O conflito entre a faculdade de filosofia e a faculdade de direito segundo Emmanuel Kant

06/04/2017

Por Luis Eduardo Gomes do Nascimento – 06/04/2017

A Pedro Estevam Serrano que, rompendo a ordem do discurso, dialoga com qualquer um

Há quem reduza a obra de Kant à Crítica da Razão Pura. Heine, por exemplo, considerava as outras supérfluas. Pensamos de forma diversa. A proposta deste pequeno ensaio é resgatar a obra “O conflito das faculdades” como ponto de partida para o debate do papel estratégico que a Universidade tem no contexto brasileiro, ainda manchado de autoritarismo e, tanto mais, a relação conflituosa entre a faculdade de filosofia e a faculdade de direito e como é necessário um verdadeiro corte epistemológico na ciência jurídica.

A obra data de 1798, quando a censura estava mais branda, permitindo a Kant uma maior liberdade[1]. Longe da imagem do Kant submisso, o texto se insere na melhor da tradição iluminista, sendo um ponto estratégico para pensar a nossa situação histórica e o papel da universidade em face do poder constituído.

O texto começa saudando a fecunda ideia de se constituírem, por meio da divisão do trabalho, mestres públicos, isto é, professores integrados a uma entidade coletiva erudita – as Universidades - que, por meio de suas Faculdades, têm autorização para receber alunos e formá-los[2].

As faculdades são divididas em Superiores e Inferiores. As primeiras compreendem as que, ao governo, interessa ditar a forma e o conteúdo das doutrinas para o melhor controle dos cidadãos. As segundas são aquelas orientadas pelo interesse da ciência, de forma que gozam de liberdade.

As Faculdades superiores se inserem na engrenagem do poder. Baseiam-se na escrita e se constituem de estatutos emanados do arbítrio de um superior, de um sujeito de enunciação que ocupa uma posição formal de poder, podendo ou não consentir com a verdade. Na medida em que interessa ao governo o bem eterno, civil e o corporal, as Faculdades superiores se desdobram em três áreas, a saber: a) teologia; b) direito; c) medicina.  Por cuidarem do regramento do agir humano, têm uma inclinação ao dogmatismo. Por tal, afirma Kant: “É por isso que o teólogo bíblico (como pertence à Faculdade superior) não coloca seus ensinamentos na razão, mas na Bíblia; o professor de direito, não no direito natural, mas no direito civil; e o sábio em medicina, em sua terapêutica destinada ao público não na fisiologia do corpo humano, mas no regramento médico”[3].

Já a Faculdade inferior é a classe que se ocupa das doutrinas que não são aceitas como ordens inquestionáveis. Quando se está em questão a verdade de certas doutrinas, de exposição necessária ao público, o mestre não pode apelar à ordem de uma autoridade suprema[4]. Por isso, a Faculdade inferior, preservando sua autonomia em face do Poder instituído, tem a tarefa de, a todo custo, proteger a razão e a verdade, ao invés de salvaguardar o princípio da autoridade.

Kant, diante da tendência ao dogmatismo pelas Faculdades superiores, conclui que surgirão conflitos destas com a Faculdade inferior. Afirma que, qualquer que seja o conteúdo das doutrinas que o governo impõe às Faculdades superiores sancionar, não pode estar imune ao exame público, pois, ainda que tais doutrinas sejam sancionadas do alto de um poder, arriscam-se à possibilidade de desacordo com a razão comum e necessária[5].

Kant faz uso da dicotomia entre direita e esquerda no parlamento para expor, de forma mais figurativa, a relação de conflito entre as Faculdades superiores e a Faculdade inferior. Como o papel das Faculdades superiores é defender a situação do governo, e, à medida em que se vive na ambiência determinada por uma constituição livre, deve existir um partido de oposição – a Faculdade de filosofia - que, submetendo os estatutos do governo ao um exame severo da razão, possa assegurar uma ação política mais consentânea ao interesse público.[6]

O gesto radical de Kant é ter subtraído a Faculdade de filosofia de todo poder exterior, sobremodo o poder do Estado, reservando-lhe a liberdade incondicional de pôr em questão, isto é, colocar, em aberto e no aberto, todo discurso de autoridade, toda tradição que só se sustenta pela ignorância. Reivindica, então, que, no conflito entre as faculdades, a Filosofia tenha primazia já que, por não estar submissa a interesses que lhes são exteriores, pode submeter as outras ao uso público da razão, impedindo que se tornem mecanismos perversos de poder. Assinala: “Por consequência, a Faculdade de filosofia não pode jamais depor as armas diante do perigo que ameaça a verdade que ela deve proteger, já que as Faculdades superiores não renunciam jamais ao desejo do governo”[7]

