Com o advento da Constituição de 1988 superou-se a cultura menorista, consolidando-se a doutrina da proteção integral (CUSTODIO, 2009, p.43). O ECA revelou-se um conjunto de normas básicas de proteção e de ajustes aos desvios da família, da sociedade e do Estado em segui-las (SÊDA,1993, p. 04). Na missão de fortalecer direitos fundamentais, o Conselho Tutelar passou a integrar o Sistema de Garantia dos Direitos, representando, precipuamente, a sociedade, no âmbito municipal, na proteção desses. Na definição de Liberati (2004, p.104), o Conselho Tutelar é um instrumento nas mãos da comunidade, que fiscalizará e tomará providências para impedir a ocorrência de situações de risco. Na complexa tarefa de definir sua natureza, confere-se um caráter sui generis, qualquer tentativa de compará-lo à outras instituições não captará sua singularidade (ASSIS, 2009, p. 148). Para facilitar, o ECA apontou suas características: PERMANENTE: Denota uma organização estável, contínua e ininterrupta (KONZEN, 2000, p. 170). Assim, fatores externos como mudança de gestores, questões orçamentárias e etc. não podem ser pretexto para extingui-lo. AUTÔNOMO: É órgão de Estado, vinculado ao Poder Executivo apenas para fins administrativos. NÃO JURISDICIONAL: Seus atos têm natureza meramente administrativa. Sob esta característica, Konzen (2000, p. 171) esclarece: “não lhe é natural assumir a responsabilidade de solver os conflitos de interesse ou aplicar sanções aos transgressores do ordenamento jurídico, matéria afeta à prestação jurisdicional”. Como norteia a Resolução 75/2001 do CONANDA: O Conselho Tutelar não integra o Poder Judiciário.
Por força de preceitos legais[1], aos pais incumbe o sustento, guarda e educação dos filhos menores. Instrui Elias (2010, p. 130) que "se a sociedade e o Estado devem ser cobrados, muito mais deve se exigir dos pais, em razão do poder familiar". Neste sentido, o Conselho Tutelar deve, prioritariamente, advertir quanto a função protetiva da família[2], afinal, como observa Dallari (2008, p.41), é ela quem, em primeiro lugar, pode conhecer as necessidades, deficiências e possibilidades da criança, estando, apta a dar a primeira proteção. Verificada alguma situação de risco, o Conselho Tutelar poderá lançar mão das medidas esculpidas no art. 101 do ECA. Entre elas, o “encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade”, objeto que merece atenção especial, pois enfrenta interpretações equivocadas até por membros do próprio Conselho Tutelar.
Tal documento teria, a priori, segundo Garofalo (2012), o condão de realizar o retorno de crianças e adolescentes em situação de risco aos pais ou responsáveis, todavia, raramente é usado com tal finalidade. O Conselho Tutelar não tem poderes para realizar qualquer alteração no status familiar. Na prática, expede-se o termo de responsabilidade, acreditando estar “regularizando a guarda de fato”. Contudo, ao matricular a criança na escola, viajar, pleitear um benefício previdenciário ou assistencial, aquele documento não terá legitimidade. Assim, o instrumento legal “termo de responsabilidade” é a exteriorização de uma medida aplicada pelo Conselho Tutelar, não a medida em si, ou seja, a medida é o encaminhamento, o termo é a forma.
O dispositivo legal assinala que nas hipóteses citadas, o infante pode ser encaminhado pelo Conselho Tutelar ao responsável. A controvérsia reside em identificar essa figura. Porquanto, a simples comprovação de relação de parentesco não pressupõe a existência de afeto e cuidados precípuos para que uma criança lhe seja confiada. Determinar a quem incumbirá o zelo e cuidados demanda a realização de cautelosos estudos psicossociais. Assim, como poderia um conselheiro tutelar fazê-lo? No mais, ao dispor que a criança será entregue ao responsável, pressupõe-se que este foi previamente instituído. Ocorre que na intenção de dar um “aspecto legal” ao procedimento, os conselheiros realizam uma entrega precária, instala-se assim uma situação jurídica irregular (GAROFALO, 2012). O ECA fala apenas “responsável”[3], o que dá margem à interpretações errôneas. Essa omissão legislativa seria facilmente sanada com o acréscimo dos termos “legal” ou “judicial”, remetendo ao instituto da guarda e da tutela.
