O consumidor mediado pela tecnologia de Madame Frigidaire

27/04/2018

 

No Elogio à Loucura, Belchior apaixonou-se por Madame Frigidaire, uma geladeira; escrava branca que revolucionara sua vida, entregando-lhe todo o eterno feminino do conforto industrial. O Edipo-Rei Momo que come e toma de tudo dela... uma paixão desmedida. Mas, e quando chegar a internet das coisas, inteligências artificiais, controles sistêmicos, contratos eletrônicos, redes de confiança corruptivas?

A geladeira, deusa pós-moderna, representa o fascínio pela tecnologia. Aliar necessidade e conforto. Quem sabe poderá até controlar as faltas e encomendas, o índice glicêmico dos consumidores ou, então, determinar a dieta baseada nas informações nutricionais padronizadas mundialmente... Como vamos negociar com a nossa geladeira?

O filósofo mais pessimista da História, Walter Benjamin, antes de se matar quando fugia da Alemanha nazista, escreveu nas Teses do Conceito de História que a única indústria que prosperaria era a aérea. Ele nunca soube, mas foi a indústria aérea que criou o gás de extermínio dos judeus; os judeus, por sua vez, trabalhavam, produzindo sua própria morte (LOWY, 2017). Estaríamos, assim, como os judeus na segunda guerra, entregando nossos dados pessoais para a morte?

A relação tecnologia e mercado de consumo, mediada por seus elementos necessidade e conforto, inaugura uma nova fase da Máquina. Este novo estágio submete a satisfação do mínimo aos impérios e impropérios das significações historicamente formuladas. Para superarmos o continuum objetal da programação da Maquínica é necessário (re)informar – re-entry – a linguagem de operação da Máquina que nos opera. Assim, consumidor é a forma social-mercantil utilizada para a manipulação do ser humano pelos sistemas simbólicos.

Apenas uma guinada no sentido de consumidor pode promover uma ação-contra, informando a Máquina sobre o oculto consumidor fático que ela não reconhece. O Direito (do consumidor) – elemento da Máquina – possui um modelo semiológico que nega a imanência do sentido à prática social (Warat, 2009). Esta espécie de consumidor só pode ser manipulada nas suas categorias burocrático-jurídicas, mantendo-se estabilizada pela evolução tecnológica, estabilizando-a. Isso significa que o Direito (do consumidor) com a atual programação não pode interferir no extermínio histórico do ser humano, uma vez que suas bases epistemológicas não podem antever a catástrofe, e mesmo que o fizessem não fornece acesso ao não-consumidor.

Não é possível ao corpo social do ponto de vista da Máquina deixar de cultuar a necessidade e o conforto instrumental(izantes) de Madame Frigideire. É preciso, antes do domínio de inteligências artificiais refrigeradas, impormos a possibilidade de todos usufruírem do benefício refrigerador.

O estágio atual e informacional da Máquina possibilita o transcender desviante das práticas culturais do consumo. Invocam-se para a atualização da Máquina pressupostos ecológicos que radicalizem ou rompam com as operações jurídico-burocráticas que canonizam o consumidor instrumental.

Em exemplo de ruptura, o Culture Jamming surge como ativismo organizativo que se propõe a combater o bombardeio propagandístico das (in)corporações consumistas por meio de uma guerrilha semiótica. Trata-se da tentativa do corpo social informar à Máquina sobre a necessidade de desarticular as significações do poder econômico que colonizam o processo de reprodução social.

Apresenta-se, nesta reflexão, a possibilidade de um estudo da semiologia do poder do consumidor para neutralizar, por meio da pesquisa jurídica, a ideologia impregnada no direito do consumidor. Neste contexto, a semiótica assume papel decisivo na ciência jurídica, informando-a sobre a exteriorização significativa da realidade, ou seja, aquilo que a Máquina objetal não consegue enxergar. 

O consumidor, então, possuiria – antes do elogio à loucura de Belchior ou do aéreo otimismo de Benjamin – o direito de não ser consumido. Trata-se da construção de um conceito de não-consumidor, ou seja, habilitar a Máquina à promoção da necessidade e – por que não? – do conforto para o ser humano. A não-identidade do consumidor só pode ser posta em prática pela abertura do direito de dizer o direito (FISCHER-LESCANO, 2017).

REFERÊNCIAS

FISCHER-LESCANO, Andreas. Força de direito. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

LOWY, Michael. A revolução é o freio de emergência: a atualidade político-ecológica de Walter Benjamin. In: LOWY, Michael; BENSAID, Daniel. Centelhas: marxismo e revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.

WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Arquivo próprio 

 

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