Consequentemente, surgem conflitos entre as Faculdades superiores e a Faculdade inferior. O conflito não degenera em guerra, mas constitui o que Kant denomina concordância discórdia ou discórdia concordância, categoria que se aproxima da dialética, mas com ela não se confunde. O antagonismo é atenuado pelo primazia do rigor imanente à razão: “Este antagonismo, ou seja, esta disputa de dois partidos entre si unidos em conjunto comum (concordia discors, discórdia concors), não é, pois, uma guerra, mas é uma discórdia por oposição dos propósitos finais no tocante ao meu e ao teu científico que, como em política, consiste na liberdade e na propriedade, em que aquela, como condição, deve necessariamente preceder esta; consequentemente, não se pode conceder-se às Faculdades superiores direito algum sem que, ao mesmo tempo, a Faculdade inferior seja autorizada a apresentar ao público erudito as suas dúvidas.”[8]

Para Badiou, uma verdadeira situação filosófica acontece quando há uma confrontação entre pontos de vistas incomensuráveis, isto é, que não possuem nenhum elemento comum que assegure uma partilha. Trata-se de uma confrontação e não de um diálogo[9].

Em Kant, a discórdia concorde não alcança tamanha intensidade, mas também não deve ser associada a uma certa visão ingênua que sempre acaba no consenso presumido ou sobreposto. O conflito é irredutível à razão comunicativa que, ingenuamente, acredita que a opinião universalizável, como consenso, possa emancipar-nos. A discordância concorde instaura uma comunidade de comunicação, mas, como alerta Muguerza, tem que incorporar fatores de discórdia, tais como lutas de classes, além de se excluir todo consenso infantilizador, estruturando-se, afinal, no imperativo da divergência[10]. Partir do consenso ou chegar nele por vias artificiais é crer, falsamente, que a sociedade sempre se resolve numa conta perfeita.

No nosso contexto, a colonialidade do poder, cuja base é a imposição da ideia de raça como mecanismo de dominação, ainda persiste, de maneira que o espaço público é apropriado pelas oligarquias brancas[11]. A discordância concorde, então, ganha um conteúdo mais radical, permitindo questionar a limitação do uso público da razão aos inseridos nos círculos de poder e a apropriação privada da linguagem como forma sutil de exceção contra o inimigo erigido midiaticamente.

O conflito entre a Faculdade de direito e a Faculdade de filosofia torna-se inevitável. Para Kant, o jurista erudito, como funcionário do Estado, pesquisa as leis que garantem o que é de cada um (o meu e o teu), não na sua razão, mas no código emanado da autoridade suprema. Resumindo o direito ao que é ordenado, considera insensato auscultar acerca se as ordens são justas ou quais são os seus fundamento.

É por isso que Kant defere à Faculdade de filosofia a tarefa de esclarecer o povo: “Esclarecer o povo é ensinar acerca dos seus deveres e direitos diante do Estado a que pertence. Como não se trata senão de direitos naturais e derivados do bom senso comum, os respectivos anunciadores e intérpretes no meio do povo não são os oficiais professores de direito, estabelecidos pelo Estado, mas os professores livres (de direito), isto é, os filósofos que, precisamente por causa da liberdade que se permitem, são objetos de escândalo para o Estado que não sabe senão reinar, e difamados sob o nome de iluministas como gente perigosa para o Estado.”[12]

Tal conflito lembra uma dicotomia, que remonta a Herbert Hart, entre a perspectiva interna e a externa na apreensão do direito. Dworkin, em O império do direito, adota a perspectiva interna, limitando, sem negar a perspectiva externa, a sua abordagem à prática argumentativa do direito. Conforme expõe, o que a prática jurídica permite ou exige depende da verdades de certas proposições, que só adquirem sentido através e no âmbito delas. Diante disso, conclui: “Serão perversas as teorias que, em nome de questões supostamente amplas da história e da sociedade, ignoram a estrutura do argumento jurídico”[13].

Poderíamos inverter esse enunciado desmascarando seu aspecto errôneo, mas basta demonstrar como se insere no logocentrismo ocidental. Dworkin cai na metafísica da presença, não apenas ao sucumbir à substantivação do universal, como demonstrei de forma inconcussa em outro lugar[14], mas por se perder numa dicotomia em que um dos termos é privilegiado em detrimento do outro. A dicotomia entre ponto de vista interno e externo é erigida para exaltar uma suposta superioridade do ponto de vista interno.

