O constitucionalismo garantista como aporte à concretização de direitos humanos: o caso dos massacres de El Mozote e Lugares Vizinhos como evidência antigarantista

20/05/2016

Por Laura Mallmann Marcht, Joice Graciele Nielsson e Alfredo Copetti Neto - 20/05/2016

Entre 11 e 13 de dezembro de 1981 durante uma operação militar do Batalhão Atlacatl na República de El Salvador, sucessivos massacres foram cometidos. Os massacres foram denominados de o Caso dos Massacres de El Mozote e Lugares Vizinhos Vs. El Salvador e julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Durante os anos 1980 e 1991, em El Salvador ocorria uma guerra civil que matou dezenas de milhares de pessoas.

No início do conflito, foi formada a Frente Farabundo Martí para a Liberação Nacional (FMLN) que reuniu cinco grupos de oposição política. O governo, para repelir as ações da organização, com o financiamento dos EUA, formou operações de “contrainsurgência” em sete localidades na República de El Salvador. Teriam sido mortas aproximadamente mil pessoas nessas operações, em sua maioria, crianças.

O caso dos massacres de El Mozote e lugares vizinhos vs. El Salvador foi sentenciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 25 de outubro de 2012. Tem por escopo denunciar os massacres sucessivos que teriam sido cometidos entre 11 e 13 de dezembro de 1981 durante uma operação militar do Batalhão Atlacatl na República de El Salvador, bem como o porquê do arquivamento do processo que teria deixado o Estado de El Salvador impune à época com base na Lei de Anistia Geral para a Consolidação da Paz em 1993.

Conforme a Jurisprudência da Corte Americana de Direitos Humanos, em El Salvador, no período entre os anos 1980 e a 1991, ocorreu uma guerra civil em El Salvador, onde, estima-se, que pelo menos setenta (70) mil pessoas morreram e outros tantos desapareceram. No início do conflito, foi formada a Frente Farabundo Martí para a Liberação Nacional (FMLN) que reuniu cinco grupos de oposição política: Forças Populares de Liberação, Exército Revolucionário do Povo, Forças Armadas de Liberação, Forças Armadas de Resistência Nacional e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores da América Central (2014).

A FMLN objetivava derrubar a Junta de Governo, invadindo várias localidades para assegurar reconhecimento internacional como força beligerante contra o Estado. Foram várias as tentativas de negociações de paz e somente em 1992 é assinado o Acordo de Paz que pôs fim aos conflitos em Chapultepec, México, sob supervisão do Secretário Geral das Nações Unidas.

Segundo a Comissão da Verdade instituída para vigorar em 1992, após a resolução dos conflitos, confirmou que tanto o Estado como a FMLN, esta última em pequena porcentagem, praticaram diversos atentados contra os direitos humanos com a falsa justificativa de que El Mozote seria partidário da organização, quando na verdade, o povoado se mantinha neutro exatamente para evitar possíveis complicações.

Nesse sentido os EUA financiou a criação dos Batalhões de Infantaria de Reação Imediata nas Forças Armadas de El Salvador. Essas unidades foram criadas para a luta “contrainsurgente” do movimento popular na FMNL. Assim surge a unidade “Atlacatl” comandada pelo Tenente Coronel Domingo Monterrosa Barrios.

Os massacres teriam ocorrido durante essas operações de “contrainsurgência” em sete localidades na República de El Salvador, do norte do Departamento de Morazán. Teriam sido mortas, aproximadamente mil pessoas, dentre estas, em sua maioria, crianças. Como enfatiza Aleksander Aguilar, “la misión del Atlacatl, con financiamiento y entrenamiento de Estados Unidos, era colocar en práctica las medidas necesarias para operaciones conocidas como tierra arrasada o, en el lenguaje del propio ejército en la época secar el río para evitar que los peces crezcan” (2014, p. 36).

O Estado persistiu na negação do que ocorrera nos povoados de El Salvador. Passaram-se muitos anos até que fossem reconhecidos os atos cometidos pelo governo nas práticas de contrainsurgência. Depoimentos semelhantes foram juramentados por testemunhas de cantão La Joya e Cerro Pando, Ranchería, Los Toriles, Jocote Amarillo, e em uma gruta do Cerro Ortiz, contabilizando aproximadamente mil vítimas.

Somente em 2011 o governo reconheceu o massacre e pediu desculpas pelo ocorrido, nesse sentido, em audiência pública, o Presidente da República em 2012, no 20º Aniversário dos Acordos de Paz, expressa o reconhecimento por parte do Estado:

[...] em el Mozote e nas comunidades vizinhas, há pouco mais de trinta anos foi consumado um excesso criminoso o qual se tentou negar e ocultar sistematicamente […] em três dias e em três noites foi perpetrado o maior massacre contra civis da história contemporânea latinoamericana, a[l]i foram exterminados quase mil salvadorenhas e salvadorenhos, a metade deles crianças menores de dezoito anos, […] a[l]i foram cometidos um sem número de atos de barbárie e de violações dos direitos humanos, inocentes foram torturados e executados, mulheres e crianças sofreram abusos sexuais, centenas de salvadorenhos e salvadorenhas hoje formam parte de uma longa lista de desaparecidos, enquanto outros e outras tiveram de emigrar e perder tudo para salvar suas vidas (JURISPRUDÊNCIA DA CORTE AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, p. 449).

