O conceito de biopolítica em Michel Foucault: notas sobre um canteiro arqueológico inacabado

13/03/2017

 Por Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - 13/03/2017

“O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua somente pela consciência ou pela ideologia, mas também no corpo e com o corpo.”

Michel Foucault

INTRODUÇÃO 

Michel Foucault (1926-1984) é um dos filósofos mais lidos e comentados do século XX. Sua vasta obra assume posição central na discussão dos mais variados temas, já que o autor contribuiu no sentido de criar ou redefinir conceitos que são chave para o pensamento contemporâneo. Graças a Foucault, diversas disciplinas – dentre as quais se pode destacar a história, a filosofia, a crítica literária, a sociologia e, no caso deste texto, o direito – precisaram repensar seus próprios métodos e noções-chave que se pensava já consolidadas.

Na obra foucaultiana, as categorias biopolítica e biopoder – ora utilizadas como sinônimo, ora não – pretendem abarcar a complexa questão da normalização biológica dos seres humanos, no caminho que o autor trilhava na investigação do problema da governamentalidade. Por biopolítica, Foucault vai designar o movimento segundo o qual, a partir do século XVIII, a vida biológica começa a se converter em objeto da política, ou seja, a vida biológica passa a ser produzida e, além disso, administrada, com a particularidade de que, mesmo sendo objeto de normalização, a vida biológica nunca fica exaustivamente retida nos mecanismos que pretendem controlá-la, pois sempre os excede e deles, por fim, escapa (CASTRO, 2011). A morte, nesse sentido, representa justamente um fato intrínseco ao “biológico” que escapa completamente ao biopoder, demonstrando um dos seus limites, já que representa, na leitura foucaultiana, o momento mais “privado” da existência de uma pessoa[1].

Mesmo aparecendo apenas três vezes nos livros publicados em vida por Foucault, e não ocupando, em razão disso, um lugar significativo na literatura foucaultiana produzida até meados da década de 1990, o termo “biopolítica” foi redescoberto e passou a ocupar posição central na explicação de fenômenos contemporâneos a partir do momento em que surgiu a obra “Ditos e Escritos” (compilação de artigos, conferências, debates e mesas redondas publicados por Foucault no período que vai de 1954 a 1988). Nesse conjunto de escritos, o tema aparece de maneira mais definida quanto à sua importância, bem como quanto à sua localização no percurso intelectual de Foucault: o biopoder em seus dois eixos, quais sejam, a anatomopolítica disciplinar do corpo humano e os controles regulatórios da biopolítica da população (CASTRO, 2011).

Outro fator que contribuiu para uma maior apropriação da categoria foucaultiana nos debates contemporâneos foi a edição de seus cursos, proferidos no Collège de France no período compreendido entre 1970 e 1984. Esse material, que circulava até então de modo bastante limitado, por meio dos apontamentos e gravações realizadas pelos ouvintes, passou, a partir de 1997, a ser editado e publicado. Em três dos cursos publicados, Foucault se ocupa da biopolítica: “Em defesa da sociedade” (2010), “Segurança, território e população” (2008a) e “O Nascimento da biopolítica” (2008b).

Também se deve levar em consideração o fato de que o período de tempo que medeia entre a invenção do conceito por Foucault e sua “apropriação” contemporânea para a explicação de alguns fenômenos por diversos autores – com destaque a Giorgio Agamben (2010), Antonio Negri e Michael Hardt (2005) – pode ser atribuído ao fato de que a profundidade do tema fez com que ele precisasse de praticamente duas décadas de intenso debate para ser “definitivamente compreendido, absorvido e apropriado por outros autores” (DUARTE, 2010, p. 205).

Em outras palavras, pode-se afirmar que Foucault adiantou-se no estudo de alguns temas, cuja verdadeira importância somente apareceria claramente mais tarde. A biopolítica é um claro exemplo disso: o conceito cunhado na década de 1970 representa uma das correntes interpretativas atualmente mais relevantes dos trabalhos de Foucault (CASTRO, 2011; 2014).

Nesse sentido, o presente artigo procura atingir dois objetivos centrais: a) compreender a “gênese” do conceito de biopolítica em Foucault; b) demonstrar a evolução do conceito em relação à temática da guerra e do racismo de Estado. A problemática que conduz a pesquisa pode ser sintetizada na seguinte objeção: em que medida o canteiro arqueológico da biopolítica descortinado por Foucault pode ser compreendido como um espaço de trabalho inacabado que permite, na contemporaneidade, a explicação/compreensão de fenômenos contemporâneos relacionados à guerra, transformando o filósofo em um pensador do presente?

1 A gênese do conceito de biopolítica em Michel Foucault

É no livro “História da Sexualidade I – A vontade de saber” que Foucault se refere pela primeira vez ao termo biopolítica em seus escritos. No capítulo que encerra a obra, intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida”, Foucault faz a seguinte observação: “o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política” (FOUCAULT, 2012, p. 156). No entanto, a partir do momento em que se descortina aquilo que ele denomina como “limiar de modernidade biológica”, o homem passa a ser “um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”. Essa implicação da vida biológica nos cálculos e nos mecanismos de poder é que será denominada “biopolítica”.