Derrida cunhou o conceito de diferança para designar a causalidade constituinte, isto é, o processo de cisão e divisão do qual as diferenças seriam meros produtos. As dicotomias, que marcam a onto-teologia ocidental, ocultam o processo de diferença em seu ato mesmo de criar as diferenças. Se a diferença torna possível a apresentação do ente-presente, ela quase nunca se apresenta. Portanto, a estratégia de Dworkin é simplista. O que devemos fazer é demolir a dicotomia mesma, mostrando o quanto é arbitrária, instalando-nos no seu interstício, revelando-a como uma decisão política que quer se impor como critério científico.

Foi na tradição do estruturalismo francês, que Dworkin desconhecia, que o problema se colocou da forma mais adequada. Poulantzas mostra que a sociologia jurídica (ponto de vista externo) fracassou ao diluir a especificidade do jurídico nos dados econômicos, sociais e históricos. Por outro lado, a perspectiva jurídica (ponto de vista interno) insula o direito, reificando-o num sistema formal, abstrato, genérico e regulamentar, em que a mediação do social—histórica não é entrevista.

O direito, entrevisto no interstício na dicotomia assinalada, ostenta uma autonomia relativa, já que os dados do social-histórico não se lançam de forma imediata no plano jurídico. Conforme assinala Poulantzas, os dados econômicos não se transportam senão através das estruturas específicas internas do direito.[15].

Portanto, é perversa toda teoria que, limitando-se ao estudo da mera estrutura do argumento jurídico, esquece ou não quer ver que o direito é um lugar de mediação do social-histórico e que, ainda que tenha uma especificidade própria expressa na comunicação normativa, aqueles elementos nele refratam-se, desenvolvendo-se à luz dos critério internos ao e do direito.

No momento em que o ódio à igualdade ressurge e ganha a forma estatal, a lição iluminista de Kant é axial para que o jurista não seja um cúmplice da tirania feita em nome da lei e do Estado. É preciso superar velhas dicotomias e compreender que as categorias teóricas forjadas emanam da sociedade e se dirigem a ela, ocultando-a ou desvelando-a. São determinadas e determinantes. Toda teoria, quer queira ou não, é, portanto, uma intervenção política num espaço político. Eis o sentido do corte epistemológico dialético que já se sustenta numa ontologia social.


Notas e Referências:

[1] Sobre este ponto ver: LOSURSO, Domenico de. Autocensura e compromisso no pensamento de Kant. São Paulo: Ideias & Letras, 2015.

[2] KANT, Emmanuel. Le conflit des facultes em trois sections. Paris: Vrin, 1973, p. 13.

[3] Ob. cit. p. 20/1.

[4] Ob. Cit. p. 26.

[5] Ob. cit. p. 20/1.

[6] Ob. cit. p. 33.

[7] Ob. cit. p. 35.

[8] Ob. cit. p. 35. A categoria de discordância concorde permite dar uma nova configuração ao que entendemos por contraditório.

[9] BADIOU, Alain; ZIZEK, Slavoj. Filosofía y actualidade. Buenos Aires: Amorrortu, 2011, p. 14.

[10] MUGUERZA, Javier. Desde la perplejidad. México: Fondo de cultura económica, 1996, p. 330.

[11] QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes: de la dependência histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires, Clacso, 2014, p. 821.

[12] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 18.

[13] DERRIDA, Jacques. La voix et le phènomène. Paris: PUF, 1967, p. 103. A diferança é análoga à diferença ontológica (Heidegger), à dis-tinção analética, ao Dois (Badiou), à paralaxe (Zizek), o negativo (Hegel). Caetano a intui também quando, na canção Santa Clara, afirma que a queda, enquanto perda unidade original, é uma conquista.

[14] Ver nosso: https://lavrapalavra.com/2017/03/06/a-aporia-de-dworkin-e-a-recaida-na-metafisica-da-presenca-1/

[15] POULANTZAS, Nicos. Natures des choses et droit: essa sur la dialectique du fait et de valeur. Paris: LGDJ, 1965, p. 273. Por isso, nunca foi novidade, para nós dialéticos, a tese de Luhmann conforme o direito é normativamente fechado e cognitivamente aberto. Não obstante, sua tese sempre se ressentiu de alteridade. Marcelo Neves, jurista de rigor admirável, no livro “Entre Hidra e Hércules” avança, ao articular ego e alter ego, apontando para a alteridade que sempre faltou em seu mestre. É preciso ler e reler Poulantzas e Marcelo Neves para entender a complexidade do problema da autonomia do direito.


Luis Eduardo Gomes do Nascimento. Luis Eduardo Gomes do Nascimento é Professor na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil. Ex-Professor na Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina, PE, FACAPE, Brasil. Mestrando em Ecologia Humana na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil. Advogado.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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