O termo de responsabilidade não substitui uma sentença, pelo contrário, está muito aquém desta (BORGES e SILVA, 2011). É preciso ter claro que o termo emitido pelo Conselho Tutelar não se assemelha ao termo emitido no bojo do processo de guarda. Neste, o Juiz destaca as responsabilidades do guardião com aquele que está lhe sendo confiado. O ECA em seu art. 1º esclarece que a intervenção estatal será prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a criança deve permanecer, ressalvada absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada. Assim, não havendo outra razão, que por si só, autorize a tomada de medidas mais drásticas, a criança será mantida em sua família de origem, e o Conselho Tutelar deve, imediatamente, aplicar outra medida de proteção, como o encaminhamento para o CRAS, CREAS, CAPSi[4].
Caso o conselheiro, ao arrepio da lei, entregue criança a alguém estranho à relação familiar, Tartuce (2016) sugere que, apesar do CPC/15 suprimir a cautelar de busca e apreensão, nada obsta a propositura de medida de urgência cautelar que pleiteie busca e apreensão de crianças e adolescentes ante a possibilidade de concessão de medidas atípicas.
Para definir qual medida aplicar, o conselheiro deve agir com exatidão, equilíbrio e capacidade de articular esforços e ações com a rede (SOUSA, 2016, p.18). O exercício de sua autonomia, contudo, não o isenta de responder pelas obrigações funcionais e administrativas junto ao órgão ao qual está vinculado[5]. Para Sousa (2016, p. 18) “ser autônomo não significa ser solto no mundo”. Ao agir em desacerto com o ECA, sob o viés de responsabilização do agente público, é possível representar o conselheiro ao Ministério Público e ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e Adolescente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível concluir que a emissão deste termo não tem o condão de alterar o status familiar tampouco inserir o infante em família substituta. No entanto, o procedimento para definição da guarda, de competência exclusiva da autoridade judiciária, não retira do Conselho Tutelar o dever de exercer suas demais atribuições, no entanto, este órgão deve agir articuladamente com a rede de proteção, sobretudo com o Judiciário, de modo a prevenir decisões conflitantes, que podem provocar o não ressarcimento do direito violado.
Notas e Referências
ASSIS, Simone Gonçalves de (Org.). [et al.] Teoria e prática dos conselhos tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. – Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 2009. Disponível em: https://goo.gl/1rVHgW. Acesso em: 24 set. 2018.
BORGES E SILVA, Giovanni Alves. O Conselho Tutelar e o Termo de Responsabilidade. Disponível em: https://goo.gl/4ijzA8. Acesso em: 15 de out. 2018.
CONANDA. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução nº 75 de 22 de outubro de 2001. Dispõe sobre os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares e dá outras providências. Disponível em: https://goo.gl/wqP1uK. Acesso em: 07 jan. 2019.
_______________________. Resolução nº 170 de 10 de dezembro de 2014. Dispõe sobre o processo de escolha em data unificada em todo o território nacional dos membros do Conselho Tutelar. Disponível em: encurtador.com.br/aCFV9. Acesso em: 08 jan. 2019.
CUSTODIO, André Viana. Direito da criança e do adolescente. Criciúma: UNESC, 2009.
ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
GAROFALO, Carlos Eduardo. O Conselho Tutelar e o termo de entrega mediante compromisso. Publicado em 20 setembro 2012. Disponível em: https://goo.gl/ePNDwi. Acesso em: 07 out. 2018.
KONZEN, Afonso Armando. Conselho Tutelar, Escola e Família - Parcerias em Defesa do Direito à Educação. Pela Justiça na Educação. Brasília: MEC. FUNDESCOLA, 2000.
LIBERATI, Wilson Donizeti (org.). Direito à Educação: uma questão de justiça. São Paulo: Malheiros, 2004.
SÊDA, Edson. Síntese do Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: CIDFP, 1993.
SOUSA, Everaldo Sebastiao. Guia Prático do Conselheiro Tutelar. Ministério Público de Goiás. 2016. Disponível em: https://goo.gl/GiYPgL. Acesso em: 08 nov. 2018.
TARTUCE, Fernanda. A tutela provisória no CPC 2015. Disponível em: https://goo.gl/UXfRBG. Acesso em: 14 ago. 2018.
[1] Lei nº 8.069/90 - Art. 22 e Lei nº 10.406/02 - Art. 1.634.
[2] Lei nº 8.069/90- Art. 100.
[3] Idem - Art. 32.
[4] Idem - Art. 136. III e Art. 101 – IV.
[5] Resolução nº 170/2014 do CONANDA - Art. 31.
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