Na investigação acerca da relação do direito com a vida e com a morte empreendida no capítulo mencionado, Foucault remete-se inicialmente ao direito romano e à patria potestas, que concedia ao pai de família romano o poder de vida e morte sobre seus filhos ou escravos; posteriormente o autor identifica uma forma mais branda desse poder que perpassa pelas teorias contratualistas que atribuem ao soberano o poder de dispor do direito de guerra e do direito de punir, ou seja, o poder de dispor sobre a vida e a morte de seus inimigos e também de seus súditos, não mais em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas naqueles casos em que se encontra exposto em sua própria existência. Esse dispositivo de soberania, para Foucault, representa o exercício de um direito que se exerce diretamente sobre a morte e indiretamente (através da morte, portanto) sobre a vida. Trata-se, segundo o filósofo, de um poder de “causar a morte ou deixar viver” (FOUCAULT, 2012, p. 150)[2].

Esta prerrogativa de fazer morrer e deixar viver que caracteriza o dispositivo da soberania, no entanto, passa a ser apenas uma engrenagem a mais nos dispositivos de poder a partir do momento em que, na passagem do século XVIII para o século XIX, começa a ser complementado por um poder que funciona de modo inverso, ou seja, que se exerce direta e positivamente sobre a vida. Trata-se do “poder de causar a vida ou devolver à morte” (FOUCAULT, 2012, p. 150), ou seja, “um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT, 2012, p. 148).

Isso significa que o poder deixa de se afirmar enquanto um poder de “matar a vida” e passa a fazê-lo enquanto um poder que “gerencia a vida”, que passa, agora, a ser exercido sobre a vida, fixando-se ao longo de todo o seu desenrolar[3]. É esse poder que Foucault denominará biopolítica, a qual representa uma estratégia ao mesmo tempo de proteção e de maximização da força representada pela vida dos indivíduos, vida que passa a valer muito, “não em nome de uma pretensa filantropia, mas porque ela é essencialmente força de trabalho, isto é, produção de valor.” Nesse contexto, a vida “só é útil porque é, ao mesmo tempo, sã e dócil, ou seja, medicalizada e disciplinarizada” (REVEL, 2006, p. 55-56).

A modernidade representa o momento em que ocorre essa viragem apreendida por Foucault: se durante muito tempo a relação entre política e vida se dá de modo indireto, mediada por uma série de categorias que as filtram ou liquefazem – “como uma espécie de câmara de compensação” –, a partir desse momento essas barreiras se desfazem “e a vida irrompe diretamente nos mecanismos e dispositivos do governo dos homens.” Foucault redescobre, no bios, a “matéria-prima” das lutas políticas e das afirmações de direitos da modernidade (ESPOSITO, 2010, p. 50).

Foucault (2012, p. 151-152) estabelece essa noção de complementaridade/compensação[4] do poder soberano pelo biopoder na medida em que identifica que o segundo foi indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, ao afirmar que “as disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida” que não são, portanto, antitéticos e se encontram “interligados por todo um feixe intermediário de relações”. Para o autor, o sistema capitalista pressupunha a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção (disciplina), mas também um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Para além da docilidade dos corpos[5], o capitalismo também exigiu métodos de poder capazes de majorar forças e aptidões em geral, afinal de contas, o poder de soberania se mostrou incapaz de “organizar o corpo econômico e político num contexto marcado pela explosão demográfica e crescente industrialização.” (AYUB, 2014, p. 60). Nesse sentido, o biopoder, com “suas formas e procedimentos múltiplos”, é que viabilizou o ajuste “da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro” (FOUCAULT, 2012, p. 153-154).

É nesse sentido que a biopolítica não se apropria da vida para suprimi-la, mas sim para administrá-la em termos regulativos, ou seja, trata-se de distribuir o vivente em um domínio de valor e de utilidade (CASTRO, 2011). É nesse movimento que Foucault evidencia como a potência da vida humana passa a ser aproveitada pelo Estado e pelas instituições como elemento de poder, ou seja, passa-se a incluir a vida humana nos cálculos do poder. Afinal, a lógica do biopoder é justamente essa: cuidar/maximizar a vida humana para que ela seja produtiva.

A biopolítica se encontra em uma perspectiva diametralmente oposto à inflexão predominantemente negativa do poder soberano: se este “se exercia em termos de subtração, de tributação – dos bens, dos serviços, do sangue – dos próprios súbditos”, aquela, pelo contrário, volta-se “para a vida deles não só no sentido da sua defesa mas também no do seu desenvolvimento, da sua potenciação, da sua maximização.” Se o poder soberano “tolhia, refreava, até aniquilar”, a biopolítica “solda, aumenta, estimula.” (ESPOSITO, 2010, p. 60-61).

