O consumo da educação em um Brasil pandêmico  

02/10/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Pandemia, do grego pandemía, significa todo o povo. O dicionário Aurélio define como: “doença infecciosa e contagiosa que se espalha muito rapidamente e acaba por atingir uma região inteira, um país, continente, etc”[1]. O surto de covid-19 que se alastrou pelo mundo a partir de dezembro de 2019 trouxe inúmeras situações que alteraram muitos dos planejamentos feitos para o ano de 2020. Assim como em todas as áreas, a relação do consumo da educação também foi afetada. O desafio é como repensar o estudar frente a um acontecimento dessa magnitude.

O fato é que, mesmo que exista o negacionismo por parte de alguns, as relações foram obrigadas a mudar em todos os âmbitos. E no consumo da educação não foi diferente. O ano letivo que começou entre fevereiro e março de 2020 em todas as cidades brasileiras, para todos os níveis, desde educação infantil até a pós graduação, teve que ser interrompido na forma presencial.

Algumas instituições rapidamente buscaram na internet o refúgio de seus problemas, com plataformas como o Zoom, Meets, Cisco e outras desenvolvidas especificamente para proporcionar encontros com imagem, som e interação. Parte-se do princípio que há internet na casa da maioria da população. E por que não haveria?

Dados retirados do site da Anatel afirmam que há 225,89 milhões de telefones celulares no Brasil hoje[2], sendo que nesta lógica seria uma média de 1,06 aparelho por habitante brasileiro, fazendo a conta dada a projeção da população brasileira, fornecida pelo site do IBGE[3]. Também temos que 34,18 milhões de brasileiros possuem acesso à internet banda larga fixa[4]. Porém, a realidade nua e crua, aquela que deve ser levada para além dos números, constata que a educação, ainda que com o brilhantismo de muitos professores que tentam de todas as maneiras contornar o problema de não estar em sala de aula e não poder ter contato presencial com seus alunos, não consegue chegar aos lares brasileiros da população que mais precisa, a de baixa renda.

Estudar com computador próprio, internet de qualidade, espaço para desenvolver-se e tudo o que é necessário para um bom aproveitamento não está presente na maior parte das casas brasileiras. A maioria, quando possui equipamentos, divide com a família, que também migrou para o trabalho em casa ou acabou por ser desligada do emprego.

A Constituição Federal Brasileira prevê como garantia fundamental a educação e a criação de políticas públicas específicas para essa área que devem estar em prática para que o brasileiro não fique desamparado, pois entende-se (a Constituição entende, e deveriam também os gestores públicos) que dela derivaria uma construção de nação[5]. Mas como são asseguradas tais garantias em um momento tão crucial e inóspito?

Entrando na seara das instituições particulares, dado o momento, a Superintendência de Orientação e Defesa dos Direitos do Consumidor de alguns estados indica que as mensalidades precisam ser diminuídas já que o serviço pelo qual o aluno, enquanto consumidor, optou não está sendo desempenhado dentro do que foi contratado[6]. Há diversos movimentos desde então, como no Rio de Janeiro, que por meio de agravo de instrumento foi obtido aval para que não mais pudessem ser autuadas instituições que não diminuíram as suas mensalidades[7]. Entendeu-se que tal autuação configuraria um controle concentrado de inconstitucionalidade, atacando o princípio da livre iniciativa e regulando valores que não podem ser controlados pelo estado, pois corresponderia a uma intervenção na economia.

No estado do Rio Grande do Sul não houve igual movimentação por parte do Procon, tampouco pela Defensoria Pública, que manifestaram-se em conjunto pela ordem da continuidade dos pagamentos sem direito a redução, ficando a cargo das instituições fazerem ajustes próprios se assim desejarem, sem sofrerem intervenções por leis[8]. Segundo notícia veiculada no início de julho pela ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior) indica que entre os meses de abril e maio houve crescimento de 31,3% na evasão do ensino superior no estado de São Paulo[9]. Não há dados ainda sobre o estado do Rio Grande do Sul nesse sentido até o momento.

A movimentação que se vê levantada por intermédio de hashtags em redes sociais tenta alçar voos e chamar atenção das instituições, que ainda que digam estar abertas a negociação, como o próprio Procon e a Defensoria Pública têm estimulado, não indica soluções mais palpáveis para o momento.

Não há de se falar em culpa, ou em quem tem a razão neste momento. São dias difíceis tanto para as instituições, que dependem dos alunos para conduzir e sustentar toda a estrutura de aulas, pesquisas e todo o sistema que foi preparado para um ano letivo sem intercorrências tão grandes como uma pandemia, quanto para alunos que, ao escolherem determinado curso, instituição e modalidade, criaram expectativas de como estudariam durante o ano de 2020.

