosofia ontológica clássica ou se morena e como na filosofia da consciência.

Todo dia o Juiz dormia ao lado da Verdade Real, trocava a sua roupa, a penteava, maquiava e falava com ela, ela é claro que não respondia, mas mesmo assim o discurso da Verdade Real continua no Processo Penal Inquisitório.

A Doutrina Crítica está cada vez mais forte, mas o reino continua sendo do Processo Penal Inquisitório, o Juiz ainda tem a espada da gestão das provas, carrega o escudo falso da neutralidade e apresenta a verdade bem arrumada.

A fada má está ganhando mais e mais adeptos e sabe muito bem que o discurso da Verdade Real é uma falsidade, ela não é fada, não faz parte e não quer fazer parte de conto de fadas, ela prefere viver com a realidade, com um bocado de sinceridade.

Para ela o juiz tem que parar de se fantasiar e esquecer a neutralidade porque ela não existe, tem que se assumir, se posicionar, assumindo-se ideologicamente e largando finalmente a espada da gestão das provas, o processo penal precisa mudar, precisa deixar de ser inquisitório para bem receber a democracia, as vivas para o dia em que chegar o Processo Penal Acusatório!

O texto chegou ao seu fim, a história continua, o conto de fadas mentiroso está escrito em manuais propagados pela Doutrina Tradicional, depois de terminar de ler o conto de fadas inspirados em fatos reais que escrevi, fica para o leitor a tarefa de dizer quem é realmente o vilão  da história desse reino tão próximo que é o Processo Penal.

Esse conto de fadas é uma adaptação um tanto macabra de uma das versões mais difundidas de “A Bela Adormecida”, a versão da Disney, porque o sentido comum teórico é assim, um processo penal estilo Disney, com todo respeito a Disney que pode ser boa para passar o tempo, mas que definitivamente uma profundidade dessas não serve para o processo penal.

Que os contos de fadas fiquem para relembrar a infância, a tenra idade da inocência, mas que venham a maturidade e os grandes romances para o processo penal, o juiz não é um personagem perfeito e estático como um príncipe encantado, um juiz encantado, as partes tem que ter voz, a dialética deve prevalecer, o debate, a gestão das provas pelas partes.

Passo a palavra para quem compreende melhor a realidade do processo penal, para grandes autores, nem heróis, nem vilões, professores, doutrinadores da teoria crítica e juízes, passo a palavra para o Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, para Marco Aurélio Nunes da Silveira para  Sylvio Silveira, para Alexandre Morais da Rosa, para Lenio Streck, para Geraldo Prado, para todos aqueles que veem na crítica uma necessidade e nos contos de fadas do processo penal um fado fadado ao fracasso.


Carla Mari Robaina Marcondes . Carla Mari Robaina Marcondes é bacharel em Direito e pós graduanda em Direito Penal Econômico pela Universidade Positivo. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Sleeping beauty // Foto de: Kain Kalju // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kainkalju/3774689077

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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