No sistema capitalista de produção, portanto, torna-se imprescindível instrumentalizar o saber sobre a vida, de modo a viabilizar tanto o controle quanto a inserção das pessoas (da população) nos processos de produção, ajustando, assim, os fenômenos naturais como o nascimento, a reprodução e a morte, aos processos econômicos. O objetivo é controlar as consequências dos fenômenos naturais de modo que elas signifiquem ganhos econômicos. Assim, “o que se produziu por meio da atuação específica da biopolítica não foi mais apenas o indivíduo dócil e útil, mas a própria gestão calculada da vida do corpo social.” (DUARTE, 2010, p. 222).

Não se trata de fazer desaparecer o poder disciplinar, mas sim de estabelecer um “ajuste das microtécnicas disciplinares diante de uma nova preocupação, a de velar pelo conjunto dos fenômenos vitais de uma população.” Nesse sentido, o poder disciplinar e a biopolítica articulam-se formando um sistema de engrenagens que se auto-reforçam: “a disciplina consolida a biopolítica que, em troca, embasa o eixo das técnicas disciplinares e suas tentativas de majoração coextensiva das forças e da obediência de um indivíduo.” (BERT, 2013, p. 128).

Isso significa que os dispositivos disciplinares e biopolíticos se conjugam nas novas técnicas políticas que se fazem necessárias para o governo das massas urbanas multifacetadas, ajustando-as à dinâmica da produção e do consumo em ascensão na sociedade capitalista. Foucault identifica, aqui, o momento a partir do qual o “biológico” passa a refletir no “político”, fazendo com que o fato de viver caia no campo de controle do saber e, reflexamente, de intervenção do poder[6]. O acoplamento entre a biopolítica e o capitalismo, assim, é viabilizado/evidenciado: por meio de controles diversos sobre a vida (demografia, higiene pública, projetos de urbanismo, etc) transforma-se os indivíduos em população, ou seja, produz-se um grande – e produtivo – “corpo mecânico”.

Objeta-se, no entanto, sobre o porquê da cunhagem do conceito de biopolítica em uma obra sobre sexualidade. É justamente no sexo que Foucault consegue vislumbrar uma espécie de “cruzamento” entre a dimensão disciplinar e a dimensão biopolítica do poder. O dispositivo sexualidade[7] é compreendido como “um dos domínios em que o poder disciplinar e a biopolítica se entrelaçam numa estratégia de controle ao mesmo tempo individualizante e massificador”, uma vez que o “acesso ao corpo via dispositivo individualiza o controle e, ao mesmo tempo, torna possível a regulação do conjunto dos vivos”. Isso resulta no “investimento político das taxas de natalidade e fluxos de doenças que, por sua vez, acabam produzindo efeitos de conjunto sobre a população.” (AYUB, 2014, p. 62).

É o sexo que, na linguagem foucaultiana, se configura como “acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie”, o que explica a preocupação com a temática da sexualidade no século XIX. Na sexualidade, o dispositivo de soberania e a antiga questão do “sangue” – sobre a qual se articula o dispositivo de aliança – são utilizados para vivificar e sustentar, permitindo a afirmação de que vivemos em uma sociedade do “sexo”, na qual “os mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada.” (FOUCAULT, 2012, p. 159-161).

Em que pese a utilização pioneira da terminologia na obra “História da Sexualidade I”, é importante referir que a expressão “biopolítica” já havia sido empregada por Foucault em uma conferência realizada no Brasil em 1974, intitulada “O nascimento da medicina social” (2003). Nessa conferência, o filósofo desnuda o processo que conduz à politização do corpo da população por meio da medicina. Seu objetivo, como anuncia no início da conferência, é demonstrar que “a medicina moderna é uma medicina social que tem por background uma certa tecnologia do corpo social”, ou seja, que a medicina “é uma prática social que somente em um de seus aspectos é individualista e valoriza as relações médico-doente.” (FOUCAULT, 2003, p. 79).

A referência à biopolítica aparece logo na sequência, quando o filósofo afirma que o capitalismo que se desenvolve no final do século XVIII e alvorecer do século XIX foi responsável pela socialização de um primeiro objeto que foi o “corpo”, considerado enquanto “força de produção”. Aqui, Foucault (2003, p. 80) salienta que “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.” Segundo o autor, “foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política.”

Feitas essas considerações introdutórias, Foucault busca, então, comprovar a sua tese inicial a partir da análise de como essa “medicina social” se estrutura em três etapas históricas (ou modelos) distintas: a “medicina de Estado” alemã, a “medicina urbana” francesa e a “medicina da força de trabalho” inglesa.

A medicina de Estado que surge e se desenvolve na Alemanha no começo do século XVIII tem por característica uma preocupação efetivamente centrada na melhoria do nível de saúde da população. Esse modelo é marcado por algumas características, como: a) criação pioneira de um sistema complexo de observação da morbidade; b) surgimento de um processo de “normalização do ensino médico e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas” e de “uma organização administrativa para controlar a atividade dos médicos”, subordinando-os em suas práticas a um poder administrativo superior; c) criação de “funcionários médicos nomeados pelo governo com responsabilidade sobre uma região, seu domínio de poder ou de exercício da autoridade de seu saber”, fazendo surgir a figura do médico como “administrador de saúde”. (FOUCAULT, 2003, p. 82-84).