O debate se faz necessário, visto que, na proporção dos efeitos causados pelo Covid-19, não se tem literatura jurídica atual. No que se trata da responsabilidade civil, há interpretações que dão conta de ser caso fortuito interno humano, outros de caso fortuito externo. Há quem diga que pode ser considerado força maior (até porque o Código Civil Brasileiro não faz distinção, morando a mesma na doutrina e jurisprudências). O elo que mantém essas três vertentes é o mesmo: contam com fato externo, que foi irresistível e também imprevisível (ainda que conforme tenha se alastrado pelos continentes e que se tenha visto a sua capacidade de ação e modo de prevenção)[10].

Entende-se que dado o momento é necessário analisar cada caso e buscar alternativas que deem conta de mitigar os efeitos danosos que a pandemia tem causado no geral. No caso da educação, buscar uma maneira de manter o diálogo entre as instituições e entre os alunos, tentando soluções que diminuam os impactos que estão sendo sentidos por todos.

O que virá nos próximos semestres ainda é obscuro, não é sabido se serão semanas ou meses que há de se viver sob o medo de um vírus até o momento sem cura. Essa semana, iniciada em 27 de setembro, o Rio Grande do Sul encontra-se em bandeira laranja, o que desperta a chance de que em duas semanas as aulas possam voltar a ocorrer de forma presencial, ainda que seja exigido de todas as instituições que planejam voltar para essa modalidade inúmeros protocolos de distanciamento social e higiene.

Nas projeções futuras pairam o medo, não só o de ser acometido pela temida Covid-19 e suas sequelas que ainda não são completamente conhecidas. Quão grande será o abandono, tanto de cursos superiores quanto de ensino básico? Quanto tempo será necessário para buscar uma educação, como diz a própria Constituição, que dê conta de abranger a dignidade da pessoa humana? Não é só o consumidor, enquanto aluno de instituições de ensino que passa por um momento tortuoso sem saber o que projetar para o futuro, mas sim toda uma parcela da população que busca na educação um meio para mudar a vida.

 

Notas e Referências

[1] DICIONÁRIO AURÉLIO. Pandemia. Disponível em: https://www.dicio.com.br/pandemia/. Acesso em 29 de setembro de 2020.

[2] ANATEL, Agência nacional de Telecomunicações; Panorama Setorial De Telecomunicações Julho/2020. Disponível em: https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?eEP-wqk1skrd8hSlk5Z3rN4EVg9uLJqrLYJw_9INcO66hT2Z3c-3hpxTVr_w-JiglduEevoxV-a4yWM_WlDu0YUFlh43BTJYgpkxqelCe7acL9tAe2RsB9sEJeuSzRAQ. Acesso em 20 de setembro de 2020.

[3] IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeções e estimativas da população do Brasil e das Unidades da Federação. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/. Acesso em 25 de setembro de 2020.

[4] ANATEL, op cit.

[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 25 de setembro de 2020.

[6] AGÊNCIA BRASIL. Notícia: Escolas devem conceder desconto durante isolamento, diz Procon-SP. Disponível em:

https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-05/escolas-devem-conceder-desconto-durante-isolamento-diz-procon-sp. Acesso em 25 de setembro de 2020.

[7] PORTAL MIGALHAS. Notícia: Pandemia: Covid-19: Procon/RJ está impedido de fiscalizar redução de mensalidade por universidade. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/331409/covid-19-procon-rj-esta-impedido-de-fiscalizar-reducao-de-mensalidade-por-universidade. Acesso em 5 de setembro.

[8] PROGRAMA DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Notícia: O Procon/RS orienta sobre o pagamento das mensalidades escolares no período da pandemia. Disponível em: https://www.procon.rs.gov.br/o-procon-rs-orienta-sobre-o-pagamento-das-mensalidades-escolares-no-periodo-da-pandemia?fbclid=IwAR2hJMRshF92rc4LCIOvgIU3YBrFLM6To0Yo3PB3Q3_EpUPiPpIVV2YXJrQ. Acesso em 2 de setembro de 2020.

[9] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MANTENEDORAS DE ENSINO SUPERIOR. Notícia: Universitários Acumulam Dívidas E Deixam Cursos Na Pandemia; Redução De Mensalidades Para Na Justiça. Disponível em: https://abmes.org.br/noticias/detalhe/3868/universitarios-acumulam-dividas-e-deixam-cursos-na-pandemia-reducao-de-mensalidades-para-na-justica. Acesso em 29 de agosto de 2020.

[10] KROETZ, Maria Candida do Amaral. Covid-19 e caso fortuito ou de força maior na responsabilidade civil extracontratual. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/direito-civil-atual-covid-19-fortuito-responsabilidade-civil-extracontratual. Acesso em 27 de setembro de 2020.

 

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