Diante do exposto, a questão que se apresenta é o que significa então garantir. A teoria garantista do direito visa questionar os exercícios arbitrários de poder, bem como oferecer dispositivos jurídicos que garantam uma maior efetividade ao ordenamento jurídico. Ferrajoli inicia sua investigação, a partir do âmbito do direito penal para dar corpo posteriormente, a uma teoria geral do garantismo, por isso, há, muitas vezes, confusão com a matéria a fim. Nesse sentido, o jurista atribuiu, a partir do estudo de determinados axiomas garantistas, três significados à teoria. O primeiro, diz respeito a um modelo de direito, específico ao Estado de direito.

O Estado de direito contrapõe-se ao Estado Absoluto, nascendo as Constituições modernas situadas no plano formal – subordinação do poder público às leis que predeterminam apenas suas formas de exercício – e substancial – preordena e circunscreve a funcionalização dos poderes, à tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos –.

O segundo significado de garantismo trata de uma teoria do direito que deve partir da distinção do vigor das normas, tanto da validade quanto da efetividade. Aproxima teoricamente a separação do “ser” e o “dever ser” no direito, apresenta-o como norma (normativismo) e como fato (realismo). Assim, uma norma pode ser formalmente vigente e substancialmente inválida, se não estiver de acordo com o plano substancial, portanto, “direito vigente” não é sinônimo de “direito válido”.

Por fim, o terceiro significado se constitui em uma filosofia política que impõe a justificação externa por parte do Estado, por meio do direito. É uma teoria heteropoiética do direito, separado da moral, de filosofias políticas utilitaristas, fundadas desde o Iluminismo, iniciado a partir do jusnaturalismo laico e racionalista.

A partir desse contexto, o Estado de Direito liberal (mínimo) que se encontrava no plano formal, onde não há intervencionismo, é dimensionado no Estado de Direito social (máximo) onde para além da proteção, o Estado deve melhorar as referidas condições de subsistência dos cidadãos. O Estado de Direito social transcorre de uma construção histórica e por essa razão não se pode dizer que os direitos sociais buscam substituir os direitos de liberdade, uma vez que visam se aderir aos direitos de liberdade para dar maior aporte e dignidade ao povo.

Dessa forma o que antes era um “Estado de Direito”, se torna em um “Estado Constitucional de Direito” (FERRAJOLI, 2011). Como exemplo antigarantista, pode-se citar os modelos totalitários, em que as normas são substancialmente inválidas, porém efetivas no plano fático. Garantir então é conformar todo sistema, com seu modelo, e satisfazê-lo efetivamente (FERRAJOLI, 2002).

A passagem do Estado de Direito para Estado Constitucional de Direito, introduziu nas constituições contemporâneas uma esfera do indecidível, em que através da democracia, nenhuma maioria pode decidir sobre violação de direitos de liberdade e nenhuma maioria pode também deixar de decidir a respeito da aplicação de direitos fundamentais, decidir em maioria a respeito dessas matérias seria substancialmente inválido (FERRAJOLI, 2015). Torna-se pertinente a análise do conceito de democracia.

A democracia assume diversas teorias, elaboradas e discutidas ao longo de muitos anos desde sua primeira concepção clássica aristotélica. De certa forma, pode-se assumir a existência de princípios imutáveis em todas as suas definições, como a ideia de o poder emanar do povo, sob um regime policrático e não monocrático. O que temos hoje que mais se assemelha à democracia clássica é a república representativa, onde os cidadãos exercem a chamada democracia indireta para eleger seus representantes no governo (BOBBIO, 1998).

O conceito se torna ambíguo quando, por exemplo, uma maioria resolve decidir sobre o estado de exceção ou sobre uma ditadura militar. Até onde e o que se pode decidir em maioria? Ferrajoli é o responsável pelo pensamento em que dá limites até mesmo à democracia, porque democracia sem limites é ditadura da maioria. Dessa forma,

somente a imposição e o reconhecimento de limites e vínculos aos poderes da maioria e do mercado, por intermédio e normas constitucionais a eles rigidamente supraordenadas, são capazes não só de conferir fundamento à dimensão substancial das atuais democracias constitucionais, mas também de colocar a salvo de si mesma, isto é, do excesso de poderes ilimitados e virtualmente selvagens, a própria democracia política ou formal (FERRAJOLI, 2015, p. 80).

O verdadeiro desafio é não esquecer a carga histórica que nossas constituições transportam e efetivar, de forma séria, o que os direitos e as garantias fundamentais almejam. Bem é verdade que o povo se situa numa busca por garantias, remédios constitucionais, e não de direitos, uma vez que estes últimos já foram conquistados. Mas nem todos foram conquistados – e possivelmente nunca sejam –, com a frequente mudança no cenário político e social, surgiram novos direitos, necessários à concretização de fatos novos na sociedade, como o fenômeno da tecnologia e a preocupação com os recursos naturais.