Esse conjunto de práticas não tem por objetivo a formação de uma força de trabalho que corresponda às necessidades das indústrias. Pelo contrário, o corpo que é destinatário dessas práticas é o corpo dos indivíduos que constituem globalmente o Estado (a população). Em síntese, a medicina de Estado alemã preconiza a saúde do corpo – e da força – do Estado em seus conflitos (econômicos, políticos, etc) com seus vizinhos. A medicina deve ocupar-se, nesse modelo, do aperfeiçoamento e desenvolvimento dessa força, portanto.

O segundo movimento no desenvolvimento da medicina social é identificado por Foucault na criação, na França, nas últimas décadas do século XVIII, da medicina urbana, que – a partir do modelo de intervenção médico-político da quarentena utilizado anteriormente no combate à peste[8] – se ocupa do problema da unificação do poder urbano, ou seja, “de constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem regulamentado.” Foucault identifica o momento a partir do qual o perigo social deixa de vir do campo – como na sociedade europeia do século XVII, na qual os camponeses pobres atacavam cidades e castelos em face de más colheitas e impostos abusivos – e passa a vir das próprias cidades, impondo a “necessidade de um poder político capaz de esquadrinhar esta população urbana.” (FOUCAULT, 2003, p. 86).

Nesse sentido, a medicina urbana busca alcançar três grandes objetivos: a) analisar e mapear lugares de acúmulo de tudo que pode provocar doenças no espaço urbano, ou seja, lugares de formação/difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos, a exemplo dos cemitérios[9]; b) controlar a circulação do ar e da água, organizando corredores, de modo a fazer com que esses elementos se mantenham “sadios” e evitar, com isso, contaminações; c) organizar os diferentes elementos necessários à vida comum da cidade, como as fontes, esgotos, etc. Por meio dessas medidas, surge a noção de “salubridade”[10], que tem uma importância considerável para a medicina social. (FOUCAULT, 2003, p. 89-93).

Por fim, a terceira etapa do desenvolvimento da medicina social é ilustrada a partir do processo de medicalização das camadas subalternizadas da população vislumbrado na Inglaterra nas primeiras décadas do século XIX, fechando o ciclo iniciado com a medicalização do Estado: “em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres[11] e trabalhadores foram objetos da medicalização” (FOUCAULT, 2003, p. 93). É apenas no segundo terço do século XIX que os pobres aparecem como “perigo”, como consequência das agitações sociais por eles promovidas em decorrência da organização de serviços (carregamentos, serviços postais, etc) que lhes retiravam os meios de subsistência. É também nesse período que se propaga por toda Europa uma série de “medos sanitários”, advindos, por exemplo, da cólera, o que deflagrou processos de separação dos espaços urbanos destinados aos pobres daqueles destinados aos ricos.

É na Inglaterra que aparece essa nova forma de medicina social. Em boa medida, porque nesse país é que se observa um desenvolvimento industrial e, por consequência, do proletariado, com maior rapidez e importância. Com a chamada “Lei dos Pobres”, a medicina inglesa começa a se transformar em medicina social, na medida em que o destinatário do sistema de assistência passa a ser alvo de controles médicos. Estabelece-se, assim, aquilo que Foucault denomina “cordão sanitário autoritário” que vai separar ricos e pobres, na medida em que, enquanto estes encontram a possibilidade de tratamento gratuito ou sem grande dispêndio financeiro, aqueles asseguram que não serão vitimados por epidemias oriundas das classes subalternizadas (FOUCAULT, 2003, p. 95).

A partir de 1870, as medidas contidas na “Lei dos Pobres” foram sendo complementadas por outros sistemas (como o health service e os health officers), que tinham por função prolongá-las e intensificá-las. Surgem então o controle da vacinação compulsória da população, a organização de registros (também compulsórios) das epidemias e doenças capazes de deflagrar epidemias, o mapeamento de lugres insalubres e, na medida do possível, a sua destruição.

Esses mecanismos evidenciam o nascimento de um conjunto de práticas e saberes que, em essência, se apresentam como formas de controle da saúde e, reflexamente, do corpo das classes pauperizadas para torná-las/deixá-las aptas ao trabalho e, em razão disso, não apresentarem tantos perigos para as classes mais ricas. Por meio da análise do “nascimento da medicina social”, pode-se afirmar que Foucault buscou demonstrar como determinados saberes (os modelos analisados pelo autor – “medicina de Estado”, “medicina urbana” e “medicina da força de trabalho” – demonstram que, para além da medicina propriamente dita, outros saberes como a estatística, a demografia, etc, assumem relevância nesse contexto) influenciaram políticas públicas de controle/regulação de problemas relativos à questão da população, ou seja, da intensificação do convívio humano no espaço urbano. Técnicas de poder são criadas e colocadas em funcionamento para organização dos espaços, para higienização das cidades e para o estabelecimento de políticas sanitárias que objetivam o controle de determinados estratos sociais em nome da segurança do conjunto da população. Foucault confirma, assim, a hipótese lançada no início da sua conferência: concomitantemente à expansão do capitalismo, a medicina cada vez mais passa a investir no corpo do indivíduo para além do âmbito estritamente privado de sua existência, avançando em direção ao domínio da coletividade[12].

Nas duas obras até aqui mencionadas, é possível afirmar que a ideia de um “governo da vida” é abordada por Foucault a partir da perspectiva da sua relação com a medicina e com a estrutura jurídica da soberania, bem como com a formação e o desenvolvimento da economia política (CASTRO, 2014a). Tratam-se de perspectivas diferentes daquela que o autor adota no curso “Em defesa da sociedade”, ministrado no Collège de France nos anos de 1975 e 1976, qual seja, a relação da biopolítica com as noções de guerra e luta. É com esse tema que se ocupa o tópico que segue.

2 O canteiro arqueológico da biopolítica como obra inacabada e sua apropriação para a compreensão/explicação do fenômeno da guerra

O curso “Em defesa da sociedade” – trabalho contemporâneo e paralelo à “História da Sexualidade” – é orientado pela tentativa foucaultiana de construir uma genealogia do discurso da guerra de raças (CASTRO, 2014b). Foucault salienta, no início de seu Curso, que procurará demonstrar que a célebre afirmação de Carl von Clausewitz (1996) de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”[13] pode ser subvertida. Sua provocação, então, é a reflexão acerca do fato de que a política e o exercício do poder no âmbito da estatalidade podem representar “a continuação da guerra por outros meios”. Como em sua “História da Sexualidade I”, o tema da biopolítica aparece na parte final da obra.

No curso em questão, Foucault (2010, p. 201-202) refere que a biopolítica – também denominada “assunção da vida pelo poder” ou “estatização do biológico” – representa um dos fenômenos fundamentais do século XIX e representa um câmbio importante em relação à teoria clássica da soberania. Isso porque “a biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder.” Logo, os fenômenos que passam a ser levados em consideração, aqui, são os coletivos, ou seja, aqueles “que só aparecem com seus efeitos econômicos e políticos, que só se tornam pertinentes no nível da massa”, o que significa dizer que “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração.” (FOUCAULT, 2010, p. 206-207).

Na perspectiva foucaultiana, torna-se importante analisar a forma como ambos os mecanismos de poder – o disciplinar e o regulamentador –, se relacionam: em que pese não estarem no mesmo nível, não há um processo de auto-exclusão, mas de articulação[14]. O que vai permitir essa articulação entre as duas formas de exercício de poder identificadas é a norma, uma vez que ela “é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar.” Logo, a sociedade de normalização não é apenas “uma espécie de sociedade disciplinar generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo o espaço”, mas sim “uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação.” Por meio desses mecanismos – disciplina e regulamentação – o poder, a partir do século XIX, passa a incumbir-se da vida, quer dizer, “ele conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra.” (FOUCAULT, 2010, p. 213).

É a norma, portanto, que passa a regulamentar a vida humana, a partir da lógica segundo a qual quem segue a norma pode considerar-se inserido no tecido societal. O paradoxo que se apresenta, nesse viés, diz respeito a como conciliar o direito de matar com um exercício de poder preocupado essencialmente com a vida, seja no que concerne a aumentá-la, seja no que se refere a prolongá-la ou, ainda, multiplicar suas possibilidades à medida que desvia seus acidentes e compensa suas deficiências. A grande questão que se coloca então é como se pode exercer o poder da morte num sistema político centrado no biopoder.

O mecanismo que vai permitir o exercício desse poder de morte em um regime de biopoder é o racismo, compreendido a partir de uma dupla perspectiva: em um primeiro momento, o racismo pode ser visto como um meio de introduzir no domínio da vida – de que o poder se incumbiu – o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Para Foucault (2010, p. 214),

no contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. Em resumo, de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo precisamente um domínio biológico. Isso vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder.

Já a segunda função do racismo será legitimar a morte do “outro” a partir de uma maneira inteiramente nova, compatível com o biopoder: a partir de então, “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia, mais sadia e mais pura.” A eliminação do perigo biológico representado pelo outro é legitimada, dessa maneira, conforme estiver diretamente relacionada ao fortalecimento da própria espécie ou da raça: “a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.” (FOUCAULT, 2010, p. 215).

O refinamento da tese foucaultiana reside justamente nesse ponto: a biopolítica enquanto forma encontrada pelo Estado para “gerir a vida da população” não pode ser ingenuamente compreendida pelo seu “caráter humanitário” de administrar, por meio de intervenções políticas, as condições de vida da população. Há um aspecto violento desse controle, denunciado pelo autor, que reside justamente na exigência contínua e crescente da morte em massa do “outro”, enquanto instrumento privilegiado para a garantia de melhores meios de sobrevivência de uma determinada população. Segundo o filósofo, não existe funcionamento moderno do Estado que não passe, em determinados momentos e sob certas condições, pelo racismo (FOUCAULT, 2010). De acordo com Esposito (2010, p. 66), trata-se “do novo poder biopolítico que se serve do direito soberano de morte para dar vida ao racismo do Estado.”