De tal modo, diversos doutrinadores discorrem sobre as “gerações do direito”, mas atualmente já é pacífica a nomenclatura “dimensões do direito”, pois os primeiros direitos individuais, não se excluem, mas aderem-se aos seguintes. Isso revela uma verdadeira preocupação por parte do legislador constituinte originário, em dar maior efetividade ao ordenamento jurídico vigente. Os novos direitos representam, assim, a mudança e a preocupação com a atualização dos direitos já conquistados pelo movimento constitucionalista, sem que haja a substituição desses já preexistentes.

Pela classificação criada por Wolkmer existem cinco dimensões do direito e os novos direitos ganham espaço a partir da terceira dimensão, enfatizando a necessidade de ação positiva do Estado, com as constituições contemporâneas e o pós-Segunda Guerra Mundial. Evidencia-se que os novos direitos resultam de lutas sociais afirmadoras de necessidades históricas na contextualidade, bem como acompanham as transformações decorrentes dessas lutas e na pluralidade dos agentes sociais que hegemonizam uma dada formação societária (WOLKMER, 2012).

Por esses novos direitos, entende-se que o legislador deve se manter atento às mudanças sociais. A democracia, por seu amplo efeito, deve acompanhar essas mudanças, mas de forma limitada, em que nem sobre tudo se decida em maioria – levando em considerações as matérias que são exclusivas à discussão pelo Estado – e que nem tudo não seja decido em maioria – que não haja esquecimento da aplicabilidade dos direitos fundamentais –.

Somente através de uma constituição garantista que devidamente limite a democracia naquilo que possa ou não possa deixar se decidir, é possível garantir e assim, atingir ao objetivo da democracia substancial de considerar os sujeitos em seu ínterim, contemplando seus interesses e necessidades individuais e coletivas.

O massacre de El Mozote e lugares vizinhos, bem como tantas outras chacinas desmotivadas e arbitrárias, é evidência antigarantista. Assim, onde mesmo que haja um ordenamento jurídico vigente, se determinada “maioria” de pessoas decidirem sobre os direitos fundamentais de outras, pode ocorrer o desmembramento deste ordenamento em razão da vontade arbitrária da maioria.

É possível também, constatar a indevida utilização dos tratados internacionais no que tange ao financiamento secreto dos Estados Unidos da América para um Estado com objetivos políticos que se sobressaem à tutela de direitos humanos. Nesse contexto, nenhum país poderia, por meios legítimos, financiar a violação destes.

Através da análise do episódio, foi possível apresentar aspectos do constitucionalismo garantista formulado pelo professor Luigi Ferrajoli, bem como se dá o garantismo no âmbito dos direitos e garantias fundamentais. A teoria visa, principalmente, fortalecer a democracia através de um constitucionalismo rigidíssimo, limitando-a de forma a garantir a efetividade dos direitos fundamentais.

Os três significados, o modelo normativo de direito, a filosofia política e a teoria crítica, unem-se para dar maior amplitude aos axiomas transcorridos pelo fundador. Se garantir é conformar todo sistema, com seu modelo, e satisfazê-lo efetivamente, o desastre ocorrido em El Mozote e em lugares vizinhos poderia ter sido evitado.


Notas e Referências:

AGUILAR, Aleksander. La Masacre de El Mozote: la maldición de Marcos Díaz. Ciência & Trópico. Organização de Aleksander Aguilar, Juliana Vitorino e Mariana Yante. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, n. 1, v. 38, 2014. 36-43 p.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, Nova Ed., 2004. 212 p.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução Carmen C. Varriale, João Ferreira, João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. 1330 p.

FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. Tradução Alexander Araujo de Souza, Alexandre Salim, Alfredo Copetti Neto, André Karam Trindade, Hermes Zaneti Júnior e Leonardo Menin. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. 254 p.

_____. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 764 p.

_____. Principia iuris: teoria del derecho y de la democracia. Teoría del derecho. Tradrução Perfecto Andrés Ibáñez, Carlos Bayón, Marina Gascón, Luis Prieto Sanchís e Alfonso Ruiz Miguel. Madrid: Trotta, 2011. 952 p.

SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA, COMISSÃO DE ANISTIA, CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Jurisprudência da Corte Americana de Direitos Humanos. Direito à Vida, Anistias e Direito à Verdade. Tradução Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. 637 p.

WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos Fundamentos de uma Teoria Geral dos “Novos” Direitos. Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas – uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. Organizadores Antonio Carlos Wolkmer e José Rubens Morato Leite, São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2012. 389 p.


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Laura Mallmann Marcht. Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .


Joice Graciele Nielsson

. Joice Graciele Nielsson é Doutoranda em Direito UNISINOS/FURB, Mestre em Desenvolvimento e Direitos Humanos UNIJUI, Advogada, Professora do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIJUÍ. . .


alfredo

. Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma, Mestre em Direito pela Unisinos. Cumpriu estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG-Unijuí. Unioeste e Univel. Advogado OAB-RS. . .


Imagem Ilustrativa do Post: El Salvador 19 11 2013 C El Mozote (36) // Foto de: Archbishop Romero Trust // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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