Foucault compreendeu que não se observa um decréscimo da violência a partir do momento em que a vida passa a ser o elemento político por excelência e que, em virtude disso, tem de ser administrado, regrado, normalizado. Pelo contrário, o cuidado da vida traz consigo “a exigência contínua e crescente da morte em massa, visto que é no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de vida e sobrevivência de uma dada população.” (DUARTE, 2010, p. 226-227).

Neste estado de coisas, o racismo é condição de possibilidade para que se possa exercer o direito de matar. Nas palavras de Foucault (2010, p. 52-53), o racismo de Estado é exercido pela sociedade sobre ela mesma, ou seja, “sobre seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos”; trata-se de um “racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social”. Segundo Ayub (2014, p. 109), “a purificação das raças alimenta os anseios de um poder que investe sobre a vida”, fazendo com que se crie a necessidade de que a raça impura seja extirpada “no intuito de se evitar o desencadeamento de uma contaminação generalizada.”

Nesse ponto, é importante consignar que, por “tirar a vida” não se compreende, na perspectiva foucaultiana, unicamente o assassínio direto, mas também tudo que pode ser considerado assassínio indireto: “o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição”. A guerra e o genocídio assumem, nesse quadro, o papel de ferramentas largamente utilizadas pela biopolítica para a consecução de seus objetivos (FOUCAULT, 2010, p. 216). Ao mencionar que nunca na história da humanidade as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX, e tampouco os regimes políticos haviam, até então, praticado tamanhos holocaustos em suas próprias populações, Foucault (2012, p. 149) salienta que o câmbio ocorre justamente em virtude do surgimento do biopoder, de modo que o “formidável poder de morte [...] apresenta-se agora como o complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto”.

Em razão disso, já não são mais travadas guerras em nome da defesa do soberano, mas sim em defesa de todos, em um movimento paradoxal: populações inteiras destroem-se mutuamente em nome da necessidade de viver, ou seja, os massacres tornam-se vitais. Essa justificativa – de gestão da vida e da sobrevivência dos corpos e das raças – passa a ser utilizada pelos regimes para travar guerras que causam mortes em massa. Nesse rumo, quanto mais a tecnologia das guerras se volta para a destruição exaustiva, tanto mais as decisões que deflagram e encerram as guerras são tomadas em função da questão nua e crua da sobrevivência. Em outras palavras: “o racismo é o mais novo disfarce com o qual entra em cena o poder de soberania.” (AYUB, 2014, p. 109).

Assim, considera-se que o racismo assegura, na economia do biopoder, a função de morte, a partir do princípio de que a morte dos outros representa o fortalecimento da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou população, ou seja, configura-se enquanto elemento de uma pluralidade unitária e viva. E é justamente aqui que reside a particularidade do racismo moderno: ela habita no fato de que ele não se encontra ligado a mentalidades, ideologias ou mentiras do poder, mas à técnica ou tecnologia do poder, atrelado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a se utilizar da raça – da sua eliminação e da sua purificação – para que possa exercitar seu poder soberano.

Foucault (2010, p. 218) serve-se do exemplo do nazismo, por ele considerado como o desenvolvimento, até o paroxismo, dos novos mecanismos de poder introduzidos a partir do século XVIII, para explicitar sua tese: “não há sociedade a um só tempo mais disciplinar e mais previdenciária do que a que foi implantada, ou em todo caso projetada, pelos nazistas”. Nessa sociedade, o controle das eventualidades próprias dos processos biológicos (procriação, hereditariedade, doenças, acidentes) era um dos principais objetivos do regime. No entanto, essa sociedade, ao mesmo tempo que universalmente previdenciária, seguradora, regulamentadora e disciplinar, era também perpassada, em todo o seu corpo, pelo poder de matar, que não era prerrogativa apenas do Estado, mas de toda uma série de indivíduos, de modo que, “no limite, todos têm o direito de vida e de morte sobre o seu vizinho, no Estado nazista, ainda que fosse pelo comportamento de denúncia, que permite efetivamente suprimir, ou fazer suprimirem, aquele que está a seu lado”.

A guerra, no regime nazista, é colocada como um objetivo político, ou seja, a política deve resultar na guerra, sendo que “a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar o conjunto”. Como decorrência disso, o regime nazista não objetiva apenas a destruição das outras raças: busca-se também expor a própria raça ao perigo universal da morte. Isso significa que a defesa da vida e a produção da morte encontram-se em um patamar de indistinção. Logo, “o risco de morrer, a exposição à destruição total, é um dos princípios inseridos entre os deveres fundamentais da obediência nazista, e entre os objetivos essenciais da política”. Busca-se o ponto no qual toda a população esteja exposta à morte, dada compreensão de que “apenas essa exposição universal de toda a população à morte poderá efetivamente constituí-la como raça superior e regenerá-la definitivamente perante as raças que tiverem sido totalmente exterminadas ou que serão definitivamente sujeitadas.” (FOUCAULT, 2010, p. 218-219).

Nesse marco, o nazismo só foi possível em função do biopoder. A biopolítica converte-se em tanatopolítica. A função de morte da soberania não se dirige mais ao inimigo político, mas ao inimigo biológico. No entanto, paradoxalmente, a destruição das outras raças é apenas uma das facetas da tanatopolítica, já que a outra – e talvez a principal – resida justamente na regeneração da própria raça, razão pela qual passa-se a expô-la, também, à morte. Trata-se, em última análise, “de eliminar, não os adversários, mas os perigos, em relação à população e para a população” (PELBART, 2011, p. 59). O racismo moderno permite a conjugação, portanto, do velho direito de soberania com os mecanismos modernos do biopoder e do discurso da guerra de raças. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inevitável a constatação da atualidade do pensamento foucaultiano, o que confere à sua obra uma vitalidade que está longe de se esgotar. Ao filosofar investigando a história, Foucault deixou como legado um trabalho que não busca tão somente o conhecimento erudito das sociedades passadas, mas, antes de qualquer coisa, uma melhor compreensão/reflexão da atualidade, pela confrontação com aquilo que já não mais somos.

Por outro lado, a obra foucaultiana também sugere – a partir do seu perfil histórico-filosófico – possibilidades de transformação da sociedade que vem. Um exemplo: a origem das “sociedades do controle” contemporâneas está justamente nas técnicas disciplinares de padronização dos corpos nas instituições ao longo dos séculos XVII e XVIII e que nos séculos XX e XXI espraia-se para a sociedade como um todo, objetivando a normalização dos indivíduos em diversas instâncias, induzindo comportamentos – como, por exemplo, determinados padrões de consumo – e fabricando subjetividades não autênticas.

Nesse rumo, o conceito de biopolítica assume, na sociedade contemporânea, o papel de ferramenta conceitual imprescindível para a compreensão e explicação de determinados fenômenos. Ao contrário dos mecanismos disciplinares, a biopolítica não vai buscar a alteração do indivíduo, não se ocupa dos fenômenos individuais, dos homens isoladamente considerados. A partir de previsões, estimativas, estatísticas e medições, ela vai priorizar as intervenções nos fenômenos em nível global, com o escopo de estabelecer mecanismos reguladores.

Por biopoder, portanto, Foucault vai designar a inclusão da vida mesma no âmbito de ação estatal por meio de políticas sanitárias, urbanísticas ou educativas. O soberano, aqui, aprende a dizer sim, passando do não proibitivo ao sim governativo. O poder passa a ser visto como condução de si mesmo e dos outros, uma intensificação e totalização da dominação que é acompanhada, paradoxalmente, por sua limitação.

O foco, na biopolítica, deixa de ser o corpo individual, a consideração do indivíduo no nível do detalhe – como na disciplina. Esses mecanismos disciplinares – que visavam à docilidade dos corpos, ou seja, ao disciplinamento dos corpos, e também do tempo e do espaço, de modo a adaptá-los e torná-los úteis ao sistema de produção vigente – são substituídos por mecanismos globais que objetivam estados globais de equilíbrio, de regularidade. Com efeito, na medida em que se “normaliza” a população, em que se “regulamenta” a população, torna-se mais fácil controlá-la e otimizar a sua produtividade.

É justamente isso que transforma o canteiro arqueológico biopolítico foucaultiano em um profícuo espaço de trabalho com numerosas possibilidades de desenvolvimento de várias questões que permanecem “abertas” ao debate, como, por exemplo, fenômenos como a proliferação da guerra, a sua transformação em um “regime de biopoder”[15] ou em um “estado de exceção permanente”[16]. Isso porque a biopolítica permite compreender como se dá a passagem – ou superposição – da sociedade disciplinar – na qual a disciplina sucedia como “anátomo-política” dos corpos e se aplicava basicamente aos indivíduos – para a sociedade do biopoder – na qual a biopolítica representa uma espécie de “medicina social” que se aplica à população com o propósito de governar sua vida.


Notas e Referências: 

[1] Foucault (2012, p. 151) busca explicar, assim, de que modo o suicídio se transformou em uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica no século XIX. Com efeito, o suicídio “fazia aparecer, nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida, o direito individual e privado de morrer.” Daí a preocupação: “essa obstinação em morrer, tão estranha e contudo tão regular, tão constante em suas manifestações, portanto tampouco explicável pelas particularidades ou acidentes individuais, foi uma das primeiras surpresas de uma sociedade em que o poder político acabava de assumir a tarefa de gerir a vida.”

[2] De acordo com Foucault (2012, p. 148), nesse tipo de sociedade “o poder era, antes de tudo [...], direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.”

[3] Segundo Barbosa (2013, p. 5), “em lugar da morte, o poder passa a gerir a vida, de forma positiva, para que cresça e se multiplique, sob controles precisos e regulações de conjunto.” Isso não significa, no entanto, que o poder de morte deixará de existir. Pelo contrário, o autor salienta que jamais, como a partir do século XIX, as guerras foram tão sangrentas, mas que esse “formidável poder de morte” agora se apresenta como “complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto.” (FOUCAULT, 2012, p. 149).

[4] Como salienta Castro (2014a), “a veces se habla de una relación de substitución; otras, en cambio, de complementación. Por otro lado, manteniendo la diferenciación entre ambos, Foucault sostiene que el dispositivo biopolítico no ha dejado de penetrar y modificar el dispositivo soberano.” No mesmo sentido, Ayub (2014, p. 57) afirma que “a separação dos diagramas da anátomo-política e da biopolítica não é radical e muito menos procede a uma substituição histórica precisa; dependendo do dispositivo de saber-poder em questão, pode ocorrer mesmo uma fusão entre esses regimes de poder [...].”

[5] Foucault (1987, p. 153) refere que o poder disciplinar é um poder que “em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para mutiplicá-las e utilizá-las num todo. [...] ‘Adestra’ as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. [...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.”

[6] Trata-se, portanto, do momento no qual “as condições decorrentes da vida em conjunto configuram os novos domínios que se abrem à intervenção política, os quais vão se juntar aos objetos e domínios próprios do poder disciplinar.” (AYUB, 2014, p. 62).

[7] De acordo com Foucault (2012, p. 158-159), o sexo “se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida. De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia das energias. De outro, o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que induz. Insere-se, simultaneamente, nos dois registros; dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todos um micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente.”

[8] O sistema da quarentena é diferente do modelo de exclusão utilizado pela maioria dos países europeus da época no enfrentamento à lepra, que pressupunha a expulsão dos doentes para fora dos muros das cidades. A quarentena, pelo contrário, “consiste em localizar, resguardar, vigiar, registrar os casos e desinfetar casa por casa, numa ação que, inicialmente, tinha o caráter de medida de urgência.” (AYUB, 2014, p. 71).

[9] Segundo Foucault (2003, p. 89-90), “a individualização do cadáver, do caixão e do túmulo aparece no final do século XVIII por razões não teológico-religiosas de respeito ao cadáver, mas político-sanitárias de respeito aos vivos. Para que os vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos, é preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto os vivos ou melhor, se possível. É assim que aparece na periferia das cidades, no final do século XVIII, um verdadeiro exército de mortos tão bem enfileirados quanto uma tropa que se passa em revista.”

[10] Como salienta Foucault (2003, p. 93), “salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E é correlativamente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública – no séc. XIX, a noção essencial da medicina social francesa – é o controle político-científico deste meio.”

[11] Segundo Foucault (2003, p. 94), um fator que contribuiu para a invisibilidade dos pobres enquanto fonte de “perigo médico” no século XVIII refere-se ao fato de que “o pobre funcionava no interior da cidade como uma condição da existência urbana. Os pobres da cidade eram pessoas que realizavam incumbências, levavam cartas, se encarregavam de despejar o lixo, apanhar móveis velhos, trapos, panos velhos e retirá-los da cidade, redistribuí-los, vendê-los, etc. Eles faziam parte da instrumentalização da vida urbana. Na época, as casas não eram numeradas, não havia serviço postal e quem conhecia a cidade, quem detinha o saber urbano em sua meticulosidade, quem assegurava várias funções fundamentais da cidade, como o transporte de água e a eliminação de dejetos, era o pobre. Na medida em que faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os pobres não podiam ser postos em questão, não podiam ser vistos como um perigo. No nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis.”

[12] É justamente nesse sentido, segundo Revel (2011, p. 24), que “a biopolítica – por meio dos biopoderes locais – se ocupará [...] da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que tais gestões se tornaram apostas políticas.”

[13] Segundo Clausewitz (1996, p. 127), “a política é a matriz na qual a guerra se desenvolve; os seus contornos, já formados de um modo rudimentar, escondem-se nela assim como as propriedades dos seres vivos nos seus embriões.” Na compreensão deste autor (1996, p. 26), a guerra sempre nasce “de uma situação política e só resulta de um motivo político. Aí está por que a guerra é um ato político.”

[14] Reafirmando a inexistência, em Foucault, de uma tentativa de suplantação da lógica disciplinar pela biopolítica, Castro (2014b, p. 109-110) salienta que as relações históricas entre os diferentes dispositivos do poder indicam que “não se trata de identifica-los com determinadas épocas históricas, como se houvesse uma época arcaica, a da soberania; outra moderna, a das disciplinas; e outra contemporânea, a da segurança e da biopolítica. Historicamente, não há uma sucessão desses diferentes dispositivos, mas uma simultaneidade. O que muda de uma época a outra é o modo em que essas diferentes formas de exercício do poder se relacionam entre si e, no contexto desse jogo, qual desses dispositivos cumpre a função dominante.”

[15] NEGRI; HARDT, 2005.

[16] AGAMBEN, 2004; 2010.

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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth é Doutor em Direito Público (UNISINOS). Professor dos Cursos de Direito da UNIJUÍ e UNISINOS. Professor do Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Editor-chefe da Revista Direitos Humanos e Democracia (Qualis B1). http://lattes.cnpq.br/0354947255136468 .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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